V

A Beleza de Posição



1.

A divisão da posição: composição e disposição.

Dissemos que a beleza das criaturas consta de posição, movimento, espécie e qualidade. Discutamos, pois, em primeiro lugar, a posição.

A posição consiste na composição e na ordem, isto é, na composição e na disposição.

2.

A divisão da composição: aptidão e firmeza.

A composição deve possuir duas coisas: aptidão e firmeza, isto é, que as que irão se compor se unam de modo apto e competente e, após a composição, estejam firmemente unidas. Esta composição é a louvável.

3.

A aptidão.

A aptidão é considerada na quantidade e na qualidade.

Na quantidade, se não se une o tênue e delgado ao demasiadamente grosso e corpulento.

Na qualidade, se não se une o úmido ao demasiadamente seco, o quente ao demasiadamente frio, o leve ao demasiadamente pesado; pois, se existirem coisas tais, estarão unidas desordenadamente.

Vê se à beleza das obras divinas falta alguma destas coisas, e, se te deres conta como nada falta, já terás com isto com que te admirar.

Observa primeiro a máquina deste universo: verás com que admirável razão e sabedoria a composição de todas as coisas é perfeita; e quanto ela é precisa, adequada e bela; que tão grande número de partes para ela não concorre, em que não somente os semelhantes observam concórdia entre si, mas até aquelas coisas que a potência criadora trouxe à luz com características diversas e repugnantes, regidas pela sabedoria, como que convivem em amizade.

O que pode ser mais repugnante do que a água e o fogo? Todavia, a prudência de Deus as compôs de tal modo na natureza das coisas que não somente não destroem o vínculo comum da sociedade que tem entre si, como também subministram alimento vital para que possam subsistir todos os seres que nascem.

O que direi então da composição do corpo humano, onde a união de todos os membros guarda tanta concórdia entre si que não pode ser encontrado nenhum membro cujo ofício não pareça ser de serventia para qualquer outro?

Desta maneira, toda a natureza se ama, e de um modo admirável a concórdia de muitas coisas dessemelhantes reduzidas a um só todo realiza uma só harmonia em todas as coisas.

4.

A firmeza.

A composição de todas as coisas é, pois, apta e conveniente, mas de que modo ela é também firme? Quem não o vê? Quem não o admira?

Eis os céus em sua solidez: em seu âmbito incluem todas as coisas, como se tivessem sido fundidos em bronze para serem derramados e fixados em torno de todas as coisas. A terra, no centro pelo seu peso, sempre persevera imóvel. As demais coisas, em movimento na região intermediária, são reunidas e obrigadas a formarem um só todo de um lado pela solidez dos céus, de outro pela estabilidade da Terra, só podendo romper a concórdia que se difunde por toda a parte dentro de legítimos limites.

Eis a água que corre espalhada pelo interior da terra, e em seu exterior sobre os mais diversos leitos. Internamente aglutina as terras fundidas para que não se desagreguem; externamente rega as terras secas para que não se fendam.

Eis como na construção do corpo humano os vínculos nervosos ligam as junturas dos ossos; como os canais da medula interna à porosidade dos ossos conduzem por todo o corpo o sangue vital das veias; como o segmento da pele envolve a carne desprotegida. O rigor dos ossos sustenta o corpo internamente, a proteção da pele o defende externamente.

Quem poderá enumerar a dureza das pedras, a solidez dos metais, a força das junturas, a tenacidade das aglutinações e outros tantos inumeráveis que existem na natureza?

De tudo isto fica claro quão firmes são os vínculos das coisas, como cada uma delas com tanto empenho defende sua natureza e seu ser, não sendo possível que todos simultâneamente dissolvam por completo a concórdia de sua sociedade.

5.

Passa a considerar a disposição.

Consideramos a composição. Resta agora que consideremos também acerca da disposição das coisas. Não será pequena a admiração que se seguirá ao exame atento de como a providência divina distribui suas causas pelos lugares, pelos tempos e pelas coisas, para que em nada fosse perturbada toda a ordem das coisas.

6.

A disposição dos lugares.

Eis o céu e a terra. No céu colocou a divina providência as estrelas e os luminares, para que ilustrassem tudo o que há sobre a terra. No ar traçou um caminho para os ventos e as nuvens, para que, dispersas pelos pensamentos, condensassem a chuva em direção à terra. No interior da terra ordenou que fossem recebidas as massas das águas, para que de várias nascentes corressem por onde fosse determinado pelas suas ordens. Suspendeu os pássaros no ar, aos peixes submergiu nas águas, encheu a terra de animais, serpentes e demais gêneros de répteis e vermes. Enriqueceu regiões pela fertilidade de seus frutos, algumas pela opulência de suas vinhas, outras pelos frutos de seus óleos, pela fecundidade de suas ovelhas, pela potência de suas ervas, pela preciosidade de suas pedras, pelo porte de seus animais, pela diversidade de suas cores, pela diversidade dos estudos das artes, pelos metais, pelos diversos gêneros de seus perfumes, de tal maneira que não há região que não possua entre todas algo novo e especial, nem que não possa recebê-lo de todas as demais. E as coisas que são necessárias aos usos humanos a providência do Criador as constituiu na freqüência comum dos homens; quanto àquelas, porém, que a natureza não exige por uma necessidade, mas a cobiça as busca por sua espécie, escondeu em remotos interiores da terra, para que aquele que não vencesse a imoderação do apetite por amor à virtude, pelo menos se moderaria vencido pelo tédio dos trabalhos.

7.

A disposição dos tempos.

Isto foi o que dissemos da disposição dos lugares. O que diremos da disposição dos tempos?

