SERMO LXXVII

Sobre as palavras da segunda
bênção do mesmo Balaão,
por ocasião da festa
de qualquer santo.




No sermão anterior interpretamos, na medida de nossas possibilidades, as coisas que estavam contidas na primeira bênção pela qual Balaão abençoou os filhos de Israel. Passaremos agora à interpretação das que estão contidas na segunda bênção.

Balac, muito irritado e queixando-se por causa de Balaão ter abençoado os filhos de Israel, pois esperava que os tivesse amaldiçoado, disse a Balaão:

"Vem comigo a outro lugar,
onde vejas só uma parte de Israel,
e não possas vê-lo todo,
e amaldiçoa-o daí".

Num. 23, 13

Conduziu-o então a um lugar elevado, no cimo do monte Fesga. Balaão, afastando-se e aceitando o conselho divino, retornou para Balac e lhe disse:

"Levanta-te, Balac, e escuta;
ouve, filho de Sefor.

Não é Deus como o homem,
para que minta,
nem como o filho do homem,
para que mude.

Ele disse, portanto, e não fará?
Ele falou, e não cumprirá?

Fui trazido para abençoar,
não posso proibir a bênção.

Não há ídolo em Jacó,
nem se vê simulacro em Israel.

O Senhor seu Deus está com ele,
e o clamor da vitória do rei nele.

Deus tirou-o do Egito,
cuja fortaleza é semelhante ao rinoceronte.

Não há agouro em Jacó,
nem adivinhação em Israel.

A seu tempo se dirá a Jacó e a Israel
o que Deus fêz.

Eis um povo que se levantará como uma leoa,
e se põe em pé como um leão;
não se deitará até que tenha devorado a presa,
e tenha bebido o sangue de suas vítimas".

Num. 23, 18-24

Disse então Balac a Balaão:

"Não o amaldiçoes,
nem o abençoes".

Num. 23, 25

Ao que Balaão lhe respondeu:

"Não te disse que eu haveria de fazer
tudo aquilo que o Senhor me ordenasse?"

Num. 23, 26

Muitas são as astúcias do demônio, pelas quais agride os justos e se esforça todos os dias para destruí-los. Assim é que Balac chama Balaão de lugar a lugar, para que amaldiçoe o povo de Deus, porque o demônio, quando não vence contra os justos de um modo, tenta de outro para vencer. Solicita aos mais vãos do povo vão que corrompam em parte o louvor dos bons pela maldição da injúria e da blasfêmia para que, não podendo destruir em sua totalidade a opinião dos santos, pelo menos a lesem em alguma parte. Isto, de fato, é o que significa ver em parte e amaldiçoar em parte.

Balaão se afasta e pede à vontade de Deus se pode amaldiçoar o povo de Deus (Num. 23, 15), pois em tais tentações freqüentemente o povo vão se recolhe dentro de si mesmo para investigar a vontade de Deus a este respeito. Quando, porém, reconhece a benevolência divina para com os eleitos, não se atreve a lançar sobre eles as suas maldições. Elevando então mais sublimemente a sua mente à contemplação destes eleitos, separa imediatamente palavras de bênção para proferir-lhes. Por isto é que Balaão, depois de ter aceito o conselho de Deus, disse a Balac:

"Levanta-te, Balac, e escuta;
ouve, filho de Sefor.

Não é Deus como o homem,
para que minta,
nem como o filho do homem,
para que mude.

Ele disse, portanto, e não fará?
Ele falou, e não cumprirá?

Fui trazido para abençoar,
não posso proibir a bênção".

Num. 23, 18-20

"Levanta-te, Balac". Estas palavras são como se ele dissesse:

`Desiste, demônio,
de incitar-me a blasfemar contra os justos,
porque se eu ousar fazê-lo,
isto será para mim a condenação,
e mesmo assim eu não impediria a sua salvação.
Deus, cujo coração não muda
e cuja boca não mente,
não muda de propósito
e não mente em sua palavra.
Ele propôs e prometeu
que haveria de abençoar todos os povos
na descendência de Abraão.
Aquilo, portanto,
que Ele propôs, não o fará?
E o que Ele disse, não o cumprirá?
De modo algum!

"Deus, de fato, é veraz;
todo homem, porém, é mentiroso".

Rom. 3, 4

Deus é veraz em suas promessas,
e pode-se efetivamente observar cotidianamente
o cumprimento de sua palavra.
A justificação e a salvação dos eleitos é a sua bênção'.

Diga então o povo vão:

`O que Deus estabeleceu cumprir,
porventura posso esvaziar pelas minhas maldições?'
Antes, ao contrário,

"Fui trazido para abençoar,
não posso proibir a bênção"'.

Os réprobos, portanto, quando se elevam para contemplar a vida dos justos, são também compelidos, pela própria admiração que lhes é causada, a proclamar a justiça daqueles aos quais não amam. O louvor desta bênção, procedendo mais da disposição divina do que de suas vontades, faz com que Balaão diga:

"Não posso proibir a bênção".

