TRATADO SOBRE OS QUATRO GRAUS
DA CONSUMAÇÃO DA CARIDADE

IIIª PARTE



Penetremos ainda mais profundamente e falemos mais abertamente.

No primeiro grau a alma tem sede de Deus, no segundo grau tem sede a Deus, no terceiro tem sede em Deus, no quarto tem sede segundo Deus.

Tem sede de Deus a alma que diz:

"A minha alma te deseja de noite, mas pelo meu espírito vigiar-te-ei de manhã em meu coração".

Is. 26, 9

Tem sede a Deus a alma quando diz:

"A minha alma teve sede a Deus forte e vivo; quando virei, a apresentar-me-ei diante da face de Deus? "

Salmo 41, 3

Tem sede em Deus a alma quando diz:

"Em ti teve sede a minha alma, deseja-te a minha carne, como terra árida e sedenta, sem água".

Salmo 62, 2

Tem sede segundo Deus a alma que diz:

"Quis a minha alma, ó Senhor, desejar as tuas justificações em todo o tempo".

Salmo 118, 20

A alma tem sede de Deus quando deseja experimentar o que é aquela interna doçura que costuma inebriar a mente do homem, quando começa a saborear e a ver quão suave é o Senhor. A alma tem sede a Deus quando pela graça da contemplação deseja elevar-se acima de si mesmo e ver a Lei em sua beleza, para que verdadeiramente ouça e diga:

"Porque vi o Senhor face a face, a minha alma foi salva".

Gen. 32, 30

A alma tem sede em Deus quando pelo excesso mental deseja ser inteiramente transportada em Deus, de tal maneira que, completamente esquecida de si, possa dizer:

"Se no corpo ou fora do corpo, não o sei, Deus o sabe".

II Cor. 12, 2

A alma tem sede segundo Deus quando de sua própria vontade, já não digo quanto às coisas carnais, mas nem mesmo nas espirituais a alma deixa algo ao seu arbítrio, mas tudo entrega a Deus, nunca pensando nas coisas que são suas, mas das que são de Jesus Cristo, de modo que também ela possa dizer:

"Não vim fazer a minha vontade, mas a vontade de meu Pai que está nos céus".

Jo. 5, 30

No primeiro grau Deus entra à alma, e a alma volta-se a si mesma. No segundo grau sobe acima de si mesmo e eleva-se a Deus. No terceiro grau a alma elevada a Deus transita toda nEle. No quarto a alma sai por causa de Deus, e desce abaixo de si mesmo.

No primeiro a alma entra a si mesmo, no segundo ultrapassa a si mesmo. No primeiro caminha para si mesmo, no terceiro caminha para o seu Deus. No primeiro entra por causa de si mesmo, no quarto sai por causa do próximo. No primeiro entra pela meditação, no segundo sobe pela contemplação, no terceiro retorna em júbilo, no quarto sai pela compaixão.

No primeiro grau aquele espírito mais doce do que o mel entra na alma e a inebria pela sua doçura, tanto que tenha mel e leite sob a sua língua, e seus lábios se tornem favos destilando o mel. Os que são assim derramam a memória da abundância da suavidade, porque a boca fala da abundância do coração. Esta é a primeira consolação que os que abandonam o século recebem primeiro, e que costuma consolidar o bom propósito. Este é o pão celestial que costuma refazer e apascentar na solidão os que saem do Egito, este é aquele maná escondido que ninguém conhecerá senão quem o recebeu. Esta é aquela doçura espiritual e interna suavidade que como que ao modo de crianças recém nascidas sempre costuma amamentar e alimentar e conduzir gradativamente à força da maturidade.

Assim, neste estado, a alma é conduzida por Deus para a solidão, e ali é amamentada, para que se inebrie pela doçura interior. Ouve o que se diz deste estado, onde o Senhor fala pelo profeta:

"Por causa disto, eis que eu a amamentarei, e a conduzirei à soledade, e falarei ao seu coração".

