IV



Falamos do sacrifício enquanto instituição de direito natural, expondo depois algumas características que a esta instituição são acrescentadas pelo Cristianismo. O advento do Cristianismo, porém, havia sido precedido entre os judeus pelas leis da Antiga Aliança, promulgadas por meio de Moisés junto ao Monte Sinai, pouco antes de um milênio antes de Cristo.

Com o advento da Lei Mosaica a atitude até então espontânea do sacrifício foi sancionada e regulamentada pela lei divina. Mais ainda, pode-se dizer que foi trazida para o próprio centro da Antiga Aliança, pois quando o povo escolhido, saindo do Egito, chegou aos pés do Sinai, assim falou Deus a Moisés:

"Vós vistes o que eu fiz aos Egípcios.
Pois bem,
se ouvirdes atentamente a minha voz
e guardardes a minha aliança,
sereis minha propriedade especial entre os povos,
e vós constituireis para mim
um reino de sacerdotes
e uma nação santa".

Ex. 19, 6

Um reino de sacerdotes, pois, era o que Deus queria do povo de Israel. E o sacerdócio existe em função do sacrifício.

Como e em que extensão as leis ditas cerimoniais do Velho Testamento regulamentaram a atividade sacerdotal do povo de Israel é um assunto sobre o qual não desejamos entrar em maiores detalhes. Mas a instituição destas leis cerimoniais na lei mosaica tornou o povo de Israel um povo cuja própria existência tinha por finalidade prestar um culto a Deus, único entre os povos, cujo centro eram os sacrifícios descritos nos livros sagrados. A instituição dos ritos contidos nas leis cerimoniais principiou um verdadeiro trabalho pedagógico de Deus em seu povo escolhido em relação à atitude sacrificial que destinava-se também a possibilitar aos homens a compreensão do que Cristo um dia haveria de fazer na cruz, ao mesmo tempo em que já era figura dEle.

O caráter pedagógico das leis cerimoniais em relação à atitude sacrificial aprofundou-se com as missões dos profetas da Antiga Aliança posteriores a Moisés. Eles procuraram fazer ver, dentre outras coisas, que o verdadeiro valor do sacrifício diante de Deus consiste em ser símbolo de um outro sacrifício espiritual que necessariamente deve existir juntamente com o primeiro. É neste sentido que devem ser interpretadas diversas outras passagens do Velho testamento, posteriores a Moisés, em que Deus parece desprezar a prática dos sacrifícios.

No Salmo 49, por exemplo, posterior a Moisés, diz Deus pela boca do profeta:

"Escuta, Israel,
tenho que te admoestar.

Não tomarei o novilho de tua casa,
nem os cabritos de teu rebanho.

Se eu tivesse fome,
não o diria a ti,
porque minha é toda a terra
e tudo o que ela contém.

Porventura eu como a carne de touros,
ou bebo o sangue de cabritos?

Oferece a Deus o sacrifício de louvor,
e cumpre os votos que fizeste ao Altíssimo.

Prestai atenção,
os que de Deus esqueceis:
honra-me quem oferece
um sacrifício de louvor;
ao que segue o caminho reto,
dar-lhe-ei a fruir a salvação eterna".

Esta passagem, assim como outras, não se destina a condenar as práticas cerimoniais da Lei Mosaica, mas a chamar a atenção para o sacrifício interno simbolizado pelo externo.

Comentando este fato, diz Agostinho no décimo livro da Cidade de Deus:

"O sacrifício visível é sacramento
do sacrifício invisível,
ou seja, sinal sagrado.
Eis porque a alma penitente,
a que se refere o profeta no Salmo 50,
ou o próprio profeta,
invocando a clemência divina,
exclama:

`Se houvesse querido sacrifícios,
eu te-lo-ia, sem dúvida, oferecido,
mas não te deleitarás com holocaustos.
O sacrifício para Deus é
o espírito arrependido;
Deus não despreza
o coração contrito e humilhado'.

