PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
DE PEDAGOGIA


Introdução Geral




1.

Princípios fundamentais de pedagogia.

O objetivo deste livro é o de apresentar uma concepção de pedagogia bastante diversa do que a maioria dos mais arrojados educadores modernos ousaria conceber.

E, não obstante isso, não se trata de uma utopia, como tantas que foram registradas nos anais da história da educação, nem apenas um projeto, mas algo que foi realidade durante gerações, não em alguma civilização distante, mas na Europa do século XII. E, no entanto, ainda apesar disso, a pedagogia aqui descrita transcende a época em que se realizou como fato histórico; ela pertence, pensamos também nós, ao número daquelas coisas que não passam mais. Foi por isto que demos a este livro o título simplesmente de Princípios Fundamentais da Pedagogia.

Procuramos descrever esta pedagogia através dos textos de um dos educadores daquela época, responsável que foi pela escola anexa ao mosteiro de São Vítor. Limitando-nos aos seus textos, porém, e à sua escola, não apresentamos apenas as idéias educacionais de um só homem, pois ele próprio é o primeiro que se esforça por apresentar em seus textos, nas suas linhas gerais, não as suas idéias pessoais, mas as da tradição em que vive e em que desenvolve o seu trabalho de educador.

A escola de São Vítor, de que foi responsável, tem sua origem em Paris, no fim do século XI, anexa à abadia de São Vítor. Desempenhou no século seguinte papel de elevada importância nos acontecimentos culturais e espirituais da Europa. Fundada por Guilherme de Champeaux, depois de alguns anos teve o nome de Hugo de São Vítor ligado a si própria de uma forma muito semelhante àquela pela qual no século seguinte o de S. Tomás de Aquino se ligaria aos inícios da história da ordem dominicana.

Hugo de São Vítor, o autor dos trabalhos traduzidos neste livro, nasceu provavelmente no ano de 1096 na Saxônia, atual território da Alemanha, onde recebeu sua primeira educação em uma escola monástica. De lá transferiu-se para Paris, o maior centro de estudos da Europa de seu tempo, ingressando no mosteiro de São Vítor, ainda há pouco tempo fundado por Guilherme de Champeaux.

Em 1125 tornou-se professor no mosteiro; em 1133, diretor da escola anexa; logo depois, também prior. Faleceu em São Vítor aos 11 de fevereiro de 1141.

Foi provavelmente o maior dos teólogos do século XII; assim como S. Tomás de Aquino, S.Boaventura, Pedro Lombardo, foi também professor de teologia. Pode parecer redundante hoje em dia acrescentar que um teólogo tenha sido professor de teologia; mas o fato é que os maiores teólogos antes da idade média não o foram.

Ao contrário, porém, de seus demais colegas medievais, Hugo de São Vítor, além de professor, foi também diretor de uma escola, de um dos principais centros de ensino superior do mundo de seu tempo e que, não obstante esta importância, mal acabava de ter sido fundada. Ambas estas características, a direção de uma escola deste porte juntamente com a sua recente fundação, iriam conferir à obra de Hugo de São Vítor contornos inexistentes nas de seus colegas.

Sua obra ocupa três volumes daPatrologia Latina de Migne, respectivamente, os volumes 175, 176 e 177. Para os que não conhecem a coleção, cada um destes livros tem aproximadamente o mesmo tamanho dos volumes da Enciclopédia Britânica; o que temos traduzido neste trabalho é, assim, bem menos do que um por cento da obra de Hugo.

Os trabalhos de Hugo de São Vítor, em uma primeira aproximação, podem ser divididos em quatro grupos: os exegéticos, os ascéticos, os dogmáticos e os pedagógicos. Para os fins deste trabalho, nos interessarão os dois últimos, e mais especialmente os pedagógicos.

