TRATADO SOBRE OS QUATRO GRAUS
DA CONSUMAÇÃO DA CARIDADE

IIª PARTE



Eis que já temos no amor ardente quatro graus de violência, que foram colocados acima.

O primeiro grau de violência é quando a mente não pode resistir ao seu desejo.

O segundo grau é quando ele não pode ser esquecido.

O terceiro grau é quando ela não pode saborear outra coisa.

O quarto grau, que é o último, quando nem ele pode satisfazê-la.

No primeiro grau o amor é insuperável, no segundo inseparável, no terceiro singular, no quarto insaciável. Insuperável é o que não cede a outro afeto; inseparável o que nunca se afasta da memória; singular o que não aceita sócio; insaciável, quando a ele não pode satisfazer. E embora em cada grau podem ser notadas cada uma destas coisas, de modo especial, todavia, no primeiro grau pode notar-se a excelência do amor, no segundo a sua veemência, no terceiro a sua excelência, no quarto a sua supereminência. Quanta é a excelência do amor que excede todo outro afeto! Quanta é a veemência de dileção que não deixa a mente repousar! Quanta é a violência da caridade que todo outro afeto expulsa violentamente! Quanta é a supereminência da emulação à qual nada satisfaz! Ó excelência do amor! Ó veemência da dileção! Ó violência da caridade! Ó supereminência da emulação!

Estes quatro graus do amor encontram-se em graus diversos nos afetos divinos e nos afetos humanos e de modo inteiramente diverso se encontram nos desejos espirituais e nos desejos carnais. Nos desejos espirituais, quanto maior, tanto melhor. Nos desejos carnais, quanto for maior, tanto será pior. Nos afetos divinos, aquele que é o sumo, este mesmo é o melhor. Nos afetos humanos, aquele que é o sumo, este é o péssimo. Nos afetos humanos o primeiro pode ser bom, o segundo sem dúvida é maus, todavia o terceiro é pior, o quarto, porém, é péssimo.

Sabemos que nos afetos humanos o amor conjugal deve ter o primeiro lugar, e por isso no leito nupcial pode ser bom aquele grau de amor que costuma dominar todos os demais afetos. O afeto mútuo de um íntimo amor entre os consortes estreita os vínculos da paz e torna indissolúvel, grato e feliz aquela perpétua união,

Nas coisas humanas, portanto, o primeiro grau, conforme dissemos, pode ser bom, mas o segundo, sem dúvida, é mau. Obrigando indissoluvelmente a mente, não permite que ela transite a outra solicitude, freqüentemente remove tanto o cuidado dos que devem ser previstos como a providência dos que devem ser dispostos.

Já o terceiro grau do amor, que exclui todo outro afeto, não somente é maus, como também, ao contrário, começa a ser amargo, pois o seu desejo não pode ser sempre satisfeito, e ao mesmo tempo não pode receber consolação de outra coisa.

O quarto grau, porém, como dissemos, entre todos é péssimo. O que pode ser pior do que aquilo que não apenas torna a alma má, como também miserável? O que pode ser mais miserável do que sempre fatigar-se pelo desejo de algo por cujo gozo nunca é possível saciar-se? Antes já falamos que neste grau a mente se atormenta pelo calor e pelo gelo, quando nem o ódio se extingue pelo desejo, nem o desejo se extingue pelo ódio. E o que mais do que uma certa forma da danação futura isto parece ser, onde sempre se passa do calor do fogo ao frio da neve e do frio da neve ao calor do fogo? Assim, este último grau de amor entre todos os desejos humanos é o péssimo, enquanto que, nos afetos divinos, conforme foi dito, é o melhor de todos. No primeiro qualquer coisa que se faça não é suficiente para a alma humana, no segundo tudo o que se faz por Deus não pode satisfazer ao seu desejo. Ali a mente sempre está solícita ao que se lhe faz, não ao que ela faz. Aqui a mente tem maior solicitude sobre o que ela faz do que o que se lhe faz. Nos desejos celestes, portanto, quanto o afeto é maior, quanto o grau é superior, tanto será melhor ou mais precioso. Quão precioso é aquele primeiro grau de amor no amor divino, quando é insuperável! Muito mais precioso é o segundo, quando o afeto ardente começa a ser inseparável! Muito melhor ainda é quando em alguma outra coisa além de Deus não pode deleitar-se. O sumo e o melhor dos graus de amor é quando ao seu desejo nada mais pode satisfazer.