Os. 2, 14

Antes, porém, é necessário abandonar o Egito, antes é necessário atravessar o Mar Vermelho. Antes é necessário matar os egípcios nas águas, antes é necessário faltar os alimentos do Egito, antes que possamos apreender este alimento e esta comida espiritual. Abandone o Egito não somente com o corpo, mas também pelo coração, e deponha completamente o amor do mundo aquele que deseja estas comidas da celeste soledade. Atravesse o Mar Vermelho, estude como possa expulsar toda a tristeza e amargura do coração, quem deseja saciar-se da doçura interior. Sejam antes submetidos os egípcios e morram os de costumes perversos de que os cidadãos angélicos desprezam o convívio degenerado. É necessário antes desprezar a comida egípcia e transformar os prazeres carnais em abominação para que seja lícito experimentar o que sejam aquelas delícias internas e externas. Sem dúvida, quanto mais pleno for o amor de Deus mais ele vencerá todo outro afeto e tanto mais freqüentemente quanto mais alegremente a alma tiver se refeito pelo gozo interior. Neste estado a alma

"suga o mel da pedra, e o azeite da rocha duríssima".

Deut. 32, 13

Neste estado

"os montes destilarão doçura, e os outeiros manarão leite".

Joel 3, 18

Neste estado o Senhor visita freqüentemente a alma faminta e sedenta, freqüentemente a sacia pela suavidade interior, e inebria o espírito pela sua doçura. Neste estado freqüentemente o Senhor desce do céu, freqüentemente visita o que jaz nas trevas e na sombra da morte (Mt. 4, 16), freqüentemente a glória do Senhor preenche o tabernáculo da Aliança (Ex. 40, 32). Exibe, assim, a sua presença, de tal modo, porém, que não mostra a sua face. Infunde a sua doçura, mas não mostra a sua beleza. Infunde a suavidade, mas não mostra a claridade. Pode-se, assim, sentir a sua suavidade, mas não se vê a sua espécie. Ainda há nuvens e escuridão à sua volta. Seu trono ainda está numa coluna de nuvens. E suave e muito brando o que é sentido, mas inteiramente nublado o que é visto. De fato, ainda não apareceu em luz. E embora apareça em fogo, todavia mais no fogo que acende do que iluminante. Acende, de fato, o afeto, mas ainda não ilumina o intelecto. Inflama o desejo, mas não ilumina a inteligência. Neste estado a alma pode sentir o seu amado, mas, conforme dissemos, não pode ver. E, se vê, vê, de fato, como que de noite, vê como que sob a nuvem, vê, finalmente, pelo espelho como em enigma, não ainda face a face. De onde que diz:

"Ilumina a tua face sobre o teu servo".

Salmo 118, 135

Isto, portanto, é o que ocorre neste primeiro grau do amor, isto é, que enquanto a mente é freqüentemente visitada, freqüentemente faz refeição, freqüentemente é inebriada, às vezes é estimulada a ousar coisas maiores. Começa, portanto, finalmente, às vezes a presumir coisas maiores, e pedir coisas mais sublimes. Tanto que ousa dizer:

"Se achei graça na tua presença, mostra-me a tua face".

Ex. 33, 13

Todavia, não é imediatamente que se recebe o que é pedido, embora seja postulado pelo íntimo desejo. É necessário que seja pedido ardentemente, seja buscado diligentemente, que se bata fortemente e em todas as coisas insistir com pertinácia, se quisermos obter o desejado. Não te parece ter trabalhado há longo tempo e muito e já desfalecer completamente e como que decair da esperança aquele que diz:

"Até quando, Senhor, esquecer-te-ás de mim até o fim, até quando esconderás de mim a tua face?"

Salmo 12, 1

Mas, sabendo que todo o que pede recebe, e quem busca acha, e ao que bate será aberto, novamente e muitas vezes recebe a confiança, e retoma as suas forças, e diz:

"O meu coração fala-te, a minha face busca-te, procura, Senhor, a tua face".

Salmo 26, 8

Quando, portanto, a mente com grande estudo e ardente desejo avança à graça da divina contemplação, já como que se aproxima do segundo grau do amor, quando merece pela revelação ver aquilo que o olho não viu, nem o coração ouviu, nem passou pelo coração do homem (I Cor. 2, 9), de tal maneira que possa verdadeiramente dizer:

"A nós, porém, revelou-o Deus pelo seu Espírito".