Entre os trabalhos dogmáticos os principais são um breve tratado intitulado Summa Sententiarum e outro bem maior, considerado a obra prima de Hugo, o De Sacramentis Fidei Christianae. Nesta última, o autor se propõe a expor o conteúdo teológico das Sagradas Escrituras, nela demonstrando uma capacidade de síntese e sistematização desconhecidas até então, comparáveis, em sua novidade, à especulação metafísico teológica contida nos trabalhos de Santo Anselmo. Ambas estas características seriam posteriormente assimiladas, aprofundadas e fundidas em um mesmo todo por São Tomás de Aquino na sua Summa Teologiae.

De maior interesse, porém, para o presente trabalho, são as obras pedagógicas de Hugo de São Vítor, únicas, talvez, em seu feitio, não só na idade antiga e média, como talvez mesmo em toda a história da pedagogia. Esta singularidade deve sua causa ao fato de que poucas vezes na história pode ter-se reunido, em uma só pessoa, uma inteligência notavelmente brilhante, uma vida de manifesta santidade, a vocação e a atividade docente e a direção de uma das mais importantes escolas do mundo que, não obstante a importância que já desfrutava, ainda estava em fase de formação. Por causa desta confluência de fatores, Hugo se viu obrigado não só a ensinar, mas também a explicar aos alunos como se deveria aprender, aos professores orientar como se deveria ensinar, e à escola como se deveria organizar.

O resultado desta conjunção de fatores foi o surgimento de alguma coisa que merece estar com pleno merecimento tanto na história da pedagogia como na história da espiritualidade: parece ser uma forma de ascese cujo lugar próprio é uma escola.

É um caso particularmente notável de uma pedagogia em que hão há interferência destrutiva entre vida intelectual e vida espiritual, nem separação entre estas atividades como coisas independentes uma da outra. Ao contrário, cria-se propositalmente uma situação em que ambas agem entre si no sentido de se amplificarem mutuamente. Que estas duas coisas sejam mutuamente possíveis temos diversos exemplos históricos, entre os quais figuram, de um lado, o exemplo de São Tomás de Aquino, e de outro, o de Santo Antonio de Pádua.

Mas destes dois talvez o que fale mais alto seja o de Santo Antonio de Pádua. Quem conhece um pouco melhor a sua vida não pode deixar de ter a viva impressão de assistir a uma representação literal das palavras de Hugo de São Vítor escritas no fim de sua principal obra pedagógica:

"Olhai, vos peço,
o que seja a luz,
senão o dia,
e o que sejam as trevas,
senão a noite.
E assim como os olhos do corpo
tem o seu dia e a sua noite,
assim também os olhos do coração
tem o seu dia e a sua noite.

Três são os dias da luz invisível,
pelos quais se distingue o curso interior
da vida espiritual.

O primeiro é o temor,
o segundo é a verdade,
o terceiro é o amor".

2.

Influência da escola de São Vítor.

Uma lista de quem passou ou esteve em contato com a escola de São Vítor pode dar uma idéia do papel que esta desempenhou no contexto do século XII.

Pedro Abelardo já era aluno de Guilherme de Champeaux quando este ensinava na escola anexa à catedral de Notre Dame. Após Guilherme ter abandonado a escola catedralícia para fundar o mosteiro de São Vítor, consta Pedro Abelardo ainda ter continuado a ser seu aluno.

Após a fundação de São Vítor, São Bernardo de Claraval fez questão de ser ordenado sacerdote por Guilherme de Champeaux, já bispo. Conserva-se até hoje na Patrologia Latina de Migne uma troca de correspondência entre São Bernardo e Hugo de São Vítor acerca de matéria teológica.

Em 1134 São Bernardo escreveu uma carta ao superior de São Vítor pedindo que o mosteiro recebesse como hóspede o jovem Pedro Lombardo até o dia da festa da natividade de Maria. O jovem, porém, não voltou mais. Ficou em Paris até morrer, quase trinta anos depois, em 1160, ocupando o cargo de bispo daquela cidade. Ao que tudo indica, Pedro Lombardo foi aluno de Hugo de São Vítor; antes de ter sido nomeado bispo de Paris, ensinou teologia na escola anexa à catedral de Notre Dame onde já antes havia ensinado Guilherme de Champeaux. Enquanto professor em Notre Dame, redigiu os célebres Quatro Livros das Sentenças, que no século seguinte se tornaria livro a ser obrigatoriamente comentado por todos os candidatos ao doutoramento em teologia. Os primeiros trabalhos teológicos de São Boaventura e São Tomás de Aquino foram comentários aos Livros das Sentenças de Pedro Lombardo, texto tornado básico para o ensino e aprendizado da teologia no século XIII.

