No sermão anterior interpretamos, na medida de nossas possibilidades, as coisas que estavam contidas na primeira bênção pela qual Balaão abençoou os filhos de Israel. Passaremos agora à interpretação das que estão contidas na segunda bênção. Balac, muito irritado e queixando-se por causa de Balaão ter abençoado os filhos de Israel, pois esperava que os tivesse amaldiçoado, disse a Balaão:
Conduziu-o então a um lugar elevado, no cimo do monte Fesga. Balaão, afastando-se e aceitando o conselho divino, retornou para Balac e lhe disse:
Disse então Balac a Balaão:
Ao que Balaão lhe respondeu:
Muitas são as astúcias do demônio, pelas quais agride os justos e se esforça todos os dias para destruí-los. Assim é que Balac chama Balaão de lugar a lugar, para que amaldiçoe o povo de Deus, porque o demônio, quando não vence contra os justos de um modo, tenta de outro para vencer. Solicita aos mais vãos do povo vão que corrompam em parte o louvor dos bons pela maldição da injúria e da blasfêmia para que, não podendo destruir em sua totalidade a opinião dos santos, pelo menos a lesem em alguma parte. Isto, de fato, é o que significa ver em parte e amaldiçoar em parte. Balaão se afasta e pede à vontade de Deus se pode amaldiçoar o povo de Deus (Num. 23, 15), pois em tais tentações freqüentemente o povo vão se recolhe dentro de si mesmo para investigar a vontade de Deus a este respeito. Quando, porém, reconhece a benevolência divina para com os eleitos, não se atreve a lançar sobre eles as suas maldições. Elevando então mais sublimemente a sua mente à contemplação destes eleitos, separa imediatamente palavras de bênção para proferir-lhes. Por isto é que Balaão, depois de ter aceito o conselho de Deus, disse a Balac:
"Levanta-te, Balac". Estas palavras são como se ele dissesse:
Diga então o povo vão:
Os réprobos, portanto, quando se elevam para contemplar a vida dos justos, são também compelidos, pela própria admiração que lhes é causada, a proclamar a justiça daqueles aos quais não amam. O louvor desta bênção, procedendo mais da disposição divina do que de suas vontades, faz com que Balaão diga:
As palavras desta bênção são as seguintes:
Vemos nestas palavras removidos os males do povo espiritual, ao mesmo tempo em que lhe são proclamados os bens. O ídolo e o simulacro são os males removidos do povo espiritual, males que no antigo povo carnal consta terem existido quase que continuamente. São-lhe também proclamados os bens, que no povo espiritual se encontram de modo verdadeiro e perfeito, motivo pelo qual o esposo, louvando a esposa, diz:
São igualmente removidas do povo espiritual toda a idolatria e a infidelidade onde se diz:
É proclamada a sua perfeita libertação e liberdade, onde se acrescenta:
O Senhor seu Deus estando com ele, já não serve ao faraó espiritual no Egito; o clamor da vitória do rei estando com ele, já canta no deserto com Moisés o cântico de ação de graças. Note-se com atenção que não se menciona o clamor da batalha, mas o clamor da vitória. Não houve, de fato, clamor de batalha nas coisas que precederam a libertação do povo, porque o Senhor lutou por ele e ele mesmo permaneceu em silêncio. E quanto às coisas que se seguiram à libertação do povo, não houve também clamor de batalha, porque Cristo,
e os libertou,
Dele também diz Isaías:
O primeiro clamor da vitória foi, portanto, o cântico que Moisés cantou juntamente com os filhos de Israel libertados da escravidão do Faraó, rei do Egito, quando disse:
O segundo clamor da vitória foi, porém, a ação de graças que, libertado da escravidão do demônio, cantou o Israel espiritual. Sob o nome de Sião, por meio de Isaías, diz o Senhor deste segundo clamor de vitória:
Na medida, portanto, em que
não há ídolo no Jacó espiritual, nem se vê simulacro em Israel, libertado que foi da escravidão dos demônios e retirado das trevas da infidelidade. Para confirmar esta sentença, a ela se lhe acrescenta:
O rinoceronte é de natureza indomável, e Deus é inteiramente incompreensível e invencível. Rinoceronte, em latim, soa como "in nare cornu", o que significa "no nariz está o seu chifre". Como pelo nariz distinguimos entre os odores agradáveis e ruins, corretamente pelo nariz entendemos a temperança do discernimento, enquanto que pelo chifre entendemos a potência. A fortaleza de Deus é, portanto, como o rinoceronte, porque Deus sempre exerce a potência de sua fortaleza pela moderação de sua admirável discrição. De onde que está escrito:
E da sabedoria se lê que
Ao mesmo sentido pertence também aquela passagem do salmista:
Merecidamente, portanto, não se vê no Israel espiritual simulacro do antigo êrro, já que Deus o tirou do Egito da antiga infidelidade. Muitos há, porém, que embora sejam estimados pelo nome da cristandade e não submetam seus pescoços aos simulacros, se entregam, entretanto, por um sacrílego costume, a vários sortilégios e adivinhações. Corretamente se proclama, por isso, do verdadeiro Israel que
Aqueles que, de fato, colocam sua fé e esperança em tais vaidades, pertencem aos falsos israelitas. De onde que o Apóstolo, repreendendo aos Gálatas, diz:
No verdadeiro Israel, porém, assim como não há ídolo nem simulacro, assim também não há agouro, não há adivinhação, não há encantamento nem qualquer observação supersticiosa ou o que quer que seja que se comprove contrário à sagrada fé. Para mostrar ainda que este povo é digno não de maldição, mas de bênção, os seus bens espirituais são em seguida elegantemente proclamados, onde se diz:
Dir-se-á a Jacó e a Israel o que Deus fêz, pois o próprio Deus lhos revelará, Ele mesmo
Os julgamentos ou as obras de Deus são manifestados aos fiéis em diversos tempos e por diversos modos. São manifestados pela natureza, pela criatura, pela Lei, pela profecia, pela graça. São manifestados mais plenamente após a morte quando for recebida a primeira estola; serão manifestados plenissimamente após o fim do século quando for recebida a segunda estola e a posse da glória. Enquanto, porém, ainda estamos na via e não na pátria muitas coisas permanecem ocultas, poucas manifestas. Ainda que, conforme diz o salmista, Deus manifeste ao homem muitas coisas
contudo o homem não sabe
Os julgamentos ocultos de Deus sobre nós são "muitos abismos" (Salmo 35, 7), pois
E assim,
Segue-se:
A vida dos justos é comparada aos mais nobres entre os animais, para que por esta comparação se mostre claramente qual é a nobreza dos seus costumes. O leão são os homens robustos e perfeitos, a leoa os imperfeitos e enfermos. O leão são os contemplativos, a leoa os ativos. O leão é Israel, a leoa é Jacó. Sabe-se que quando o leão está com fome emite um rugido que o animal aterrorizado que o ouve pára e se imobiliza; o leão, então, capturando-o deste modo, bebe o seu sangue e come a sua carne. O leão supera também todos os outros animais por não temer a ferocidade de nenhum deles. Trata-se, de fato, do mais forte de todos os animais, aquele que não teme o encontro de nenhum outro. Assim também é o povo dos justos, principalmente a assembléia dos pregadores, quando têm fome da conversão dos que vivem mal. Emitem o terror da pregação e com isto prendem os homens e todos aqueles que vivem como animais, para que não possam mais correr pelos diversos vícios. Como que capturados pela boca, bebem o seu sangue quando consomem inteiramente a sua crueldade; matam-nos, para que morram para o mundo; e os comem, incorporando-os a si, quando pela fé os associam e unem a si mesmos. E assim como o leão supera os animais pela ferocidade, assim também estes superam os demais homens pela virtude, pois para se refazerem pela emenda dos pecadores, não temem o encontro de nenhuma crueldade. E nem
pois de modo algum cessarão de prender as almas que devem ser salvas, de uní-las a si e de consumirem as suas crueldades até que reconheçam ter-se completado, no fim dos tempos, o número dos eleitos. Balaão, isto é, o povo vão, proclama freqüentemente este louvor dos justos; por isto Balac, isto é, o demônio, aquele que lhe havia sugerido palavras de blasfêmia e de maldição, é conduzido à ira. De onde que Balac diz a Balaão:
O demônio, efetivamente, prefere que os amantes da vaidade silenciem por completo antes do que profiram o que quer que seja de bem dos bons. Deus ordena, porém, para o louvor de seu nome, que também pela boca dos maus algumas vezes cresça o louvor dos bons. Que o Senhor nos conceda, irmãos caríssimos, que sempre sejamos partícipes da graça e do louvor dos justos, até que com eles, auxiliados pelas suas preces e pelos seus méritos, mereçamos entrar na pátria da suprema promissão. E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, nosso Senhor, que é Deus bendito pelos séculos. Amén. |