I Cor. 2, 10

Não te parece porventura ter recebido esta graça aquele que mereceu ver os anjos subindo e descendo, e simultaneamente ao Senhor no alto do mesmo? De onde que diz:

"Vi a Deus face a face, e a minha alma foi salva".

Gen. 32, 30

Havia recebido a graça, e como que acostumado repetia, quem dizia:

"Envia a tua luz e a tua verdade, eles me levarão e me conduzirão ao teu santo monte, e aos teus tabernáculos".

Salmo 42, 3

Receberam esta graça e voavam pelas asas da contemplação aqueles aos quais o profeta via admirando e admirava vendo:

"Quem são estes",

diz ele,

"que voam como nuvens, e como pombas para os seus pombais?"

Is. 60, 8

Neste grau de contemplação são sustentados pelas asas de sua alma acima da altura das nuvens; neste grau voam com tais asas até o céu, não somente até o primeiro, mas também até o segundo, de tal maneira que possam dizer:

"Nossa conversação está nos céus".

Fil. 3, 20

Acima destes dois céus há ainda um terceiro céu, que é dito céu dos céus. A este terceiro céu de nenhuma forma podem subir mesmo aqueles que alcançaram o segundo grau do amor. O que é a terra para o primeiro céu, e o que é o primeiro céu para o segundo, isto é o segundo céu ao céu dos céus. O segundo céu, assim, se o quereis, é terra e o céu, ao contrário, é o céu dos céus. Mas o céu dos céus é para o primeiro céu, a terra porém para o céu dos céus. O profeta quis referir-se a esta terra, conforme penso, ao dizer:

"A minha porção está na terra dos viventes".

Salmo 141, 6

Esta terra, assim, tem o seu céu; tem também o seu sol. Penso que outro não é este sol do que aquele que no-lo indica o Senhor pelo profeta:

"Não se porá mais o teu sol, e a tua lua não minguará, porque o Senhor te servirá de luz eterna, e terão acabado os dias do teu pranto".

Is. 60, 20

Se, portanto, estás neste céu ou estás nesta terra podes ver aquele sol sob o qual queimam e ardem aqueles espíritos angélicos que são ditos serafins, isto é, ardentes, os quais mereceram ter este nome pelo fato de não haver entre todos eles ninguém que se esconde de seu calor. Podes, assim, ver o sol de justiça se estás nesta terra e alcançaste o segundo grau de amor, e te será dito:

"Não haverá mais para ti sol para brilhar de dia, nem o resplendor da lua te iluminará, mas o Senhor será para ti uma luz eterna. e Deus a tua glória".

Is. 60, 19

Neste estado é possível experimentar a verdade daquela sentença, a qual diz que

"Doce é a luz, e deleitável para os olhos é ver o Sol".

Ec. 11, 7

Neste estado a alma, ensinada pelo magistério da experiência, salmodia conforme a sentença:

"Na verdade é melhor um só dia nos teus átrios do que milhares fora deles".

Salmo 83, 11

Verdadeiramente quem será digno de explicar quanta é a felicidade desta visão? Esta felicidade, uma vez experimentada, uma vez saboreada, assim como quando presente não pode causar tédio, assim também quando ausente não pode ser esquecida. Quando, de fato, a alma decai daquela luz, e retorna a si mesmo, traz dali consigo alguns restos de pensamentos pelos quais se refaz a si mesma, melhor ainda, faz um dia de festa, conforme diz a Escritura quando diz:

"Pois o pensamento do homem confessar-te-á, e os pensamentos restantes farão para ti um dia de festa".

Salmo 75, 11

Considera pois qual não será a solenidade na abundância da visão, se com os pensamentos restantes realiza-se uma festa. Qual será a alegria na própria visão, se há tanta deleitação na sua lembrança? Assim, neste estado, a revelação da luz divina, a admiração pela contínua recordação da revelação, e a memória perene, atam tão indissoluvelmente a alma que ela não possa esquecer-se da alegria experimentada. E assim como no grau anterior a suavidade saboreada sacia a alma e transpassa o afeto, assim neste grau a claridade vista ata o pensamento de tal maneira que não é possível esquecer-se dela ou cogitar em outra coisa. No segundo grau, deste modo, conforme foi dito, o céu dos céus e aquela luz inacessível pode ser vista, mas não pode ser alcançada, pois outrossim não seria inacessível, se pudesse ser alcançada:

"Bem aventurado",

diz o Apóstolo,

"o Rei dos reis e Senhor dos senhores, o único que possui a imortalidade e que habita numa luz inacessível".