A influência de Hugo de São Vítor na teologia posterior exerceu-se também através de sua obra mais extensa, o De Sacramentis Fidei Christianae, aproximadamente traduzível por Os Mistérios da Fé Cristã, uma obra de síntese como até então não havia surgido no cristianismo. Esta obra foi o primeiro exemplo e o precursor de todas as Summas Teológicas que iriam aparecer logo em seguida. Tomás de Aquino e Boaventura testemunham, conforme veremos, terem estudado e muito se aproveitado das obras de Hugo.

Discípulo de Hugo de São Vítor e seu sucessor na escola São Vítor foi também Ricardo de São Vítor, contado, juntamente com ele, entre os grandes teólogos do século XII.

Consta que na época em que Ricardo de São Vítor era prior de São Vítor, foi ali que S. Thomas Beckett, o arcebispo da Cantuária expulso da Inglaterra pelo Rei Henrique VII, foi buscar seu primeiro refúgio.

Em relação aos futuros povos de língua portuguesa, nos séculos XII e XIII o principal centro lusitano de estudos era o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, dos Cônegos Agostinianos, onde por mais de uma década estudou Santo Antônio de Pádua antes de transferir-se à ordem franciscana. Os principais professores de Santa Cruz de Coimbra haviam estudado em São Vítor no século XII e organizado os estudos de Coimbra segundo o modelo da escola de São Vítor. Apesar de não ter estado nunca em Paris, pode-se dizer que a formação de Antônio de Pádua foi, não só do ponto de vista da doutrina teológica, como também do ponto de vista ascético e pedagógico, baseado no modelo de São Vítor, cuja doutrina, ascese e pedagogia haviam sido moldados por Hugo.

No ano de 1190 o rei de Portugal Dom Sancho I fundou uma bolsa permanente de manutenção para os clérigos de Coimbra que iam estudar em Paris. Durante o século XIII, quando já havia sido fundada a Universidade, consta que os clérigos portugueses que se aproveitavam desta bolsa para estudarem na Universidade de Paris hospedavam-se no mosteiro de São Vítor durante sua permanência em território francês.

3.

Obras pedagógicas de Hugo de São Vítor.

Hugo de São Vítor escreveu três obras que a nosso ver podem ser classificadas como estando entre as obras de caráter mais nitidamente pedagógico.

A primeira delas é o opúsculo intitulado Sobre o Modo de Aprender e de Meditar; a segunda é o opúsculo Sobre a Arte de Meditar; e a terceira e mais conhecida é um verdadeiro tratado sobre a pedagogia da época, conhecido como Didascalicon.

O Didascalicon é dividido em seis ou sete livros, de acordo com a edição. Alguns editores, como foi o caso na Patrologia Latina de Migne, apresentam todos os sete livros como sendo uma só obra. Outros editores julgam que o Didascalicon termina no livro sexto; e que o sétimo é na verdade um tratado à parte, denominado De Tribus Diebus, o Tratado dos Três Dias. Seja como for, ambas as obras são de Hugo, e uma é a continuação natural da outra.

4.

Uma pedagogia centrada no aluno.

A primeira impressão que temos ao analisar as obras pedagógicas de Hugo de São Vítor é o fato de todas elas se dirigirem, na íntegra, ao aluno; não ao professor, para quem nada têm a dizer sobre organização escolar; não a mais ninguém, senão unicamente ao aluno, não obstante a tarefa de Hugo fosse a de organizar a escola em todos os seus aspectos.

Esta aparente enorme lacuna se explica pelo fato de que a pedagogia no século XII era manifestamente centrada no aluno e não no professor.