É de se notar como onde disse
que Deus não quer sacrifícios,
ali mesmo mostra que Deus quer sacrifícios.
Não quer sacrifício de rês sacrificada,
mas o sacrifício do coração contrito.
O sacrifício que Deus não quer,
segundo o profeta,
é figura do sacrifício que quer.

Por isso,
onde no Velho Testamento se lê:

`Quero misericórdia
e não sacrifícios',

não convém entender outra coisa senão que
o que todos chamam de sacrifício
é signo do verdadeiro sacrifício".

S. Agostinho
A Cidade de Deus X, 5

"A própria alma é sacrifício
quando se oferece a Deus abrasada
no fogo de seu amor e,
despojando-se da concupiscência do século
para reformar-se
de acordo com o modelo imutável,
lhe oferece a infinita beleza
de seus próprios dons".

Idem, idem, X. 6

O Espírito Santo, pois, inspirou tais passagens do Velho Testamento não para condenar a prática das leis cerimoniais instituídas por Moisés, mas para chamar a atenção para este verdadeiro sacrifício do qual aquele outro é símbolo. No profeta Malaquias, o último do Velho Testamento na ordem cronológica, Ele volta a repreender os sacerdotes que cumprem negligentemente as leis cerimoniais:

"Um filho ama o pai,
e um servo o seu senhor.
Se eu, pois, sou pai,
onde está a honra que me corresponde?
E se eu sou o Senhor,
onde está o respeito que se me deve?
diz o Senhor dos Exércitos a vós,
sacerdotes,
desprezadores de meu nome.
Vós, porém, me perguntais:

`Em que modo desprezamos o vosso nome?'

Vós ofereceis sobre o meu altar
alimentos ofensivos.
Quando ofereceis em sacrifício
um animal cego,
isto não é mau?
E quando ofereceis
um animal coxo ou doente,
isto não é mau?
Eu já não encontro em vós
o meu comprazimento,
diz o Senhor dos Exércitos,
e nenhuma oblação vinda de vossas mãos
já me agrada;
porque desde onde o Sol desponta
até onde se põe,
grande é o meu nome
entre as nações,
e em todo o lugar
se oferece ao meu nome
o perfume de incenso
com uma oblação pura.
Vós, porém, o profanais:
trazeis vítimas roubadas,
coxas ou doentes
para oferecê-las em sacrifício.
Como posso eu aceitá-las com agrado,
de vossas mãos?"

Mal. 1, 6-11

Esta passagem de Malaquias é de particular importância por ter sido considerada já entre os primeiros cristãos como uma profecia da instituição do Sacrifício Eucarístico, que se espalharia entre todas as nações, do nascente ao poente, agora sim em substituição aos sacrifícios da lei mosaica, restritos apenas ao povo judeu. É ao Sacrifício do Altar que se referiam estas palavras:

"Eu já não encontro em vós
o meu comprazimento,
diz o Senhor dos Exércitos,
e nenhuma oblação
vinda de vossas mãos
já me agrada;
porque desde onde o Sol desponta
até onde se põe,
grande é o meu nome entre as nações,
e em todo o lugar se oferece ao meu nome
o perfume de incenso
com uma oblação pura".

A oblação pura a que se refere Malaquias é o próprio Cristo oferecido no Sacrifício do Altar.

Assim é que um longo caminho preparava o terreno para a Redenção que seria operada por Cristo. Vindo ao mundo, ofereceu-se a si próprio como vítima do sacrifício da cruz; sem que os romanos se dessem conta da importância da coincidência, Cristo foi imolado precisamente no dia da Páscoa, no qual, em todas as casas do povo de Israel, se celebrava o sacrifício do cordeiro pascal. Jesus era, neste dia, o cordeiro de Deus. Sem que também os romanos o tivessem percebido, foi igualmente, devido a circunstâncias aparentemente fortuitas, excepcionalmente crucificado obedecendo a diversos detalhes que estavam prescritos há mais de mil anos pela lei mosaica para o ritual do cordeiro pascal. A semelhança, porém, não foi uma simples coincidência: toda a história de Israel foi uma preparação para que fosse possível perceber-se que naquela Páscoa Cristo oferecia a Deus o sacrifício de um cordeiro que era ele próprio. Sacrifício tão mais valioso quanto mais valiosa era a vítima, o Filho de Deus feito homem, e mais ainda por simbolizar externamente outro sacrifício interior que estava acontecendo o qual jamais encontraria outro igual na história, o sacrifício de um amor que conhecia ao Deus amado como nenhuma criatura jamais o pôde e que também, por conhecer tanto a Deus, por isto mesmo conhecia também de modo igual a malícia do pecado pelo qual agora este amor se oferecia em reparação. Foi este amor que mereceu a salvação dos homens.