I Tim. 6, 15-16

Não é possível alcançar o que é inacessível.

Finalmente, o Apóstolo gloria-se de ter sido arrebatado àquela região de luz eterna:

"Conheci",

diz o Apóstolo,

"um homem em Cristo, não sei se no corpo ou fora do corpo, Deus o sabe, que foi arrebatado até o terceiro céu".

II Cor. 12,2

O terceiro grau de amor, deste modo, ocorre quando a mente do homem é arrebatada naquele abismo de luz divina de tal modo que a alma humana, neste estado, inteiramente esquecida de tudo o que é exterior, desconhece a si mesma e transita inteiramente para o seu Deus, e realiza o que está escrito:

"Subiste ao alto, (ó Senhor), cativaste a catividade, recebeste dons dos homens, até dos que não crêem habitar o Senhor Deus".

Salmo 67, 19

Neste estado está plenamente recolhida, profundamente adormecida a turba dos desejos carnais, e faz-se no céu um silêncio como que de meia hora (Apoc. 8,1). E tudo o que pode haver de molesto será absorvido pela glória. Neste estado, quando a alma é alienada de si mesma, quando naquele recôndito do divino arcano é arrebatada, quando é circundada por aquele incêndio do amor divino, intimamente penetrada por todos os lados, inflama-se a si mesma, é inteiramente despojada, reveste-se de um certo afeto divino e, configurada à beleza vista, transita inteiramente a outra glória.

Vê qual a diferença que há entre ferro e ferro, entre ferro frio e ferro ardente, isto é, entre a alma e alma, entre a alma tépida e a alma inflamada pelo divino incêndio. Quando o ferro é arremessado ao fogo, sem dúvida em primeiro lugar é visto tão frio quanto negro. Mas à medida em que permanece no incêndio do fogo, gradativamente depõe sua negritude e, incandescendo-se pouco a pouco, pouco a pouco traz para si a semelhança do fogo, até que finalmente se liquefaz todo e, desfalecendo completamente de si mesmo, transita inteiramente a outra qualidade. Assim também a alma, observada na figura do amor divino e no incêndio do íntimo amor, e circundada por toda a parte pela esquadra dos desejos eternos, primeiro se aquece, depois de incendeia, finalmente se liqüefaz toda e desfalece inteiramente de seu primitivo estado. Queres ouvir os já aquecidos por este fogo, e já ardendo pelas chamas dos desejos interiores?

"Não ardia em nós o nosso coração quando nos falava pelo caminho, e nos abria as Escrituras?"

Lc. 24, 32

Não se aqueciam eles, porventura, pela chama derramada da divindade e como que pela glória vista e, configurados à divina luz como que transitam para uma outra glória, eles que, especulando a glória do Senhor, pela revelação de sua face se transformam na mesma imagem de claridade em claridade como que pelo Espírito do Senhor? Queres ainda ouvir a alma ardendo e liqüefeita pelo fogo da lição divina?

"A minha alma liquefez-se, ao ouvir a sua voz".

Cant. 5, 6

É em si mesmo imediatamente admitido àquele interno segredo do divino arcano, pela grandeza da admiração, pela abundância da alegria. Ou melhor, é completamente reduzido naquilo que fala, quando começa a ouvir aquelas palavras secretas que não é lícito ao homem proferir, e a entender que lhe são manifestadas as coisas incertas e ocultas da sabedoria divina. Neste estado o Espírito tudo investiga, mesmo as profundidades de Deus. Neste estado, quem adere ao Senhor é um espírito com Ele. Neste estado, conforme está escrito, a alma se liqüefaz toda naquele a quem ama, e em si mesmo desfalece toda, de onde que diz:

"Confortai-me com flores, forrai-me de romãs, porque desfaleço de amor".