Em dois textos do século XIII, geralmente mais conhecidos entre os estudiosos modernos do que as obras de Hugo de S. Vítor, São Tomás de Aquino (1) afirma que no ensino o professor não pode, por necessidade ontológica, ser a causa principal do conhecimento. Esta causa é a atividade do aluno; o papel do mestre não é o de infundir a ciência, mas a de auxiliar o discípulo. "Assim como o médico é dito causar a saúde no enfermo através das operações da natureza, assim também o mestre", diz Tomás de Aquino, "é dito causar a ciência no discípulo através da operação da razão natural do discípulo, e isto é ensinar"(2) . Se o mestre tentar seguir uma conduta diversa, diz ainda Tomás, o resultado será que ele "não produzirá no discípulo a ciência, mas apenas a opinião ou a fé"(3).

Nos textos de São Tomás de Aquino estas conclusões são deduzidas a partir de princípios da filosofia aristotélica; como, porém, quando muito, dificilmente se conhece atualmente da pedagogia desta época alguma coisa além destes dois textos, torna-se difícil ao homem de hoje imaginar ao que S. Tomás de Aquino estava se referindo na prática.

Os textos de Hugo de S. Vítor fornecem em parte uma ilustração para tais princípios. Ao redigir uma série de textos para organizar os métodos educacionais que seriam usados em sua escola, Hugo não dirigiu quase uma única palavra aos professores, e sim aos alunos. É exatamente o contrário do que vemos na literatura pedagógica do século XX: toda a literatura sobre metodologia é escrita para a leitura do professor, não do aluno. Aquele era um ensino centrado no aluno; este, embora às vezes se diga o contrário, é um ensino centrado no mestre.

Os resultados destes modos diversos de encarar a pedagogia são também diversos. O primeiro, encontrado no mestre, tende a tornar-se uma transferência mecânica de conhecimento do professor para o aluno; o segundo, centrado no aluno, tende a tornar-se uma aventura do espírito. A escola centrada no mestre só irá produzir um discípulo melhor do que o mestre por acaso, quando o discípulo, apesar do método utilizado, puder fugir espontaneamente às regras desta pedagogia; a escola centrada no aluno tende a produzir por sua natureza um certo número de alunos melhores do que o mestre. Consequência destes fatos é que os professores da escola centrada no mestre são, no que depende da escola, a cada geração possuidores de um nível cada vez mais baixo, enquanto que na escola centrada no aluno a tendência é a oposta.

É um fato conhecido na história da educação que desde a renascença, quando o centro de gravidade do ensino passou a deslocar-se, todas as gerações sempre têm reclamado que o nível do ensino estava caindo, e que o ensino na geração anterior era melhor do que o então ministrado. Tal constatação pode parecer à primeira vista paradoxal, porque, pensamos nós, se isto fosse realmente verdade, após tanto tempo, há muito que o ensino teria sido totalmente pulverizado. A explicação para este fenômeno é que realmente houve muitos momentos históricos desde então em que o ensino não só não decaiu, como inclusive subiu de nível, e às vezes acentuadamente. Mas, se isto aconteceu, não se deveu a fatores internos à pedagogia, e sim a contingências externas ao método educacional: a fundação, por exemplo, de uma nova ordem religiosa; uma reforma educacional; os decretos de algum príncipe. Nestes momentos dava-se uma melhora da qualidade de ensino para, a partir daí, entregue às suas forças intrínsecas, cair gradualmente sem perspectiva aparente de reversão, senão por uma nova interferência externa.

5.

Um princípio básico da educação vitorina.

Uma das idéias fundamentais em torno da qual construiu-se a pedagogia vitorina está contida no opúsculo sobre o modo de aprender e de meditar.

Nele Hugo afirma que há três operações básicas da alma racional, as quais constituem entre si uma hierarquia, e que devem, portanto, ser desenvolvidas uma em sequência à outra.

A primeira ele a denomina de pensamento.A segunda, de meditação. A terceira, de contemplação.

