Falamos do sacrifício enquanto instituição de direito natural, expondo depois algumas características que a esta instituição são acrescentadas pelo Cristianismo. O advento do Cristianismo, porém, havia sido precedido entre os judeus pelas leis da Antiga Aliança, promulgadas por meio de Moisés junto ao Monte Sinai, pouco antes de um milênio antes de Cristo.Com o advento da Lei Mosaica a atitude até então espontânea do sacrifício foi sancionada e regulamentada pela lei divina. Mais ainda, pode-se dizer que foi trazida para o próprio centro da Antiga Aliança, pois quando o povo escolhido, saindo do Egito, chegou aos pés do Sinai, assim falou Deus a Moisés:
Um reino de sacerdotes, pois, era o que Deus queria do povo de Israel. E o sacerdócio existe em função do sacrifício. Como e em que extensão as leis ditas cerimoniais do Velho Testamento regulamentaram a atividade sacerdotal do povo de Israel é um assunto sobre o qual não desejamos entrar em maiores detalhes. Mas a instituição destas leis cerimoniais na lei mosaica tornou o povo de Israel um povo cuja própria existência tinha por finalidade prestar um culto a Deus, único entre os povos, cujo centro eram os sacrifícios descritos nos livros sagrados. A instituição dos ritos contidos nas leis cerimoniais principiou um verdadeiro trabalho pedagógico de Deus em seu povo escolhido em relação à atitude sacrificial que destinava-se também a possibilitar aos homens a compreensão do que Cristo um dia haveria de fazer na cruz, ao mesmo tempo em que já era figura dEle. O caráter pedagógico das leis cerimoniais em relação à atitude sacrificial aprofundou-se com as missões dos profetas da Antiga Aliança posteriores a Moisés. Eles procuraram fazer ver, dentre outras coisas, que o verdadeiro valor do sacrifício diante de Deus consiste em ser símbolo de um outro sacrifício espiritual que necessariamente deve existir juntamente com o primeiro. É neste sentido que devem ser interpretadas diversas outras passagens do Velho testamento, posteriores a Moisés, em que Deus parece desprezar a prática dos sacrifícios. No Salmo 49, por exemplo, posterior a Moisés, diz Deus pela boca do profeta:
Esta passagem, assim como outras, não se destina a condenar as práticas cerimoniais da Lei Mosaica, mas a chamar a atenção para o sacrifício interno simbolizado pelo externo. Comentando este fato, diz Agostinho no décimo livro da Cidade de Deus:
O Espírito Santo, pois, inspirou tais passagens do Velho Testamento não para condenar a prática das leis cerimoniais instituídas por Moisés, mas para chamar a atenção para este verdadeiro sacrifício do qual aquele outro é símbolo. No profeta Malaquias, o último do Velho Testamento na ordem cronológica, Ele volta a repreender os sacerdotes que cumprem negligentemente as leis cerimoniais:
Esta passagem de Malaquias é de particular importância por ter sido considerada já entre os primeiros cristãos como uma profecia da instituição do Sacrifício Eucarístico, que se espalharia entre todas as nações, do nascente ao poente, agora sim em substituição aos sacrifícios da lei mosaica, restritos apenas ao povo judeu. É ao Sacrifício do Altar que se referiam estas palavras:
A oblação pura a que se refere Malaquias é o próprio Cristo oferecido no Sacrifício do Altar. Assim é que um longo caminho preparava o terreno para a Redenção que seria operada por Cristo. Vindo ao mundo, ofereceu-se a si próprio como vítima do sacrifício da cruz; sem que os romanos se dessem conta da importância da coincidência, Cristo foi imolado precisamente no dia da Páscoa, no qual, em todas as casas do povo de Israel, se celebrava o sacrifício do cordeiro pascal. Jesus era, neste dia, o cordeiro de Deus. Sem que também os romanos o tivessem percebido, foi igualmente, devido a circunstâncias aparentemente fortuitas, excepcionalmente crucificado obedecendo a diversos detalhes que estavam prescritos há mais de mil anos pela lei mosaica para o ritual do cordeiro pascal. A semelhança, porém, não