É por isto que ao mesmo tempo em que no Cristianismo o maior mandamento é o amor a Deus, seu símbolo é o Cristo crucificado, pois aquele sacrifício celebrado por Jesus no dia da Páscoa foi o maior ato de amor que jamais houve, e não acidentalmente foi que se consumou num rito sacrificial. Desde a instituição da gênero humano, a própria natureza humana, educada posteriormente pela pedagogia divina, o tomou como capaz de expressar visivelmente tudo aquilo que o amor pode conter de mais puro e mais sublime. O próprio Cristo, um dia antes de morrer, já o havia dito:

"Ninguém tem maior amor
do que aquele que dá
a vida pelos amigos".

Jo. 15, 14

Assim, o sacrifício de Cristo na cruz está tão no centro do Cristianismo como o preceito do amor a Deus. Aquele sacrifício foi o exemplo mais sublime da prática daquele mandamento, pelo amor sublime com que nele Cristo amou a Deus e aos homens.

A Revelação, porém, não havia de terminar com a morte de Cristo. Na noite anterior à sua Paixão, Jesus havia afirmado aos Apóstolos que ainda tinha muitas coisas para dizer, mas que eles

"não as teriam podido
compreender naquele momento".

Jo. 16, 12

Por isto, subindo aos céus, rogaria ao Pai para que lhes enviasse

"um Consolador,
que estaria com eles para sempre,
o Espírito da Verdade",

Jo. 14, 16-17

o qual

"lhes ensinaria toda a verdade".

Jo. 16, 13

A revelação cristã em toda a sua totalidade, portanto, tudo aquilo que o Cristo ainda desejava ensinar sem que o pudesse, ou, no seu dizer, "toda a verdade", somente seria ensinada aos Apóstolos após a sua morte, por inspiração do Espírito Santo.

Foi desta maneira que depois da morte e ressurreição de Cristo o caráter interior do sacrifício foi acentuado mais ainda do que havia sido feito pelos profetas do Velho Testamento. É assim que na primeira carta de São Pedro, este escrevia aos cristãos:

"Achegai-vos a Cristo,
pedra viva,
rejeitada pelos homens,
mas eleita e honrada por Deus.

Vós também,
como pedras vivas,
estais edificados sobre Ele,
para serdes um edifício espiritual,
um sacerdócio santo,
para oferecer vítimas espirituais,
aceitas por Deus por Cristo Jesus.

Vós sois estirpe eleita,
sacerdócio régio,
gente santa,
povo trazido à salvação,
para tornardes conhecidos
os prodígios daquele que vos chamou
das trevas para a luz admirável".

1 Pe. 2, 4-10

É de se notar como São Pedro diz que os cristãos são um sacerdócio santo, mas para oferecer vítimas espirituais, não as dos animais do Velho Testamento. Descreve aqui, pois, São Pedro, um sacrifício puramente interior.

Também diz São Paulo, na Epístola aos Romanos:

"Exorto-vos, pois, irmãos,
pela misericórdia de Deus,
a oferecer os vossos corpos como vítima viva,
santa, agradável a Deus,
como vosso culto racional".

Rom. 12, 1

E João, no Apocalipse:

"Jesus Cristo,
aquele que nos amou,
nos libertou de nossos pecados
em virtude de seu sangue
e fêz de nós um reino de sacerdotes
para Deus, seu Pai,
a Ele a glória e o poder
pelos séculos dos séculos".

Apoc. 1, 6

Merece que se observe, nesta passagem, a expressão "reino de sacerdotes". É a mesma que Deus havia revelado a Moisés no Êxodo.