As palavras desta bênção são as seguintes:

"Não há ídolo em Jacó,
nem se vê simulacro em Israel.

O Senhor seu Deus está com ele,
e o clamor da vitória do rei nele".

Num. 23, 21

Vemos nestas palavras removidos os males do povo espiritual, ao mesmo tempo em que lhe são proclamados os bens. O ídolo e o simulacro são os males removidos do povo espiritual, males que no antigo povo carnal consta terem existido quase que continuamente. São-lhe também proclamados os bens, que no povo espiritual se encontram de modo verdadeiro e perfeito, motivo pelo qual o esposo, louvando a esposa, diz:

"Uma só é a minha pomba,
a minha perfeita".

Cant. 6, 8

São igualmente removidas do povo espiritual toda a idolatria e a infidelidade onde se diz:

"Não há ídolo em Jacó,
nem se vê simulacro em Israel".

Num. 23, 21

É proclamada a sua perfeita libertação e liberdade, onde se acrescenta:

"O Senhor seu Deus está com ele,
e o clamor da vitória do rei nele".

Num. 23, 21

O Senhor seu Deus estando com ele, já não serve ao faraó espiritual no Egito; o clamor da vitória do rei estando com ele, já canta no deserto com Moisés o cântico de ação de graças. Note-se com atenção que não se menciona o clamor da batalha, mas o clamor da vitória. Não houve, de fato, clamor de batalha nas coisas que precederam a libertação do povo, porque o Senhor lutou por ele e ele mesmo permaneceu em silêncio. E quanto às coisas que se seguiram à libertação do povo, não houve também clamor de batalha, porque Cristo,

"como um cordeiro diante de quem o tosquia,
permaneceu em silêncio e não abriu a sua boca",

Is. 53, 7

e os libertou,

"tomando sobre si os pecados de muitos".

Is. 53, 12

Dele também diz Isaías:

"Pisou sozinho no lagar,
e nenhum homem dentre os povos
estava com ele".

Is. 63, 3

O primeiro clamor da vitória foi, portanto, o cântico que Moisés cantou juntamente com os filhos de Israel libertados da escravidão do Faraó, rei do Egito, quando disse:

"Cantemos ao Senhor,
porque foi gloriosamente engrandecido,
precipitou no mar o cavalo e o cavaleiro".

Ex. 15, 1

O segundo clamor da vitória foi, porém, a ação de graças que, libertado da escravidão do demônio, cantou o Israel espiritual. Sob o nome de Sião, por meio de Isaías, diz o Senhor deste segundo clamor de vitória:

"Em Sião se encontrará o gozo e a alegria,
a ação de graças e a voz do louvor".

Is. 51, 3

Na medida, portanto, em que

"o Senhor seu Deus está com ele,
e o clamor da vitória do rei nele",

não há ídolo no Jacó espiritual, nem se vê simulacro em Israel, libertado que foi da escravidão dos demônios e retirado das trevas da infidelidade. Para confirmar esta sentença, a ela se lhe acrescenta:

"Deus tirou-o do Egito,
cuja fortaleza é semelhante ao rinoceronte".

Num. 23, 22

O rinoceronte é de natureza indomável, e Deus é inteiramente incompreensível e invencível. Rinoceronte, em latim, soa como "in nare cornu", o que significa "no nariz está o seu chifre". Como pelo nariz distinguimos entre os odores agradáveis e ruins, corretamente pelo nariz entendemos a temperança do discernimento, enquanto que pelo chifre entendemos a potência. A fortaleza de Deus é, portanto, como o rinoceronte, porque Deus sempre exerce a potência de sua fortaleza pela moderação de sua admirável discrição. De onde que está escrito:

"Tu, Senhor dos exércitos,
tudo julgas com tranquilidade".

Jer. 11, 20

E da sabedoria se lê que

"Atinge fortemente
desde uma extremidade a outra,
e tudo dispõe com suavidade".

Sab. 8, 1

Ao mesmo sentido pertence também aquela passagem do salmista:

"Enviou trevas e escuridão,
e não exacerbou as suas palavras".

Salmo 104, 28

Merecidamente, portanto, não se vê no Israel espiritual simulacro do antigo êrro, já que Deus o tirou do Egito da antiga infidelidade. Muitos há, porém, que embora sejam estimados pelo nome da cristandade e não submetam seus pescoços aos simulacros, se entregam, entretanto, por um sacrílego costume, a vários sortilégios e adivinhações. Corretamente se proclama, por isso, do verdadeiro Israel que

"Não há agouro em Jacó,
nem adivinhação em Israel".

Num. 23, 23

Aqueles que, de fato, colocam sua fé e esperança em tais vaidades, pertencem aos falsos israelitas. De onde que o Apóstolo, repreendendo aos Gálatas, diz:

"Observais os dias, os meses,
os tempos e os anos.
Temo por vós,
não tenha eu talvez
trabalhado inutilmente entre vós".