O pensamento ocorre, diz Hugo, "quando a mente é tocada transitoriamente pela noção das coisas, ao se apresentar a própria coisa, pela sua imagem, subitamente à alma, seja entrando pelo sentido, seja surgindo da memória".

Entre os ensinamentos de Hugo de São Vítor entra aqui o papel que a leitura adquire na pedagogia. A importância da leitura reside em que ela pode ser utilizada para estimular a primeira operação da inteligência que é o pensamento. Mas ao mesmo tempo a limitação da leitura está em que ela não pode estimular as operações seguintes da inteligência, a meditação e a contemplação, a não ser indiretamente, na medida em que a leitura estimula o primeiro estágio do pensamento que é pressuposto dos demais. Isto significa que requer-se uma teoria da leitura em que o mestre saiba utilizar-se dela para produzir o pensamento, e ao mesmo tempo compreenda que há outros processos mentais mais elevados que devem também ser desenvolvidos mas que podem vir a ser impedidos por uma concepção errônea por parte do mestre que não conseguisse compreender que estes não dependem mais diretamente da leitura. A importância do assunto é tão grande que os seis primeiros livros do Didascalicon serão dedicados à teoria da leitura.

A segunda operação da inteligência, continua Hugo, é a meditação. A meditação baseia-se no pensamento, e é "um assíduo e sagaz reconduzir do pensamento, esforçando-se para explicar algo obscuro, ou procurando penetrar no que ainda nos é oculto".

O exercício da meditação, assim entendido, exercita o engenho. Como a meditação, porém, se baseia por sua vez no pensamento e o pensamento é estimulado pela leitura, temos na realidade duas coisas que exercitam o engenho: a leitura e a meditação.

Segundo as palavras de Hugo, "na leitura, mediante regras e preceitos, somos instruídos a partir das coisas que estão escritas. A leitura também é uma investigação do sentido por uma alma disciplinada. A meditação toma, depois, por sua vez, seu princípio da leitura, embora não se realizando por nenhuma das regras ou dos preceitos da leitura. A meditação é uma cogitação frequente com conselho, que investiga prudentemente a causa e a origem, o modo e a utilidade de cada coisa".

Mas acima da meditação e baseando-se nela, existe ainda o que Hugo chama de contemplação. Ele explica o que é a contemplação e no que difere da meditação do seguinte modo:

"A contemplação é uma visão
livre e perspicaz da alma
de coisas que existem em si
de modo amplamente disperso.

Entre a meditação e a contemplação
o que parece ser relevante
é que a meditação é sempre de coisas ocultas
à nossa inteligência;
a contemplação, porém, é de coisas que,
segundo a sua natureza,
ou segundo a nossa capacidade,
são manifestas;
e que a meditação sempre se ocupa
em buscar alguma coisa única,
enquanto que a contemplação se extende
à compreensão de muitas,
ou também de todas as coisas.

A meditação é, portanto,
um certo vagar curioso da mente,
um investigar sagaz do obscuro,
um desatar o que é intrincado.

A contemplação é aquela vivacidade da inteligência,
a qual, já possuindo todas as coisas,
as abarca em uma visão plenamente manifesta,
e isto de tal maneira que aquilo que a meditação busca,
a contemplação possui".

Estas passagens do Opúsculo sobre o Modo de Aprender mostram um dos ponto básicos da pedagogia de Hugo, o de levar o discípulo do pensamento à contemplação. Em outras partes de sua obra ele abordará o modo como isto pode ser feito.

Mas antes que tratemos deste outro aspecto da questão, cumpre fazer a seguinte pergunta, importantíssima para os educadores de hoje. Um dos maiores pensadores educacionais brasileiros de nosso século, Anísio Teixeira, escreveu em um famoso livro intitulado Educação para a Democracia exatamente as seguintes palavras:

"A vida já não é governada
pelos velhos índices de intelectualidade
herdados da idade média.

Hoje todos têm que produzir.

Técnicas científicas e industriais
sobrepuseram-se aos encantamentos da vida do espírito.

Precisamos sentir o problema da educação
conforme ele é,
um processo pelo qual a população se distribui
pelos diferentes ramos do trabalho diversificado
da sociedade moderna"
(4) .