Cant. 2, 5

Assim como, portanto, nos líquidos ou nas coisas liqüefeitas vemos não haver nada de dureza ou de firmeza, mas que cedem a todas as coisas duras e rígidas, e assim como nos doentes vemos nada ter de vigor próprio ou de virtude nativa, mas tudo o que lhes auxilia depende do arbítrio alheio, assim também aqueles que alcançam este terceiro grau de amor nada mais fazem pela própria vontade; totalmente nada deixam ao seu arbítrio, mas entregam tudo à divina disposição; todo o seu propósito, todo o seu desejo depende do aceno divino, diz respeito ao arbítrio divino. E assim como o primeiro grau fere o afeto, e assim como o segundo ata o pensamento, assim também o terceiro enreda o agir, de tal maneira que não possa inteiramente ocupar-se acerca de nada senão daquilo ao que a divina vontade conduz ou impele.

Quando, portanto, a alma tiver sido cosida deste modo pelo fogo divino, medularmente abrandada, interiormente liqüefeita, o que se lhe acrescentará senão que se proponha qual é a boa, beneplácita e perfeita vontade de Deus, como um molde de consumada virtude à qual se conforme? Assim como os ferreiros moldam pelo arbítrio de sua vontade, segundo qualquer imagem, os metais liquefeito com moldes adequados, e produzem qualquer vaso segundo o modo e o molde para tanto destinado, assim também a alma neste estado facilmente se aplica a todo aceno da divina vontade, ou melhor, por um certo desejo espontâneo acomodam a si mesmo a todo o seu arbítrio, e segundo o modo do beneplácito divino conformam toda a sua vontade. E, assim como o metal liquefeito, qualquer que seja a via que se lhe abre, facilmente se derrama para baixo, assim também a alma neste estado humilha-se a toda obediência e se inclina de boa vontade a toda a ordem, da disposição divina. Propõe-se, neste estado, a uma alma como esta, a forma da vontade de Cristo, de onde que se lhe diz:

"Tende em vós os mesmos sentimentos que houve em Jesus Cristo, o qual, existindo na forma de Deus, não julgou que fosse uma rapina o seu ser igual a Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens e sendo reconhecido por condição humana. Humilhou-se a si mesmo, feito obediente até à morte, e morte de cruz".

Fil. 2, 5-8

Esta é a forma da humildade de Cristo, à qual deve se conformar quem quer que queira alcançar o grau supremo da caridade consumada. Ninguém possui maior caridade do que aquele que entrega a sua alma pelos seus amigos. Alcançaram a suma culminância da caridade, e já estão colocados no quarto grau da caridade, aqueles que podiam colocar a sua alma pelos amigos e cumprir aquela sentença do Apóstolo:

"Sede imitadores de Deus, como filhos caríssimos, e andai no amor como também Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós a Deus, como oferenda e hóstia de suave odor".

Ef. 5,1-2

No terceiro grau a alma é glorificada em Deus, no quarto humilha-se por causa de Deus. No terceiro grau conforma-se à claridade divina, no quarto grau conforma-se à humildade cristã. E, embora no terceiro grau, de uma certa forma, como que já estava na forma de Deus, todavia no quarto grau começa a esvaziar-se, tomando a forma de servo, e novamente reveste-se dos trajes humanos. No terceiro grau, de certa forma, mortifica-se em Deus, no quarto grau como que ressuscita em Cristo. Quem, portanto, está no quarto grau, verdadeiramente pode dizer:

"Vivo, mas já não vivo eu, é Cristo que vive em mim".

Gal. 2, 20

Começa, portanto, a caminhar em novidade de vida quem é assim, aquele que para si viver é Cristo, e morrer é lucro. Está sadiamente dividido entre duas coisas, dissolver-se e estar com Cristo, o que é muito melhor, e permanecer conosco conduzindo nossas necessidades por causa de nós. A caridade de Cristo o obriga; é, portanto, uma nova criatura quem é assim; as coisas velhas passaram e eis que todas as coisas se fizeram novas. Mortificado assim no terceiro grau, como que ressuscitado dos mortos no quarto grau, já não morre, a morte sobre ele não mais domina, pois ele vive, e vive para Deus. Segundo, de fato, algum modo, a alma neste grau se torna imortal e impassível. Como, de fato, pode ser mortal se não pode morrer? Ou como pode morrer, se não pode ser separada daquele que é a vida? Sabemos bastante bem de quem é esta sentença:

"Eu sou o caminho, a verdade e a vida".