Gal. 4, 10-11

No verdadeiro Israel, porém, assim como não há ídolo nem simulacro, assim também não há agouro, não há adivinhação, não há encantamento nem qualquer observação supersticiosa ou o que quer que seja que se comprove contrário à sagrada fé.

Para mostrar ainda que este povo é digno não de maldição, mas de bênção, os seus bens espirituais são em seguida elegantemente proclamados, onde se diz:

"A seu tempo se dirá a Jacó e a Israel
o que Deus fêz".

Num. 23, 23

Dir-se-á a Jacó e a Israel o que Deus fêz, pois o próprio Deus lhos revelará, Ele mesmo

"que anuncia a sua palavra a Jacó,
suas justiças e seus julgamentos a Israel.
Não fêz assim com nenhuma outra nação,
e seus julgamentos não lhes manifestou".

Salmo 147, 19-20

Os julgamentos ou as obras de Deus são manifestados aos fiéis em diversos tempos e por diversos modos. São manifestados pela natureza, pela criatura, pela Lei, pela profecia, pela graça. São manifestados mais plenamente após a morte quando for recebida a primeira estola; serão manifestados plenissimamente após o fim do século quando for recebida a segunda estola e a posse da glória. Enquanto, porém, ainda estamos na via e não na pátria muitas coisas permanecem ocultas, poucas manifestas. Ainda que, conforme diz o salmista, Deus manifeste ao homem muitas coisas

"incertas e ocultas de sua sabedoria",

Salmo 50, 8

contudo o homem não sabe

"se é digno de amor ou de ódio,
mas tudo se reserva incerto para o futuro".

Ec. 9, 1-2

Os julgamentos ocultos de Deus sobre nós são "muitos abismos" (Salmo 35, 7), pois

"agora conhecemos em parte,
mas então conheceremos
assim como somos conhecidos".

I Cor. 13, 12

E assim,

"A seu tempo se dirá a Jacó e a Israel
o que Deus fêz".

Num. 23, 23

Segue-se:

"Eis um povo que se levantará como uma leoa,
e se põe em pé como um leão;
não se deitará até que tenha devorado a presa,
e tenha bebido o sangue de suas vítimas".

Num. 23, 24

A vida dos justos é comparada aos mais nobres entre os animais, para que por esta comparação se mostre claramente qual é a nobreza dos seus costumes. O leão são os homens robustos e perfeitos, a leoa os imperfeitos e enfermos. O leão são os contemplativos, a leoa os ativos. O leão é Israel, a leoa é Jacó. Sabe-se que quando o leão está com fome emite um rugido que o animal aterrorizado que o ouve pára e se imobiliza; o leão, então, capturando-o deste modo, bebe o seu sangue e come a sua carne. O leão supera também todos os outros animais por não temer a ferocidade de nenhum deles. Trata-se, de fato, do mais forte de todos os animais, aquele que não teme o encontro de nenhum outro. Assim também é o povo dos justos, principalmente a assembléia dos pregadores, quando têm fome da conversão dos que vivem mal. Emitem o terror da pregação e com isto prendem os homens e todos aqueles que vivem como animais, para que não possam mais correr pelos diversos vícios. Como que capturados pela boca, bebem o seu sangue quando consomem inteiramente a sua crueldade; matam-nos, para que morram para o mundo; e os comem, incorporando-os a si, quando pela fé os associam e unem a si mesmos. E assim como o leão supera os animais pela ferocidade, assim também estes superam os demais homens pela virtude, pois para se refazerem pela emenda dos pecadores, não temem o encontro de nenhuma crueldade. E nem

"se deitará, até que tenha devorado a presa,
e tenha bebido o sangue de suas vítimas",

Num. 23, 24

pois de modo algum cessarão de prender as almas que devem ser salvas, de uní-las a si e de consumirem as suas crueldades até que reconheçam ter-se completado, no fim dos tempos, o número dos eleitos.

Balaão, isto é, o povo vão, proclama freqüentemente este louvor dos justos; por isto Balac, isto é, o demônio, aquele que lhe havia sugerido palavras de blasfêmia e de maldição, é conduzido à ira. De onde que Balac diz a Balaão:

"Não o amaldiçoes,
nem o abençoes".

Num. 23, 25

O demônio, efetivamente, prefere que os amantes da vaidade silenciem por completo antes do que profiram o que quer que seja de bem dos bons. Deus ordena, porém, para o louvor de seu nome, que também pela boca dos maus algumas vezes cresça o louvor dos bons.

Que o Senhor nos conceda, irmãos caríssimos, que sempre sejamos partícipes da graça e do louvor dos justos, até que com eles, auxiliados pelas suas preces e pelos seus méritos, mereçamos entrar na pátria da suprema promissão.

E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, nosso Senhor, que é Deus bendito pelos séculos.

Amén.