Mas seria uma ingenuidade supor que no Cristianismo todo sacrifício visível e externo haveria de ser suprimido. Não é concebível que Deus repentinamente proibisse uma das expressões mais naturais do amor humano para com Ele, mais ainda após ter, pela Antiga Aliança, cultivado esta expressão num grau tão elevado. De fato, esta expressão continuaria sob a forma do Sacrifício da Missa, o qual perpetua entre os homens, por instituição do próprio Cristo, o mesmo sacrifício que Ele realizou na Páscoa memorável da Redenção. Como todas as leis cerimoniais do Antigo Testamento eram uma figura deste sacrifício que seria realizado por Cristo, estando agora presente entre os homens a realidade antes apenas figurada, extingüem-se só por isto os ritos anteriores.

Naquele sacrifício prefigurado pelas leis cerimoniais, o sacrifício único da cruz, Jesus ofereceu a Deus algo que valia mais não só do que todos os sacrifícios da Antiga Aliança, mas também mais do que toda a obra da Criação; algo de tamanha importância e centralidade, oferecido também por amor dos homens, não podia perder-se num momento passado da história. Por amor aos homens, novamente, Jesus decidiu perpetuar aquele momento. Seu sacrifício haveria de ser representado, ao longo dos séculos, por outro verdadeiro sacrifício, ainda que sem derramamento de sangue. Não se trata de um novo sacrifício instituído para acrescentar eficácia ao sacrifício da cruz; é o próprio sacrifício da cruz reproduzido incessantemente diante dos homens para perpetuar a sua memória e para chamar aos homens de todos os tempos à participação viva daquele.

Sabemos que a missa instituída por Cristo é sacrifício não apenas pela profecia de Malaquias, mas também pela profecia messiânica do Salmo 110, reconhecida como tal pelas palavras de Cristo no Novo testamento, e pela tradição dos rabinos.

No Salmo 110 está escrito que ao Messias o Senhor teria jurado,

"irrevogavelmente:

`Tu és sacerdote para sempre
segundo a ordem de Melquisedec'".

Salmo 110, 4

Ora, alguém é ordenado sacerdote segundo uma dada ordem para poder realizar o sacrifício segundo o determinado rito daquela ordem. E de Melquisedec a única menção que as Sagradas Escrituras fazem data de 1200 anos antes desta profecia; foi ele o rei que a Escritura designa no Gênesis que teria se aproximado de Abraão após sua vitória militar contra Codorlaomer com uma oferta de pão e vinho para oferecer um sacrifício,

"pois era sacerdote
de Deus Altíssimo".

Gen. 14, 20

Em nenhuma outra passagem do Velho Testamento se cita um sacrifício de pão e vinho, exceto o de Melquisedec. O Messias ser ordenado para sempre segundo a ordem de Melquisedec não significa outra coisa senão que Ele seria ordenado por Deus para oferecer este mesmo sacrifício. Porém a única vez que a Escritura menciona Cristo ter celebrado algum rito com pão e vinho foi durante a última ceia. Nela ele tomou o pão, o abençoou, o partiu e o deu aos seus discípulos dizendo:

"Tomai e comei,
isto é o meu corpo".

Tomando depois o cálice, deu graças e o deu a beber, dizendo:

"Bebei dele todos.
Isto é o meu sangue da Nova Aliança,
que será derramado por muitos
para o perdão dos pecados".

Esta ceia era, pois, um sacrifício de pão e vinho oferecido a Deus segundo a ordem de Melquisedec. Dizendo Jesus "Isto é o meu corpo" e "Isto é o meu sangue que será derramado por muitos", quiz dizer que este sacrifício de pão e vinho não era algo distinto do sacrifício da cruz que seria realizado no dia seguinte.

Mas na última ceia Cristo acrescentou, ordenando aos Apóstolos:

"Fazei isto em minha memória".