Quem poderá admirar suficientemente com que admirável razão a providência divina distinguiu o curso dos tempos? Eis que após a noite vem o dia, para que o trabalho exercite os que descansavam no ócio; após o dia segue-se a noite, para que o repouso acolha os que vêm retemperar as forças. Não é sempre dia, não é sempre noite, nem sempre dias iguais ou noites iguais, para que um trabalho imoderado não consuma os fracos, ou um repouso contínuo não debilite a natureza, ou a identidade perpétua não gere o tédio na alma. A alternância dos dias e das noites de um certo modo renova os seres vivos, e as quatro estações do ano que se sucedem entre si transformam a aparência do mundo inteiro.

Primeiro, uma renovação causada pela temperatura moderada da primavera faz com que o mundo renasça, o qual, depois, rejuvenesce pelo calor do verão. Vindo o outono, alcança sua maturidade; sobrevindo o inverno, declina para a deficiência. Sempre chega à deficiência, para que sempre depois possa ser renovado, porque se o antigo não definhasse, não poderia o novo surgir para ocupar o seu lugar. E também é admirável em tudo esta disposição que os próprios tempos guardem as alternâncias de sua mutabilidade por uma lei imutável, de maneira que nunca falhem no cumprimento de seus ministérios, nem por correrem ao contrário confundam a ordem de sua primeira instituição.

8.

A disposição das coisas pelas suas partes.

Quanto à disposição dos tempos, seja suficiente a título de exemplo o quanto já foi dito. Passemos a tratar agora daquela ordem que pode ser considerada em cada coisa segundo a adequada disposição de suas partes. Esta última é, na verdade, intrínseca; as demais, segundo o lugar e o tempo, são extrínsecas. E aqui não menos admirável é a eficácia da sabedoria que tão adequadamente distribuiu em tudo cada coisa de tal modo que nunca a união das partes gerasse a repugnância das qualidades.

Eis, para que ponhamos como exemplo um pouco do muito que poderíamos, quanta sabedoria do Criador não resplandesce na composição do corpo humano? Na sua parte superior o homem é uniforme, na sua parte inferior, dividido em dois; pois é uniforme o que há de principal na mente, isto é, a razão, que diz respeito às coisas invisíveis, e gêmea é a concupiscência, a qualidade da alma que se estende para baixo às coisas terrenas. Os braços se estendem para os lados e as pernas para baixo, fixando a estatura do corpo humano, porque a aplicação ao trabalho estende a alma, enquanto que o afeto dos desejos a fixa. A extensão do corpo humano termina pelas mãos ou pelos pés em cinco dedos; pois, tenda a alma para o lado pela aplicação ao trabalho, ou fixe-se para baixo pelo desejo do afeto, cinco são os sentidos pelos quais sai para o exterior. Os dedos são divididos por três intervalos de articulações, que nas mãos se originam de uma só palma, nos pés se originam de uma só planta; pois de uma só sensualidade se originam os cinco sentidos, nos quais por uma primeira divisão encontramos o sentido, depois o sentir e finalmente o sensível. Em cada um dos dedos a cabeça das extremidades das articulações são cobertas por unhas, como se fossem capacetes, para que onde quer que as mãos ou os pés encontrem obstáculo, protegidos pela sua presença, possam permanecer ilesos. Semelhantemente, as coisas terrenas que nos protegem nas necessidades, à semelhança das unhas que estão além dos sentidos, quando não mais se fazem necessárias podem ser cortadas sem que se as sintam como se estivessem para além da carne.

Eis a face humana; com que divisão racional lhe foram colocados os instrumentos dos sentidos! O lugar supremo cabe à visão nos olhos. Depois, a audição nos ouvidos; em seguida, o olfato no nariz; e finalmente, o gosto na boca. Sabemos que todos os outros sentidos vêm do exterior para o interior; somente a visão do interior sai para o exterior, distinguindo-se entre os demais por discernir as coisas situadas externamente com admirável agilidade. Como se fosse capaz de especulação, é com justos motivos que detém entre todos o lugar mais eminente, sendo capaz de prever, diante do perigo, aquilo que está para acontecer aos demais sentidos. Depois dela, o segundo lugar, pelo lugar e pela nobreza, pertence ao ouvido. Em seguida, ao olfato. Quanto ao gosto, porém, que nada pode sentir a não ser aquilo que toca, merecidamente, por ser o mais tardo entre todos os sentidos, ocupa o ínfimo dos lugares. O tato não possui uma sede especial, sendo universal porque coopera com todos os sentidos. De onde que entre os dedos o polegar, que significa o tato, corresponde sozinho a todos os demais dedos reunidos em um só todo, porque sem o tato nenhum sentido pode existir.

Vê também como no corpo humano os ossos são colocados internamente, na medida em que pela força deles o corpo é sustentado; em seguida, a carne veste os ossos, para que a dureza deles seja percebida pelo tato sem aspereza. Por último, a pele reveste a carne, e pela sua tenacidade protege o corpo dos acidentes externos. Fazei atenção também a como aquilo que é mole e enfermiço é posto no meio, como que em lugar mais seguro, para que não se despedace nem por falta de suporte interno, nem por falta de proteção externa.

Tudo isto que, porém, exemplificamos em uma só coisa, na verdade pode ser encontrado em todos os gêneros de coisas. De fato, é assim que a casca protege as árvores, as penas e bicos as aves, as escamas os peixes, e para cada uma das coisas, segundo a competência de sua natureza, a providência do Criador instituiu sua proteção.

Até aqui falamos da posição. Passemos agora ao movimento.