foi uma simples coincidência: toda a história de Israel foi uma preparação para que fosse possível perceber-se que naquela Páscoa Cristo oferecia a Deus o sacrifício de um cordeiro que era ele próprio. Sacrifício tão mais valioso quanto mais valiosa era a vítima, o Filho de Deus feito homem, e mais ainda por simbolizar externamente outro sacrifício interior que estava acontecendo o qual jamais encontraria outro igual na história, o sacrifício de um amor que conhecia ao Deus amado como nenhuma criatura jamais o pôde e que também, por conhecer tanto a Deus, por isto mesmo conhecia também de modo igual a malícia do pecado pelo qual agora este amor se oferecia em reparação. Foi este amor que mereceu a salvação dos homens. É por isto que ao mesmo tempo em que no Cristianismo o maior mandamento é o amor a Deus, seu símbolo é o Cristo crucificado, pois aquele sacrifício celebrado por Jesus no dia da Páscoa foi o maior ato de amor que jamais houve, e não acidentalmente foi que se consumou num rito sacrificial. Desde a instituição da gênero humano, a própria natureza humana, educada posteriormente pela pedagogia divina, o tomou como capaz de expressar visivelmente tudo aquilo que o amor pode conter de mais puro e mais sublime. O próprio Cristo, um dia antes de morrer, já o havia dito:
Assim, o sacrifício de Cristo na cruz está tão no centro do Cristianismo como o preceito do amor a Deus. Aquele sacrifício foi o exemplo mais sublime da prática daquele mandamento, pelo amor sublime com que nele Cristo amou a Deus e aos homens. A Revelação, porém, não havia de terminar com a morte de Cristo. Na noite anterior à sua Paixão, Jesus havia afirmado aos Apóstolos que ainda tinha muitas coisas para dizer, mas que eles
Por isto, subindo aos céus, rogaria ao Pai para que lhes enviasse
o qual
A revelação cristã em toda a sua totalidade, portanto, tudo aquilo que o Cristo ainda desejava ensinar sem que o pudesse, ou, no seu dizer, "toda a verdade", somente seria ensinada aos Apóstolos após a sua morte, por inspiração do Espírito Santo. Foi desta maneira que depois da morte e ressurreição de Cristo o caráter interior do sacrifício foi acentuado mais ainda do que havia sido feito pelos profetas do Velho Testamento. É assim que na primeira carta de São Pedro, este escrevia aos cristãos:
É de se notar como São Pedro diz que os cristãos são um sacerdócio santo, mas para oferecer vítimas espirituais, não as dos animais do Velho Testamento. Descreve aqui, pois, São Pedro, um sacrifício puramente interior. Também diz São Paulo, na Epístola aos Romanos:
E João, no Apocalipse:
Merece que se observe, nesta passagem, a expressão "reino de sacerdotes". É a mesma que Deus havia revelado a Moisés no Êxodo. Mas seria uma ingenuidade supor que no Cristianismo todo sacrifício visível e externo haveria de ser suprimido. Não é concebível que Deus repentinamente proibisse uma das expressões mais naturais do amor humano para com Ele, mais ainda após ter, pela Antiga Aliança, cultivado esta expressão num grau tão elevado. De fato, esta expressão continuaria sob a forma do Sacrifício da Missa, o qual perpetua entre os homens, por instituição do próprio Cristo, o mesmo sacrifício que Ele realizou na Páscoa memorável da Redenção. Como todas as leis cerimoniais do Antigo Testamento eram uma figura deste sacrifício que seria realizado por Cristo, estando agora presente entre os homens a realidade antes apenas figurada, extingüem-se só por isto os ritos anteriores. Naquele sacrifício prefigurado pelas leis cerimoniais, o sacrifício único da cruz, Jesus ofereceu a Deus algo que valia mais não só do que todos os sacrifícios da Antiga Aliança, mas também mais do que toda a obra da Criação; algo de tamanha importância e centralidade, oferecido também por amor dos homens, não podia perder-se num momento passado da história. Por amor aos homens, novamente, Jesus decidiu perpetuar aquele momento. Seu sacrifício haveria de ser representado, ao longo dos séculos, por