Com isto não fêz outra coisa senão instituí-los sacerdotes para oferecerem este mesmo sacrifício, com o fim de que todos os homens pudessem se unir a Ele de modo visível e real no sacrifício da Redenção, centro do Cristianismo e paradigma do preceito da caridade, participando assim juntamente com o próprio Cristo daquele ato de amor e oferecendo juntamente com o sacrifício dEle os seus próprios pessoais.

Não há, pois, também contradição alguma em se dizer ora que o sacrifício da Missa é o ponto central do Cristianismo, ora que o mandamento do amor é este ponto central. O primeiro é a mais plena realização do outro.

Mas há ainda outro motivo pelo qual sabemos que a Missa é sacrifício. É que, desde o início do Cristianismo isto foi afirmado unanimemente por todos os cristãos de todos os lugares e de todas as épocas durante quinze séculos sem que tivesse havido uma única voz que o tivesse contestado. De um modo especial a história da Igreja primitiva testemunha abundantemente que a Missa foi vista desde o princípio como o Sacrifício da Nova Aliança.

Assim é que no século II o mártir São Justino deixou testemunhado num texto denominado "Apologia ao Judeu Trifão" o costume que ele descreve como sendo o de toda a Igreja:

"Eu dizia, senhores,
que também a oblação da flor de farinha que,
conforme a tradição,
é oferecida pelos que são purificados da lepra,
era figura do pão da ação de graças
em relação ao qual Jesus Cristo,
Nosso Senhor,
manda fazer em memória da paixão
que ele sofreu pelos que são purificados nas almas
de toda a maldade dos homens,
para que rendêssemos graças a Deus
por ter criado o Universo
com todas as coisas que nele existem através do homem e,
ao mesmo tempo,
por nos ter libertado do mal em que nascemos
e ter destruído fatalmente os principados
e as potestades através daquele que,
segundo a Sua vontade,
nasceu passível.
É daí que,
como falei anteriormente,
diz Deus através do profeta Malaquias,
um dos doze profetas,
sobre os sacrifícios então por vós,
judeus, oferecidos:

`Minha vontade não está em vós,
diz o Senhor,
e não aceitarei de vossas mãos
os vossos sacrifícios;
porque do nascer ao por do Sol
o meu nome é glorificado entre os gentios
e em todo lugar se oferecem ao meu nome
incenso e um sacrifício puro,
pois grande é o meu nome
entre os gentios, diz o Senhor:
vós, porém, o profanais'.

Já então ele profetiza sobre
os sacrifícios a ele oferecidos
em todo lugar por nós,
gentios, isto é,
do pão da ação de graças
como também do cálice da ação de graças,
dizendo que nós glorificaremos o seu nome,
vós, porém, o profanais".

Por volta do ano 340 DC, Eusébio de Cesaréia também escrevia em um livro denominado Demonstração Evangélica:

"(O Salmista diz que Cristo)
será sacerdote segundo a ordem
de Melquisedec (Salmo 110,4).

O cumprimento desta profecia causa admiração
ao que contempla como Jesus,
nosso Salvador, o Cristo de Deus,
cumpre ainda agora,
por meio de seus servidores,
o seu ministério sacerdotal entre os homens
à maneira de Melquisedec.
Pois assim como ele,
sendo sacerdote dos gentios,
nos é apresentado não utilizando
nenhum gênero de vítimas corporais,
mas apenas pão e vinho ao abençoar Abraão,
do mesmo modo nosso Salvador e Senhor,
em pessoa primeiro,
e depois todos os sacerdotes que procedem dele,
cumprindo o ministério sacerdotal espiritual
segundo os ritos da Igreja por todas as nações,
insinuam com pão e vinho
os mistérios do seu corpo
e do seu sangue salvador,
tendo Melquisedec já visto de antemão
estas coisas que haviam de acontecer,
segundo o atesta a Escritura de Moisés,
dizendo:

`E Melquisedec, rei de Salém,
apresentou pão e vinho;
e era sacerdote do Deus Altíssimo,
e abençoou a Abraão'

Gen. 14, 18

Com razão, portanto,
apenas a Aquele que foi mostrado

`jurou o Senhor e não se arrependerá:
Tu és', diz Ele,
`sacerdote para sempre
segundo a ordem de Melquisedec'".