Ora, Hugo de S. Vítor desenvolve uma pedagogia que desemboca em uma atividade chamada contemplação que se ocupa, conforme ele próprio diz, de coisas que já nos são manifestas. Mas se nos são já manifestas, por que se ocupar ainda nelas? Poderá uma educação assim ter ainda alguma justificativa na sociedade moderna?

Hugo provavelmente responderia a esta pergunta com três argumentos.

Em primeiro lugar, a contemplação se ocupa, é verdade, de coisas já manifestas, e o homem moderno, ocupado em seu utilitarismo imediato, geralmente não percebe as vantagens de se cultivar uma qualidade destas. Pelo fato de se ocupar com coisas manifestas, a contemplação, conforme disse Hugo, não se ocupa em buscar "alguma coisa única, mas se estende à compreensão simultânea de muitas ou também de todas as coisas". Ora, é evidente que esta é a atividade fundamental que está por trás de todas as grandes sínteses filosóficas da história, como as obras de Aristóteles, de Tomás de Aquino, e outras. É evidente que é também esta a atividade fundamental que está por trás das grandes sínteses científicas, como a física Newtoniana e a Teoria da Relatividade. É evidente que esta é a operação intelectual fundamental que deveria estar por trás também de outras atividades tão vivamente exigidas nos dias de hoje como a correta orientação política de uma nação e até mesmo o ordenamento plenamente consciente de um sistema educacional. Em suma, é a contemplação, e não a análise, a atividade básica das mais fundamentais conquistas do pensamento humano em todos os tempos. Foi também, evidentemente, a atividade fundamental que estava por trás do monumento do pensamento que foi em sua época o tratado De Sacramentis Fidei Christianae, uma obra de síntese e sistematização em teologia como até aquela época, conforme já mencionamos, ainda não havia aparecido igual.

Obras filosóficas e sínteses deste porte ainda surgem hoje em dia; mas a diferença é que hoje em dia elas aparecem apesar das escolas, enquanto que na época da escola de São Vítor e na época em que Aristóteles estudou com Platão elas surgiam por causa das escolas. O tipo de gênio que havia em Newton e em Einstein foi desenvolvido por eles próprios sem que, entretanto, o soubessem desenvolver em seus alunos. Na escola de Platão, o gênio do mestre soube reproduzir-se em Aristóteles, e na de São Vítor o gênio de Hugo soube reproduzir-se em Ricardo, e, menos diretamente, em diversos contemporâneos que reproduziram seu sistema de ensino.

Mas, ademais, em segundo lugar, não é necessário produzir obra alguma para que a contemplação seja alguma coisa de enorme importância para o homem. A contemplação sempre foi colocada em todas as épocas da história, com exceção, talvez, da idade moderna, como o mais significativo elemento de enobrecimento da mente humana, algo que não precisava de nenhuma justificativa além de si mesma para ser cultivada. Esta foi a posição de todos os principais filósofos gregos. No cristianismo, também, a experiência religiosa dos primeiros Santos Padres apontou esta capacidade como sendo elemento fundamental para a compreensão profunda das grandes verdades do cristianismo, apesar de, e isto é significativo, em nenhuma parte das Sagradas Escrituras esta capacidade ser descrita nos termos empregados por Hugo de São Vítor. Esta afirmação dos Santos Padres tem sua similar nos antigos filósofos gregos quando estes também colocaram que nenhum dos problemas existenciais básicos do ser humano pode ser convenientemente abordado sem ser por este meio.

Estes dois motivos talvez já bastassem, mas existe ainda um terceiro para Hugo de S. Vítor que talvez seja o mais importante. É que, ao contrário do que parece dar a entender o opúsculo sobre o modo de aprender, a contemplação não é ainda a meta final da pedagogia. Assim como a meditação se fundamenta no pensamento, e a contemplação se baseia na meditação, outras operações se baseiam, por sua vez, na contemplação. Estas, porém, são tratadas em outros trabalhos de Hugo.