outro verdadeiro sacrifício, ainda que sem derramamento de sangue. Não se trata de um novo sacrifício instituído para acrescentar eficácia ao sacrifício da cruz; é o próprio sacrifício da cruz reproduzido incessantemente diante dos homens para perpetuar a sua memória e para chamar aos homens de todos os tempos à participação viva daquele. Sabemos que a missa instituída por Cristo é sacrifício não apenas pela profecia de Malaquias, mas também pela profecia messiânica do Salmo 110, reconhecida como tal pelas palavras de Cristo no Novo testamento, e pela tradição dos rabinos. No Salmo 110 está escrito que ao Messias o Senhor teria jurado,
Ora, alguém é ordenado sacerdote segundo uma dada ordem para poder realizar o sacrifício segundo o determinado rito daquela ordem. E de Melquisedec a única menção que as Sagradas Escrituras fazem data de 1200 anos antes desta profecia; foi ele o rei que a Escritura designa no Gênesis que teria se aproximado de Abraão após sua vitória militar contra Codorlaomer com uma oferta de pão e vinho para oferecer um sacrifício,
Em nenhuma outra passagem do Velho Testamento se cita um sacrifício de pão e vinho, exceto o de Melquisedec. O Messias ser ordenado para sempre segundo a ordem de Melquisedec não significa outra coisa senão que Ele seria ordenado por Deus para oferecer este mesmo sacrifício. Porém a única vez que a Escritura menciona Cristo ter celebrado algum rito com pão e vinho foi durante a última ceia. Nela ele tomou o pão, o abençoou, o partiu e o deu aos seus discípulos dizendo:
Tomando depois o cálice, deu graças e o deu a beber, dizendo:
Esta ceia era, pois, um sacrifício de pão e vinho oferecido a Deus segundo a ordem de Melquisedec. Dizendo Jesus "Isto é o meu corpo" e "Isto é o meu sangue que será derramado por muitos", quiz dizer que este sacrifício de pão e vinho não era algo distinto do sacrifício da cruz que seria realizado no dia seguinte. Mas na última ceia Cristo acrescentou, ordenando aos Apóstolos:
Com isto não fêz outra coisa senão instituí-los sacerdotes para oferecerem este mesmo sacrifício, com o fim de que todos os homens pudessem se unir a Ele de modo visível e real no sacrifício da Redenção, centro do Cristianismo e paradigma do preceito da caridade, participando assim juntamente com o próprio Cristo daquele ato de amor e oferecendo juntamente com o sacrifício dEle os seus próprios pessoais. Não há, pois, também contradição alguma em se dizer ora que o sacrifício da Missa é o ponto central do Cristianismo, ora que o mandamento do amor é este ponto central. O primeiro é a mais plena realização do outro. Mas há ainda outro motivo pelo qual sabemos que a Missa é sacrifício. É que, desde o início do Cristianismo isto foi afirmado unanimemente por todos os cristãos de todos os lugares e de todas as épocas durante quinze séculos sem que tivesse havido uma única voz que o tivesse contestado. De um modo especial a história da Igreja primitiva testemunha abundantemente que a Missa foi vista desde o princípio como o Sacrifício da Nova Aliança. Assim é que no século II o mártir São Justino deixou testemunhado num texto denominado "Apologia ao Judeu Trifão" o costume que ele descreve como sendo o de toda a Igreja:
Por volta do ano 340 DC, Eusébio de Cesaréia também escrevia em um livro denominado Demonstração Evangélica:
Por volta do ano 400, Santo Agostinho também escrevia em seus livros coisas do mesmo teor:
diz Agostinho,
O mesmo Agostinho, em um sermão pregado no dia da Páscoa a um grupo de recém batizados diz também o seguinte:
Em outro sermão de Santo Agostinho encontramos ainda esta passagem:
Tais passagens são exemplos de inúmeras outras que poderiam ser citadas de um período que abrange quinze séculos desde o início do Cristianismo, sem que nele se encontrem vozes contestatárias. Mais adiante haveremos de abordar outros escritores dos três primeiros séculos que trataram deste mesmo assunto; os anteriores, porém, já nos mostram em que sentido o caráter sacrificial da Missa foi tido como doutrina constante entre os cristãos. Resta notar ainda a unidade existente entre o Sacrifício da Missa e o Sacrifício da Cruz, para poder explicar- se um aparente paradoxo encontrado na Epístola aos Hebreus. Um primeiro exame desta epístola, de fato, nos mostra que ela discorre sobre o tema de Cristo sacerdote segundo a ordem de Melquisedec, mas não menciona o Sacrifício da Missa. Só um exame mais atento tanto da epístola como do assunto considerado em si mesmo pode nos explicar o motivo desta importante, mas aparente contradição. A unidade existente entre o Sacrifício da Missa e o Sacrifício da Cruz advém de um ser a representação do outro. É o mesmo sacrifício, oferecido sob formas distintas:
diz Jesus, e também:
Não há, pois, aqui, dois sacerdócios distintos. No altar se faz sem derramamento de sangue aquilo mesmo que Jesus fêz na cruz. Neste único sacerdócio tem primazia, entretanto, o Sacrifício da Cruz, já que o do altar é representação daquele. O sacrifício de Melquisedec, figurando o do altar, figura também o principal, que é o da cruz. No sacerdócio de Melquisedec, enquanto oferecimento do sacrifício de pão e vinho, figura-se o sacrifício do altar; pela reverência exibida por Abraão a este sacrifício, figura-se o sacrifício da cruz, pelo qual foi redimida a humanidade e foram abençoadas todas as nações da terra. No sacerdócio de Melquisedec está, portanto, representado todo o sacerdócio de Cristo, e não apenas o Sacrifício da Missa. Por causa deste fato, mais o acréscimo de outras causas circunstanciais, é que pôde a Epístola aos Hebreus, ao abordar o tema de Cristo sacerdote segundo a ordem de Melquisedec, não mencionar o Sacrifício da Missa. O Apóstolo não quis na Carta aos Hebreus dissertar sobre o pleno conteúdo de Melquisedec figura de Cristo. Ele escreveu esta carta a hebreus, e sua preocupação evidente foi a de demonstrar a excelência do sacerdócio de Cristo sobre o sacerdócio judaico. Ele quis mostrar como o sacerdócio de Cristo extinguiu o judaico, para que os hebreus convertidos ao cristianismo não cedessem à tentação existente entre eles de retornarem aos ritos antigos e de ensinarem aos gentios recém convertidos a obrigatoriedade das leis cerimoniais do Velho Testamento. Ora, a justificação destas afirmações tem a sua fonte no Sacrifício da Cruz. Dissertar sobre a missa em tal contexto só serviria para dispersar a atenção dos destinatários sobre um assunto não só muitíssimo delicado naquele época, como também de cuja acertada solução dependia decisivamente a própria difusão do Evangelho entre os gentios. E, de fato, o sacrifício de Melquisedec nesta carta só é invocado na medida em que por ele pode-se evidenciar que o Antigo Testamento demonstra a existência de um sacerdócio superior ao da Lei Mosaica. Se o Apóstolo estivesse tratando do assunto em si mesmo, se tivesse querido tratar de todo o significado contido no tema do sacerdócio de Melquisedec, ele teria que, em algum momento, ter explicado o que significa a presença do pão e do vinho nesta forma de sacerdócio. Mas em nenhum momento nesta epístola se menciona nada a respeito de pão e de vinho. Este aspecto da questão é passado totalmente em silêncio, o que mostra que a intenção do autor da Epístola não foi a de tratar do assunto considerado em si mesmo, mas apenas na medida em que ele poderia trazer luz a uma outra questão, que é o verdadeiro tema da Epístola e que, em seu tempo, exigia uma solução urgente e definitiva para a própria sorte da propagação da mensagem cristã entre os povos de toda a terra. Podemos concluir este capítulo mencionando que poucos anos após ter se cumprido a Redenção, o exército romano entrou em Jerusalém, destruíu o templo de Salomão ali reconstruído e dispersou a comunidade judaica pelo mundo da época. Com isso cessaram até hoje, não só de direito, como também de fato, a quase totalidade dos sacrifícios prescritos pela Lei Mosaica. Sobrevindo a realidade, cessou a figura. |