SERMO IX

Sobre a festividade da concepção
da Bem aventurada Virgem
e, mais ainda, sobre o desposório
de qualquer alma fiel.




"Toda formosa és,
amiga minha,
e em ti não há mácula".

Cant. 4, 7

Quem é este, irmãos, que fala, e quem é aquela a quem se dirige? Fala o amigo à amiga, o esposo à esposa, o imaculado à casta, o incorrupto à íntegra, Deus à alma, e àquela que assim foi, cuja solenidade hoje celebramos, cujos exemplos de castidade irradiamos.

"Toda formosa és".

Formosa és interiormente, formosa és exteriormente. Interiormente no coração, exteriormente no corpo. Interiormente rubra, exteriormente cândida, em ambos ornamentada. Rubra pela caridade, cândida pela castidade, ornamentada pela humildade. Portanto,

"toda formosa és,
amiga minha,
e em ti não há mácula".

Tudo o que há em ti é formoso, e nada há em ti que seja sórdido. Agradável em tudo, desagradável em nada, por tudo agradas, em nada desagradas.

"Toda formosa és".

Formosa pela natureza, mais formosa pela graça, formosíssima és pela glória.

Quais, irmãos caríssimos, e de que qualidade considerais que devem ser os ornamentos com que a esposa de Deus, a alma do justo, possa aformosear-se, para que o seu decoro seja assim ornamentado?

Lemos a extrema diligência com que o rei Assuero fêz preparar as donzelas conduzidas ao seu tálamo, lavando-as com banhos, ungindo-as com óleo e adornando-as com tudo o que fosse conveniente ao seu decoro (Est. 2). Assim também e muito mais Deus preparará para si a sua esposa, enriquecendo- a com todas as coisas que pertencem ao decoro da forma espiritual.

Confere-lhe primeiramente o lavacro pela compunção e pelo choro dos pecados, para que possa purificar-se, como que aspergida pelo hissopo, da imundície de seus crimes e, assim lavada, se torne mais branca do que a neve. Os óleos são os dons espirituais pelos quais, após o pranto, já banhada pelas tristezas. é abrandada pela severidade. Seguem- se-lhes os ornamentos, as vestes, o cinto, o anel, o colar, o pente, o laço, os brincos, o diadema, o espelho, os calçados.

As vestes designam a variedade das virtudes e das boas obras, pelas quais a alma é ornamentada e honrada interna e externamente diante de Deus e do próximo. Desta múltipla variedade está escrito:

"A rainha, de pé, à tua destra.
com vestes douradas,
é circundada pela multidão".

Salmo 44, 10

O cinto, pelo qual cingimos os rins, significa a castidade, pela qual refreia-se o fluxo da luxúria da carne humana, conforme está escrito:

"Estejam cingidos
os vossos rins".

Luc. 12, 35

O anel significa a fé íntegra, pela qual a esposa ama ao esposo ausente e aspira, por um contínuo desejo, chegar à sua presença.

O colar, colocado no peito, para que o adúltero não lhe ponha a mão, designa o casto amor, que não permite que por algum mau pensamento seja violado pelo demônio.

O pente, que separa os cabelos entre si, figura a virtude do discernimento.

O laço, que une os cabelos para que não esvoacem, sugere a sobriedade e a quietude dos pensamentos.

Os brincos, por serem ornamentos dourados, designam a obediência.

O diadema figura a glória da consciência, da qual está escrito:

"Nossa glória é esta:
o testemunho de nossa consciência".

II Cor. 1, 12

O espelho significa o estudo das Escrituras, no qual a alma contempla o que há em si de bom, de mau, de honesto e de desonesto.

Os calçados, que são proteção para os pés, pelos quais nos movemos por diversos lugares, significam o ensino, levado a todos os lugares.

A todas estas coisas freqüentemente se acrescentam pedras preciosas as quais, por causa de seu fulgor, designam os milagres que relampejam longe e largamente.

Ó feliz esposa de Deus, alma do justo, formosa por tais ornamentos, preparada para o tálamo do rei eterno! Muito pode, confiadamente, uma tal alma.

Algumas vezes ocorre, todavia, que a alma, enriquecida pelos dons divinos, ao contemplar os julgamentos de Deus, seja tomada de grande terror e muito afligida pelo medo, do que a história de Ester nos fornece um exemplo. Lemos, de fato, que Ester, encontrando o rei Assuero sentado em seu trono defronte à câmara real, empunhando um cetro e com os olhos chamejantes indicando o furor de seu poder, perdeu os sentidos e só com muita dificuldade pôde tornar a erguer-se com o auxílio do rei e de seus ministros que a consolavam (Est. 5; Est. 15).

O que significa, irmãos, nesta história o rei Assuero, senão Deus? O que significa Ester, senão a alma? O que é a câmara real, senão a divindade? O que é o trono, senão a sua majestade? O que é o cetro, senão o seu poder? O que figura o ardor chamejante de seus olhos, senão o terror do supremo julgamento? Ester, vendo o rei deste modo, desmaia espavorida; e a alma, contemplando a Deus e seus severos julgamentos, treme diante da divina majestade. Retome, porém, as forças, os dons que lhe foram concedidos, considere as consolações que lhe foram feitas, e diga:

"Mesmo que me mate,
nEle esperarei.
Bom é o Senhor
para os que nEle esperam,
para a alma que O busca",

o qual vive e reina, pelos séculos dos séculos.

Amén.