6.

A presente tradução.

Na presente tradução encontramos, primeiramente, o opúsculo Sobre o Modo de Aprender e de Meditar. Nele encontramos expostos a sequência das fases do aprendizado do pensamento, intimamente relacionado com a leitura, à meditação e desta à contemplação. Nele encontramos também vários conselhos relativamente à leitura.

Em outras obras de Hugo encontramos uma explicação mais pormenorizada sobre cada uma destas fases.

A teoria da meditação é encontrada num opúsculo intitulado Sobre a Arte de Meditar, cuja tradução vem em seguida à do modo de aprender e de meditar.

A contemplação é exposta no livro sétimo do Didascalicon, cuja tradução vem em seguida à da arte de meditar.

Os seis primeiros livros do Didascalicon, não traduzidos neste trabalho senão em parte, se ocupam mais extensamente com o problema da leitura. Os três primeiros tratam da leitura e do estudo dos temas que hoje chamaríamos de profanos; os três últimos tratam da leitura e do estudo das Sagradas Escrituras.

Em ambas estas partes aborda-se o problema da leitura tanto do ponto de vista sobre o que ler, como sobre de que modo ler.

Nos três primeiros livros, em relação a o que ler, Hugo expõe o conteúdo das artes liberais, isto é, as dos ciclos de estudos denominados na idade média de trivium e quadrivium. O trivium, introdução ao quadrivium, constituía-se de gramática, retórica e lógica. O quadrivium, introdução aos estudos superiores, constituía-se de matemática, geometria, astronomia e música. Hugo também expõe o conteúdo de outras artes além destas. Quanto ao problema de como ler, o conteúdo dos três primeiros livros do Didascalicon parece-se muito com o Opúsculo sobre o Modo de Aprender. Os três livros restantes do Didascalicon ocupam-se com a leitura e o estudo das Sagradas Escrituras.

Neste trabalho traduzimos integralmente o livro sétimo do Didascalicon que versa sobre a contemplação. Precedemos a tradução deste sétimo livro de passagens tiradas dos livros primeiro e segundo, sobre o caráter da filosofia, e do livro quinto e sexto, passagens todas que pudessem servir para introduzir o assunto contido no sétimo, reproduzindo-lhe algo do contexto relevante dos livros anteriores.

A omissão quanto ao conteúdo de cada arte e das Escrituras Sagradas, consideravelmente extensa, foi proposital. Já existem traduções em línguas modernas dos seis primeiros livros do Didascalicon, tal como a em língua inglesa de 1961 devida a Jeromy Taylor e publicada pela Columbia University Press; quanto aos três textos aqui traduzidos, entretanto, não nos consta existir tradução alguma.

Por outro lado, estes três textos formam uma sequência muito bem concatenada: interrompê-la, traduzindo os seis primeiros livros do Didascalicon na íntegra e introduzindo assim uma enorme massa de material sobre um aspecto bastante diverso, embora da mesma questão que temos em pauta, seria dificultar ainda mais o acesso a uma concepção de pedagogia que é, já sem isto, bastante difícil para a compreensão do homem moderno.

Precedendo os três trabalhos de Hugo, intitulados, pois, Sobre o modo de Aprender e de Meditar, Sobre a Arte de Meditar, e o último, que neste trabalho pode ser encontrado sob o nome de Tratado dos Três Dias, temos ainda uma tradução condensada da introdução de Monsenhor Hugonin sobre a Fundação da Escola de São Vítor que precede as obras de Hugo no volume 175 da Patrologia Latina de Migne.



Referências

(1) São Tomás de Aquino: Summa Theologiae, Prima Pars, Q. 117, a. l.
São Tomás de Aquino: Quaestiones Disputatae de Veritate, Quaestio 11, a. 1.
(2) São Tomás de Aquino: Quaestiones Disputatae de Veritate, Q.11 a.1.
(3) São Tomás de Aquino: idem.
(4) Anísio Teixeira: Educação para a Democracia.
Anísio Teixeira: Bases para uma programação da Educação Primária no Brasil, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos.