A CRIAÇÃO, QUE É O PRIMEIRO
EFEITO DA POTÊNCIA DIVINA,
E A CONSERVAÇÃO DAS COISAS
NO SER POR DEUS.
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- Artigo 1 da Questão III
do De Potentia -
E PRIMEIRO QUESTIONAMOS SE DEUS
POSSA CRIAR ALGO DO NADA.
As coisas particulares estão em ato de modo particular, e isto de dois modos. Primeiro, por comparação consigo mesmo, porque não é toda a sua substância que é ato, já que estas coisas são compostas de matéria e forma. Daqui vem que as coisas naturais não agem segundo o seu todo, mas agem pela sua forma, pela qual estão em ato. Segundo, por comparação às coisas que estão em ato, porque em nenhuma coisa natural se incluem os atos e as perfeições de todas as que estão em ato, mas qualquer uma delas possui ato determinado a um gênero e a uma espécie. Daqui vem que nenhuma delas é ativa do ser na medida em que é ser, mas de seu ser na medida em que é este ser, determinado nesta ou naquela espécie, porque o agente age o semelhante a si. Por isso o agente natural não produz o ser de modo simples, mas o ser preexistente e determinado a isto ou a aquilo como, por exemplo, à espécie do fogo ou à brancura. Por este motivo o agente natural age movendo, pelo que requer a matéria, que seja sujeito de mutação ou movimento, de onde que não pode fazer algo a partir do nada. Deus, ao contrário, é totalmente ato, tanto em comparação consigo mesmo, por ser ato puro, não possuindo composição com potência, como em comparação com as outras coisas que estão em ato, porque nele está a origem de todos os entes. De onde que, por sua ação, produz todo o ente subsistente, nada sendo pressuposto, na medida em que é princípio dr todo o ser e segundo a totalidade de si. Pode, por isto, fazer algo a partir do nada, e esta sua ação é chamada criação. Daqui vem que no livro `Das Causas' diz-se que o ser das coisas o é por criação, enquanto que o viver e outros tais o são por informação. De fato, as causalidades do ente de modo absoluto são reduzidas à primeira causa universal, enquanto que a causalidade das outras coisas que ao ser se acrescentam ou pelas quais o ser se especifica pertence às causas segundas, as quais agem por informação, como que suposto o efeito da causa universal. À terceira deve-se dizer que antes que o mundo fosse era possível que o mundo fosse, todavia não era necessário que alguma matéria, sobre a qual se fundamentasse uma potência, preexistisse. De fato, diz-se no quinto livro da Metafísica que às vezes algo é dito possível não segundo alguma potência, mas porque nos termos enunciáveis do mesmo não há nenhuma contradição, segundo a qual o possível se opõe ao impossível. Assim é que, portanto, dizemos que antes que o mundo fosse era possível que o mundo se fizesse, porque não havia contradição entre o predicado e o sujeito do enunciado. Pode-se dizer também que era possível por causa da potência ativa do agente, e não por causa de alguma potência passiva da matéria. À terceira deve-se dizer que entre o ente e o não ente de modo simples existe sempre de algum modo uma distância infinita, não, todavia, do mesmo modo. Trata-se, às vezes, de uma distância infinita de ambas as partes, como quando se compara o não ser ao ser divino que é infinito, ou se compara a brancura infinita ao negrume infinito. Trata-se, outras vezes, de uma distância que é finita somente de uma parte, como quando comparamos o não ser de modo simples ao ser criado que é finito, ou comparamos o negrume infinito à brancura infinita. Não pode, portanto, haver trânsito do não ser para o ser que é infinito, mas tal transito pode realizar-se para o ser que é finito, na medida em que a distância do não ser a este ser possui término de uma parte, embora não se trate de um trânsito de modo próprio. De fato, o trânsito propriamente se realiza nos movimentos contínuos, através dos quais transitam uma parte após a outra. Deste modo, por conseguinte, de nenhum modo ocorre que o infinito possa ser transitado. À décima deve-se dizer que ao fazer-se algo do nada o ser do que é feito o é por primeiro em algum instante. O não ser, porém, não é naquele instante nem em algum instante real, mas somente em algum instante imaginário. Assim como além do universo não existe nenhuma dimensão real, mas somente imaginária, segundo a qual dizemos que Deus pode fazer algo além do universo, ou distante de tanto do universo, assim também antes do princípio do mundo não havia algum tempo real, mas imaginário, e nele é possível imaginar-se algum instante no qual por último o não ente foi. Isto, porém, não significa que entre estes dois instantes existe um tempo intermediário, porque não há continuidade entre o tempo verdadeiro e o tempo imaginário. À décima segunda deve-se dizer que nem a matéria, nem a forma e nem o acidente são propriamente ditos serem feitos, mas o que é feito é a coisa subsistente. Como o fazer-se termina no ser, o fazer-se convém de modo próprio àquilo a quem convém ser per se, isto é, à coisa subsistente. De onde que nem a matéria, nem a forma, nem o acidente são propriamente ditos ser criados, mas ser concriados. É propriamente criada a coisa subsistente, qualquer que seja. Pode-se também dizer que a matéria primeira possui semelhança com Deus na medida em que esta participa do ente. De fato, assim como a pedra é semelhante a Deus na medida em que é ente, ainda que não seja intelectual assim como Deus, assim a matéria primeira possui semelhança com Deus na medida em que é ente, mas não na medida em que é em ato, pois o ente é de uma certa forma comum à potência e ao ato. À décima sétima deve-se dizer que Deus, dando o ser, simultaneamente produz aquilo que recebe o ser, de onde que não se segue que aja a partir de algo preexistente. |