Jo. 14, 6

Como, portanto, pode morrer quem não pode ser separado destas coisas?

"Estou certo que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as virtudes, nem as coisas presentes, nem as futuras, nem a força, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura poderá nos separar do amor de Deus, que está em Jesus Cristo Nosso Senhor".

Rom. 8, 38-9

Porventura não poderá, segundo algum modo, parecer impassível aquele que não sente os dons que lhe são infligidos, aquele que sempre se alegra com toda injúria, e tudo o que lhe é imposto como pena o considera tudo para a glória, conforme a sentença do Apóstolo:

"De boa vontade me gloriarei nas minhas fraquezas, para que habite em mim o poder de Cristo".

II Cor. 12, 9

Permanece, de fato, como impassível, aquele que se alegra nos sofrimentos e nas tribulações por Cristo:

"Comprazo-me, portanto, nas minhas enfermidades, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por Cristo".

II Cor. 12,10

Quem está neste grau pode dizer com confiança:

"Tudo posso naquele que me conforta",

Fil. 4, 13

por saber saciar-se e ter fome, ter abundância e padecer penúria. Neste grau a caridade tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. Neste grau a caridade é paciente, é benigna, não é ambiciosa, não busca o que é seu, não sabe devolver o mal pelo mal, nem maldição por maldição. Mas, ao contrário, abençoa. Quem sobe a este grau de caridade, sem dúvida neste grau de amor está quem pode dizer com verdade:

"Fiz-me tudo para todos, para salvar a todos".

I Cor. 9, 22

Finalmente, quem é assim deseja tornar-se anátema para Cristo por causa de seus irmãos. O que, portanto, diremos? Não parece, porventura, que este grau de amor transporta a alma do homem para a demência, não lhe permitindo, em sua emulação, possuir modo ou medida? Não parece ser coisa de suma demência rejeitar a verdadeira vida, argüir à suma sabedoria, resistir a toda potência? Não despreza a vida aquele que pelos irmãos deseja ser separado de Cristo, assim como aquele que diz:

"Perdoa-lhes esta culpa, ou risca-me de teu livro que escreveste".

Ex. 32, 31-2

Porventura não argüi a sabedoria, ou a parece querer ensinar, quem diz ao Senhor:

"Longe de ti que faças tal coisa, que mates o justo com o ímpio e o justo seja tratado como o ímpio. Não te pertence isto, tu que julgas toda a terra, nunca farás tal juízo".

Gen. 18, 25

Não tentou resistir à onipotência, não presumiu mitigar e prevalecer sobre a ira do Onipotente o homem que, quando já promulgada a sentença pelo Senhor, quando já ardia o incêndio, se interpôs entre o fogo furioso e os que temiam serem mortos, e à necessidade impôs um limite? Eis a quanta audácia de presunção a consumação da caridade costuma elevar a mente do homem, eis como faz o homem presumir além do homem. É todo mais do que humano quem presume do Senhor, quem age pelo Senhor, quem age no Senhor, quem vive no Senhor. Todo admirável, todo estupendo. Quanto presume do Senhor, tanto se afasta por Deus. Quanto sobe pela presunção, tanto desce pela humilhação. Assim como está acima do homem quem sobe pela confiança, assim também está além do homem aquele que desce pela paciência.

No primeiro grau, conforme foi dito, a alma volta-se para si mesma, no segundo sobe para Deus, no terceiro passa para Deus, no quarto desce debaixo de si mesma.

No primeiro e no segundo eleva-se, no terceiro e no quarto transfigura-se.

No primeiro sobe para si mesmo, no segundo transcende a si mesmo, no terceiro configura-se à claridade de Deus, no quarto configura-se à humildade de Cristo.

Ou no primeiro é reduzida, no segundo é transferida, no terceiro é transfigurada, no quarto ressuscita.