Questão Segunda

A CRIAÇÃO, QUE É O PRIMEIRO
EFEITO DA POTÊNCIA DIVINA,
E A CONSERVAÇÃO DAS COISAS
NO SER POR DEUS.



A segunda questão,
traduzida das questões III e V do De Potentia,
é acerca criação, que é o primeiro efeito
da divina potência, e da conservação
das coisas no ser por Deus.




E PRIMEIRO questionamos se Deus pode
criar algo do nada.

SEGUNDO, se as coisas se conservam
no ser por Deus ou se, cessada toda ação de Deus, podem permanecer por si mesmas no ser.

TERCEIRO, se Deus pode comunicar
a alguma criatura que possa se conservar no ser por si mesma sem Deus.




ARTIGO PRIMEIRO

- Artigo 1 da Questão III
do De Potentia -

E PRIMEIRO QUESTIONAMOS SE DEUS
POSSA CRIAR ALGO DO NADA.




E PARECE QUE NÃO PODE, POIS,


Em primeiro, de fato, Deus não pode fazer algo contrário à comum concepção do espírito, assim como que o todo não seja maior do que a sua parte. Ora, conforme diz o Filósofo no primeiro livro da Física, foi comum concepção das sentenças filósofos que do nada nada se faz. Portanto, Deus não pode criar algo do nada.

Ademais, em segundo, tudo o que se faz, antes que fosse, era possível que fosse. De fato, se era impossível que fosse, não seria possível que se tornasse, pois nada se muda para aquilo que é impossível. Ora, a potência pela qual algo pode ser, não pode ser senão em algum sujeito, porque o acidente não pode existir sem o sujeito. Portanto, tudo o que se faz é feito a partir da matéria ou do sujeito, de onde que é impossível fazer- se algo a partir do nada.

Ademais, em terceiro, não sucede que se atravesse uma distância infinita. Ora, do não ente de modo simples ao ente há uma distância infinita, o que é patente pelo fato de que quanto a potência está menos disposta ao ato, tanto mais dista do ato, de onde que se este for inteiramente subtraído da potência, haverá uma distância infinita. Portanto, é impossível que algo transite de modo simples do não ente ao ente.

Ademais, em décimo, aquilo que é feito a partir do nada, possui ser depois de não ser. Portanto, deve-se considerar algum instante no qual não é por último, a partir do qual o não ser cessa, e algum outro instante no qual é por primeiro, a partir do qual o ser principia. Estes dois instantes ou serão um e o mesmo instante, ou serão diversos. Se forem o mesmo, daí se seguirá que dois contraditórios existem no mesmo instante. Se forem diversos, como entre dois instantes existe um tempo intermediário, seguir-se-á algo ser intermediário entre a afirmação e a negação, porque não pode ser dito após o último instante no qual não foi, nem ser antes do primeiro instante no qual foi. Ambas estas coisas, porém, são impossíveis, isto é, a contradição existir simultaneamente e ela possuir um intermediário. De onde que é impossível algo fazer-se a partir do nada.

Ademais, em décimo segundo, todo agente age algo semelhante a si. Todo agente, porém, age na medida em que é em ato. Nada é feito, portanto, senão aquilo que está em ato. Mas a matéria primeira não está em ato. Portanto, não pode ser feita, principalmente por Deus, que é ato puro, de modo que tudo o que se faz, é feito a partir da matéria pressuposta, e não a partir do nada.

Ademais, em décimo sétimo, quem faz dá o ser ao que é feito. Se, portanto, Deus faz algo a partir do nada, Deus dá o ser a algo. Este ou será algo que receba o ser, ou nada. Se for nada, então o nada será constituído no ser por esta ação, e desta maneira não se fará alguma coisa. Se for algo que receba o ser, este será outra coisa que não Deus, porque não é o mesmo o que recebe e o recebido. Deus, portanto, faz a partir de algo preexistente, e não a partir do nada.



PORÉM, AO CONTRÁRIO,


Em primeiro , diz o Gênesis que

"No princípio criou Deus
o céu e a terra".

Gen. 1, 1

Ora, diz a Glosa, citando Beda, que criar é fazer algo a partir do nada. Deus, portanto, pode fazer algo a partir do nada.



RESPONDO, DIZENDO QUE,


devemos sustentar firmemente que Deus pode fazer algo a partir do nada e o faz. Para cuja evidência deve-se saber que todo agente age segundo que seja em ato, de onde que importa que a ação seja atribuída àquele agente por aquele modo pelo qual lhe convém ser em ato.

As coisas particulares estão em ato de modo particular, e isto de dois modos. Primeiro, por comparação consigo mesmo, porque não é toda a sua substância que é ato, já que estas coisas são compostas de matéria e forma. Daqui vem que as coisas naturais não agem segundo o seu todo, mas agem pela sua forma, pela qual estão em ato. Segundo, por comparação às coisas que estão em ato, porque em nenhuma coisa natural se incluem os atos e as perfeições de todas as que estão em ato, mas qualquer uma delas possui ato determinado a um gênero e a uma espécie. Daqui vem que nenhuma delas é ativa do ser na medida em que é ser, mas de seu ser na medida em que é este ser, determinado nesta ou naquela espécie, porque o agente age o semelhante a si.