Eusébio de Cesaréia
Demonstração Evangélica
L. 5, C. 3, MG 22, 361

Por volta do ano 400, Santo Agostinho também escrevia em seus livros coisas do mesmo teor:

"Jesus é também nosso sacerdote para sempre
segundo a ordem de Melquisedec",

diz Agostinho,

"ele que ordenou que se celebrasse
a semelhança daquele sacrifício da cruz
em memória de sua paixão;
para que vejamos que aquilo
que Melquisedec ofereceu a Deus
(Gen. 14, 18) é já oferecido
na Igreja de Cristo por toda a terra".

Livro das 83 Questões
Q. 61, nº2, ML 40, 49

O mesmo Agostinho, em um sermão pregado no dia da Páscoa a um grupo de recém batizados diz também o seguinte:

"Agora vêdes com nova luz
sobre a mesa do Senhor
esta comida e esta bebida,
e agora percebeis com nova piedade
o que significa tão limpo e fácil sacrifício,
oferecido agora não naquele templo
construído por Salomão,
mas sim desde o nascer ao por do Sol,
assim como foi predito pelos profetas.
Não necessitamos já de hóstias cruentas
dos rebanhos de animais;
não necessitamos já pôr nos altares
ovelhas nem cordeiros;
já lestes no livro do Gênesis
como Melquisedec,
sacerdote do Deus excelso,
ofereceu pão e vinho
quando abençoou nosso pai Abraão.
Assim, pois,
Cristo Nosso Senhor,
feito príncipe dos sacerdotes,
estabeleceu esta nova maneira
de sacrificar o que aqui vedes,
o seu próprio corpo e o seu próprio sangue.
Reconhecei no pão aquilo que pendeu da cruz;
reconhecei no cálice aquilo que fluíu do lado".

Sermão do Dia da Páscoa
ML 46, 827

Em outro sermão de Santo Agostinho encontramos ainda esta passagem:

"A Igreja,
pela sucessão certíssima dos bispos,
persevera desde o tempo dos Apóstolos
até os nossos e daqui para a frente,
e imola ao Senhor no Corpo de Cristo
um sacrifício de louvor,
não segundo a ordem de Aarão,
mas segundo a ordem de Melquisedec.
Naquele salmo,
que o Senhor Jesus afirma no Evangelho
que havia sido escrito acerca dele mesmo,
está escrito:

`Jurou o Senhor,
e não se arrependerá:
Tu és sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedec'.

Os que leram sabem o que ofereceu Melquisedec
quando bendisse a Abraão (Gen. 14, 18);
e já são partícipes do mesmo,
vêem que este sacrifício se oferece a Deus
em toda a terra.
E quando diz que Deus não se arrependerá,
significa que não mudará este sacerdócio.
Mudou, de fato, o sacerdócio
segundo a ordem de Aarão.
De onde que outro profeta diz:

`Minha vontade não está em vós,
diz o Senhor Onipotente,
e não receberei hóstia de vossas mãos'.

Mal. 1, 10

Eis aqui o sacrifício
segundo a ordem de Aarão.
E acrescenta porque não recebe este sacrifício:

`Porque desde o oriente até o poente
meu nome é glorificado entre as nações,
e em todo lugar se ofecere ao meu nome
incenso e uma hóstia pura,
porque grande é o meu nome entre as nações,
diz o Senhor Onipotente'

Idem, 10 s

Eis aqui o sacrifício
segundo a ordem de Melquisedec'.

ML 42, 623, 627

Tais passagens são exemplos de inúmeras outras que poderiam ser citadas de um período que abrange quinze séculos desde o início do Cristianismo, sem que nele se encontrem vozes contestatárias. Mais adiante haveremos de abordar outros escritores dos três primeiros séculos que trataram deste mesmo assunto; os anteriores, porém, já nos mostram em que sentido o caráter sacrificial da Missa foi tido como doutrina constante entre os cristãos.