Lemos sobre o primeiro grau:

"As muitas águas não puderam extinguir a caridade, nem os rios a submergirão".

Cant. 8, 7

por ser insuperável.

Lemos sobre o segundo grau:

"Põe-me como um selo sobre o teu coração",

Cant. 8, 6

por não poder ser esquecido de nenhum modo. Quanto ao terceiro grau, lemos

"Se o homem der todas as riquezas de sua casa pelo amor, ele as desprezará como um nada",

Cant. 8, 7

por não poder deleitar-se em outra coisa.

Já no quarto grau lemos:

"O amor é forte como a morte, a emulação é dura como o inferno",

Cant. 8, 6

por ser pouco, para ele, tudo o que possa fazer ou sustentar para o seu Deus.

No primeiro grau o amor é dito insuperável:

"Amar-te-ei, Senhor, minha fortaleza".

Salmo 17, 2

No segundo grau o amor é dito inseparável:

"Fique apegada a minha língua às minhas faces, se não me lembrar de ti".

Salmo 136, 6

No terceiro grau o amor é dito singular:

"Minha alma recusou ser consolada, lembrei-me de Deus e alegrei-me".

Salmo 76, 3-4

No quarto grau o amor é dito insaciável:

"Que retribuirei ao Senhor por todos os bens que me concedeu?"

Salmo 115, 3

No primeiro é insuperável e se diz:

"Quem nos separará, pois, da caridade? Nem a tribulação, nem a angústia, nem a perseguição, nem a fome, nem a nudez, nem o perigo, nem a espada".

Rom. 8, 35

No segundo a caridade "nunca há de acabar" (I Cor. 13, 8), por ser inseparável, de onde que se diz:

"Minha alma aderiu a ti",

Salmo 62, 9

por não poder apartar-se dele.

No terceiro:

"Considerei a tudo como esterco, para ganhar a Cristo".

Fil. 3, 8

No quarto, diz o Apóstolo,

"para mim viver é Cristo, e morrer é lucro"

Fil. 1, 21

pelo fato dele desejar

"ser desatado e estar com Cristo".

Fil. 1, 23

No primeiro grau Deus é amado de coração, alma e mente, todavia nenhuma destas coisas se realiza de todo. No segundo ama-se de todo coração. No terceiro ama-se com toda a alma. No quarto ama-se com toda a força. O amor que é de coração é o amor que provém da deliberação; amar de alma é amar pelo afeto; ao coração pertence o conselho, à alma, porém, pertence o desejo.

Quereis saber que conselho devemos referir ao coração?

"Efraim",

diz o Profeta,

"tornou-se como uma pomba seduzida, não tendo coração".

Os. 7, 11

O que é o povo não ter coração senão estar sem conselho? O que é o povo ser uma pomba seduzida e sem coração, senão o que está escrito em outro lugar:

"É um povo sem conselho e sem prudência".

Deut. 32, 28

Portanto nada mais é ser sem coração do que carecer de conselho e prudência. Mas, assim como já foi dito, assim como o conselho pertence ao coração, assim o desejo pertence à alma:

"Quem aborrece a sua vida neste mundo",

diz o Evangelho de São João,

"guarda-la-á para a vida eterna".

Jo. 12, 25

Que é aborrecer a própria alma neste mundo, senão neste mundo (como em outro lugar é preceito),

"não seguir as suas concupiscências"?

Ecles. 18, 30

Pelo fato de alguém neste mundo mortificar seus desejos por causa de Deus, verdadeiramente dilata a sua alma para a eterna plenitude. Amar, portanto, de coração, é amar pelo conselho e pela deliberação. Amar de alma é amar pelo desejo e afeto. Aquele vem pelo estudo, este vem pela vontade. Amar de todo coração, de toda alma e de toda virtude é aplicar nisto todo estudo, todo desejo, todo exercício.

Freqüentemente somos conduzidos a amar algo pelo afeto e, todavia, relutamos pela razão. E freqüentemente amamos muitas coisas pelo propósito da deliberação, às quais, todavia, pouco nos afeiçoamos pelo apetite do desejo. Nos desejos carnais, deste modo, freqüentemente primeiro vem o amar de alma do que o amar de coração. Nas coisas espirituais, porém, sempre o amar pela deliberação vem antes do que o amar pelo afeto. De fato, nunca amamos as coisas espirituais pelo desejo a não ser que inflamemos a alma com grande aplicação ao afeto deles. Se, portanto, desejamos amar a Deus de toda alma, esforcemo-nos primeiro em amá-lo de todo coração. Esteja nisto todo o nosso pensamento, toda a nossa deliberação, sobre isto seja toda a nossa meditação, se queremos amar de todo desejo. Mas assim como nunca amamos de toda alma, a não ser que primeiro amemos com todo coração, assim também nunca amamos com toda a virtude a não ser que antes amemos com toda a alma. Se, de fato, temos afeto a algo que não amamos por causa de Deus, na verdade este afeto adulterino tanto quebra a constância da suma caridade e diminui as suas forças quanto conduz ou impele a alma a desejos alheios.

No primeiro grau, portanto, conforme foi dito, ama-se de coração, no segundo ama-se de todo coração, no terceiro com toda a alma, no quarto com todas as forças. Talvez Davi ainda estivesse no primeiro grau, mas já presumia do segundo quando, ao salmodiar, dizia:

"Confessar-te-ei, Senhor, com todo o meu coração".

Salmo 110, 1

Com isto no segundo grau pôde salmodiar com confiança:

"Busquei-te de todo o meu coração".

Salmo 118, 10

Quem alcança o terceiro grau, na verdade já pode dizer o seguinte:

"Cobiçou a minha alma, Senhor, desejar tuas justificações em todo o tempo".

Salmo 118, 20

Quem se eleva ao quarto grau, e ama a Deus com toda a virtude, pode dizer, na verdade:

"Não temerei o que me fará o homem".

Salmo 117, 6

Pelo fato de seu coração estar preparado para esperar no Senhor, seu coração está confirmado e não será abalado eternamente até que despreze seus inimigos.

No primeiro grau realizam-se os desposórios, no segundo as núpcias, no terceiro a cópula, no quarto o puerpério. No primeiro grau é dito à amada:

"Desposar-me-ei contigo para sempre e me desposarei contigo em justiça, em juízo e em misericórdia, e em miserações, e desposar-me-ei contigo na fé".

Os. 2, 19-20

No segundo grau realizam-se as núpcias em Caná de Galiléia, e lhe é dito:

"Sou vosso esposo... ... e não cessareis de andar após de mim".

Jer. 3, 14-19

Do terceiro grau se diz:

"O que está unido ao Senhor, é um só espírito com Ele".

I Cor 6, 17

Do quarto se diz:

"Nós concebemos, e como que estivemos com dores de parto, e o que demos à luz foi vento".

Is. 26, 18

No primeiro grau, portanto, a amada é visitada com freqüência; no segundo é conduzida; no terceiro une-se ao amado; no quarto é fecundada.

No primeiro grau, portanto, sempre na expectativa da volta do amado, clama e diz:

"Vem, amado meu, sê semelhante à cabra e ao filhote dos cervos sobre os montes de Beter".

Cant. 2, 17

No segundo é convidada para que venha, e lhe é dito:

"Vem do Líbano, esposa minha, vem do Líbano, e serás coroada".

Cant. 4, 8

No terceiro grau, unida ao amado, prostra-se e diz:

"A sua esquerda está debaixo da minha cabeça, e a sua direita abraça-me".

Cant. 8, 3

No quarto grau gloria-se de sua fecundidade, e diz:

"Meus filhinhos, por quem eu sinto de novo as dores de parto, até que Jesus Cristo se forme em vós".

Gal. 4, 19

De onde que se lhe diz:

"Teus dois seios são como dois filhotes de cabras que pastam entre os lírios".

Cant. 4, 5