Por isso o agente natural não produz o ser de modo simples, mas o ser preexistente e determinado a isto ou a aquilo como, por exemplo, à espécie do fogo ou à brancura. Por este motivo o agente natural age movendo, pelo que requer a matéria, que seja sujeito de mutação ou movimento, de onde que não pode fazer algo a partir do nada.

Deus, ao contrário, é totalmente ato, tanto em comparação consigo mesmo, por ser ato puro, não possuindo composição com potência, como em comparação com as outras coisas que estão em ato, porque nele está a origem de todos os entes. De onde que, por sua ação, produz todo o ente subsistente, nada sendo pressuposto, na medida em que é princípio dr todo o ser e segundo a totalidade de si. Pode, por isto, fazer algo a partir do nada, e esta sua ação é chamada criação.

Daqui vem que no livro `Das Causas' diz-se que o ser das coisas o é por criação, enquanto que o viver e outros tais o são por informação. De fato, as causalidades do ente de modo absoluto são reduzidas à primeira causa universal, enquanto que a causalidade das outras coisas que ao ser se acrescentam ou pelas quais o ser se especifica pertence às causas segundas, as quais agem por informação, como que suposto o efeito da causa universal.




À primeira, portanto, deve-se dizer que o Filósofo diz ser comum concepção do intelecto ou opinião dos filósofos naturais que do nada nada se pode fazer porque o agente natural, que por eles é considerado, não age a não ser pelo movimento, sendo daí necessário algum sujeito do movimento ou da mutação. Este, porém, não é necessário no agente sobrenatural, conforme foi dito.

À terceira deve-se dizer que antes que o mundo fosse era possível que o mundo fosse, todavia não era necessário que alguma matéria, sobre a qual se fundamentasse uma potência, preexistisse. De fato, diz-se no quinto livro da Metafísica que às vezes algo é dito possível não segundo alguma potência, mas porque nos termos enunciáveis do mesmo não há nenhuma contradição, segundo a qual o possível se opõe ao impossível. Assim é que, portanto, dizemos que antes que o mundo fosse era possível que o mundo se fizesse, porque não havia contradição entre o predicado e o sujeito do enunciado.

Pode-se dizer também que era possível por causa da potência ativa do agente, e não por causa de alguma potência passiva da matéria.

À terceira deve-se dizer que entre o ente e o não ente de modo simples existe sempre de algum modo uma distância infinita, não, todavia, do mesmo modo. Trata-se, às vezes, de uma distância infinita de ambas as partes, como quando se compara o não ser ao ser divino que é infinito, ou se compara a brancura infinita ao negrume infinito. Trata-se, outras vezes, de uma distância que é finita somente de uma parte, como quando comparamos o não ser de modo simples ao ser criado que é finito, ou comparamos o negrume infinito à brancura infinita.

Não pode, portanto, haver trânsito do não ser para o ser que é infinito, mas tal transito pode realizar-se para o ser que é finito, na medida em que a distância do não ser a este ser possui término de uma parte, embora não se trate de um trânsito de modo próprio. De fato, o trânsito propriamente se realiza nos movimentos contínuos, através dos quais transitam uma parte após a outra.

Deste modo, por conseguinte, de nenhum modo ocorre que o infinito possa ser transitado.

À décima deve-se dizer que ao fazer-se algo do nada o ser do que é feito o é por primeiro em algum instante. O não ser, porém, não é naquele instante nem em algum instante real, mas somente em algum instante imaginário. Assim como além do universo não existe nenhuma dimensão real, mas somente imaginária, segundo a qual dizemos que Deus pode fazer algo além do universo, ou distante de tanto do universo, assim também antes do princípio do mundo não havia algum tempo real, mas imaginário, e nele é possível imaginar-se algum instante no qual por último o não ente foi.

Isto, porém, não significa que entre estes dois instantes existe um tempo intermediário, porque não há continuidade entre o tempo verdadeiro e o tempo imaginário.

À décima segunda deve-se dizer que nem a matéria, nem a forma e nem o acidente são propriamente ditos serem feitos, mas o que é feito é a coisa subsistente.

Como o fazer-se termina no ser, o fazer-se convém de modo próprio àquilo a quem convém ser per se, isto é, à coisa subsistente. De onde que nem a matéria, nem a forma, nem o acidente são propriamente ditos ser criados, mas ser concriados. É propriamente criada a coisa subsistente, qualquer que seja.

Pode-se também dizer que a matéria primeira possui semelhança com Deus na medida em que esta participa do ente. De fato, assim como a pedra é semelhante a Deus na medida em que é ente, ainda que não seja intelectual assim como Deus, assim a matéria primeira possui semelhança com Deus na medida em que é ente, mas não na medida em que é em ato, pois o ente é de uma certa forma comum à potência e ao ato.

À décima sétima deve-se dizer que Deus, dando o ser, simultaneamente produz aquilo que recebe o ser, de onde que não se segue que aja a partir de algo preexistente.