Caríssimos, quem roga ser curado reconhece-se enfermo. Quem é, porém, este enfermo? É o gênero humano, em cuja voz são ditas estas coisas. Enfermo pelo pecado original e por muitos pecados atuais, buscava o seu médico. O médico veio e o doente foi curado. Propomo-nos expor doze coisas que dizem respeito à cura do gênero humano: o doente, o médico, as feridas, o remédio, os frascos, os antídotos, a dieta, os dispensadores, o lugar, o tempo, a saúde e a alegria pela recuperação da própria saúde. Este doente é o gênero humano, de cuja doença Isaías testemunhou, dizendo:
A ferida, a inflamação e a chaga não foram atadas, nem tratadas com medicamentos, nem cobertas com óleo. Em outro lugar da Escritura, há ainda outro que clama:
Assim também clamam os membros do gênero humano, demonstrando a dor de sua enfermidade. Mas, conforme foi dito, o médico veio, e o enfermo foi curado. Quem é este médico?
As feridas são o pecado original, que se manifesta na mente pela ignorância e na carne pela concupiscência, e os pecados atuais, cometidos quando se vive mal. O pecado original procede de nossos pais, os pecados atuais são produto de nossa obra. A procedência do primeiro é alheia, a dos segundos é própria. O remédio é a graça, infundida de dois modos em nossas feridas, um amargo, outro doce. O amargo é pela repreensão, o doce pela consolação. A repreensão é o vinho, a consolação é o óleo. Os frascos são os sacramentos, nos quais e pelos quais a graça espiritual é contida e conduzida, como a água do Batismo, o óleo do Crisma e outros. Os antídotos são os sete dons do Espírito Santo, o espírito de sabedoria e de inteligência, o espírito de conselho e de fortaleza, o espírito de ciência e de piedade, e o espírito de temor do Senhor, para que sejamos humildes pelo temor, misericordiosos pela piedade, discretos pela ciência, invictos pela fortaleza, previdentes pelo conselho, cautelosos pela inteligência, maduros pela sabedoria. O temor expele o orgulho, a piedade a crueldade, a ciência a indiscrição, a fortaleza a debilidade, o conselho a imprevidência, a inteligência a incautela, a sabedoria a insensatez. Que bons antídotos são estes, pelos quais curam- se os abcessos! A dieta é a Sagrada Escritura, que nos é servida de modos diversos, ensinada segundo a diversa capacidade dos ouvintes. Ora é servida aos ouvintes ou leitores pela história, ora pela alegoria, ora pela tropologia, ora pela anagogia; ora também pela autoridade do Velho testamento, ora pela do Novo; ora envolta pelo véu do mistério, ora pura, nua e aberta. Por tais modos e por muitos outros nos é servido este alimento espiritual, para que por ele sejamos confortados em nossa enfermidade e reconduzidos à saúde. A Escritura é dita corretamente ser dieta quando fazemos as coisas que nela lemos que devem ser feitas, e quando evitamos as coisas que nela lemos que devem ser evitadas. Seguimos deste modo os preceitos alimentares dos médicos, comendo isto e evitando aquilo. Os dispensadores são os sacerdotes, os quais, conferindo-nos os sacramentos, administram admiravelmente a graça proveniente da oculta distribuição do Sumo Dispensador. São servos do Sumo Médico, e segundo a sua vontade devem usar de seus frascos e remédios. O lugar é este mundo ao qual, após o pecado, procedente do Paraíso, o homem foi transferido como que para uma enfermaria, para que pudesse aplicar-se à cura de sua enfermidade e receber a saúde. O tempo que Deus concedeu ao homem para que nele pudesse ser restituído à saúde é o século presente, dividido em três tempos, que são o tempo da lei natural, o tempo da lei escrita e o tempo da graça. O tempo da lei natural foi o de Adão até Moisés, o tempo da lei escrita foi o de Moisés até Cristo, e o tempo da graça foi o do nascimento de Cristo até o fim do mundo. Deve-se notar também que este lugar em que o doente é curado é áspero, o tempo é longo e o remédio é eficaz. O lugar é áspero para que o prevaricador se corrija, o tempo é longo para que aquele que há de curar-se não se preocupe, o remédio é eficaz para que o enfermo se cure. A saúde são as virtudes. Quando o homem se exercita nas virtudes, os vícios são expelidos e adquire-se a saúde. As virtudes expelem os vícios. A humildade expele a soberba, a caridade a inveja, a paz a ira, a alegria a acédia, a generosidade a avareza, a abstinência a gula, a castidade a luxúria. As virtudes, tomando o lugar dos vícios, são a cura das doenças. A alegria pela saúde recuperada são as bem aventuranças. O homem se entristece quando se torna enfermo; alegra-se, porém, quando é curado. Assim também no século presente lamentamo-nos da enfermidade de nossa corrupção. Quando, porém, na ressurreição, nos elevarmos à verdadeira saúde, haveremos de nos alegrar na eterna bem aventurança da saúde alcançada.
Cura-me da enfermidade, cura-me da perdição. Cura-me da culpa, cura-me da pena. Cura-me no tempo, salva-me na eternidade, porque tu és o meu louvor em ambos, que vives e reinas. Amén. |