Resta notar ainda a unidade existente entre o Sacrifício da Missa e o Sacrifício da Cruz, para poder explicar- se um aparente paradoxo encontrado na Epístola aos Hebreus. Um primeiro exame desta epístola, de fato, nos mostra que ela discorre sobre o tema de Cristo sacerdote segundo a ordem de Melquisedec, mas não menciona o Sacrifício da Missa. Só um exame mais atento tanto da epístola como do assunto considerado em si mesmo pode nos explicar o motivo desta importante, mas aparente contradição.

A unidade existente entre o Sacrifício da Missa e o Sacrifício da Cruz advém de um ser a representação do outro. É o mesmo sacrifício, oferecido sob formas distintas:

"Isto é o meu corpo",

diz Jesus, e também:

"Isto é o meu sangue,
derramado por muitos".

Não há, pois, aqui, dois sacerdócios distintos. No altar se faz sem derramamento de sangue aquilo mesmo que Jesus fêz na cruz. Neste único sacerdócio tem primazia, entretanto, o Sacrifício da Cruz, já que o do altar é representação daquele.

O sacrifício de Melquisedec, figurando o do altar, figura também o principal, que é o da cruz. No sacerdócio de Melquisedec, enquanto oferecimento do sacrifício de pão e vinho, figura-se o sacrifício do altar; pela reverência exibida por Abraão a este sacrifício, figura-se o sacrifício da cruz, pelo qual foi redimida a humanidade e foram abençoadas todas as nações da terra. No sacerdócio de Melquisedec está, portanto, representado todo o sacerdócio de Cristo, e não apenas o Sacrifício da Missa.

Por causa deste fato, mais o acréscimo de outras causas circunstanciais, é que pôde a Epístola aos Hebreus, ao abordar o tema de Cristo sacerdote segundo a ordem de Melquisedec, não mencionar o Sacrifício da Missa.

O Apóstolo não quis na Carta aos Hebreus dissertar sobre o pleno conteúdo de Melquisedec figura de Cristo. Ele escreveu esta carta a hebreus, e sua preocupação evidente foi a de demonstrar a excelência do sacerdócio de Cristo sobre o sacerdócio judaico. Ele quis mostrar como o sacerdócio de Cristo extinguiu o judaico, para que os hebreus convertidos ao cristianismo não cedessem à tentação existente entre eles de retornarem aos ritos antigos e de ensinarem aos gentios recém convertidos a obrigatoriedade das leis cerimoniais do Velho Testamento. Ora, a justificação destas afirmações tem a sua fonte no Sacrifício da Cruz. Dissertar sobre a missa em tal contexto só serviria para dispersar a atenção dos destinatários sobre um assunto não só muitíssimo delicado naquele época, como também de cuja acertada solução dependia decisivamente a própria difusão do Evangelho entre os gentios. E, de fato, o sacrifício de Melquisedec nesta carta só é invocado na medida em que por ele pode-se evidenciar que o Antigo Testamento demonstra a existência de um sacerdócio superior ao da Lei Mosaica. Se o Apóstolo estivesse tratando do assunto em si mesmo, se tivesse querido tratar de todo o significado contido no tema do sacerdócio de Melquisedec, ele teria que, em algum momento, ter explicado o que significa a presença do pão e do vinho nesta forma de sacerdócio. Mas em nenhum momento nesta epístola se menciona nada a respeito de pão e de vinho. Este aspecto da questão é passado totalmente em silêncio, o que mostra que a intenção do autor da Epístola não foi a de tratar do assunto considerado em si mesmo, mas apenas na medida em que ele poderia trazer luz a uma outra questão, que é o verdadeiro tema da Epístola e que, em seu tempo, exigia uma solução urgente e definitiva para a própria sorte da propagação da mensagem cristã entre os povos de toda a terra.

Podemos concluir este capítulo mencionando que poucos anos após ter se cumprido a Redenção, o exército romano entrou em Jerusalém, destruíu o templo de Salomão ali reconstruído e dispersou a comunidade judaica pelo mundo da época. Com isso cessaram até hoje, não só de direito, como também de fato, a quase totalidade dos sacrifícios prescritos pela Lei Mosaica.

Sobrevindo a realidade, cessou a figura.