OS PRESSUPOSTOS DO
APRENDIZADO

- Sexta Parte -




39.

Relação entre humildade e contemplação, sob o aspecto da abrangência da multiplicidade.

Examinamos a contemplação sob o aspecto da tomada de consciência que ela envolve e verificamos que a humildade já continha, essencialmente, estas mesmas características que se encontram plenamente amadurecidas na contemplação.

A contemplação, porém, pode ser examinada também sob o aspecto de abarcar uma multidão ou mesmo a totalidade das coisas conhecidas, como o faz Hugo de São Vitor no Opúsculo sobre o Modo de Aprender. Segundo este texto, a contemplação

"Se estende à compreensão de muitas
ou também de todas as coisas,
a qual as abarca em uma visão
plenamente manifesta,
de tal maneira
que aquilo que a meditação busca,
a contemplação possui".

Pode-se deduzir, a partir destas palavras, que a contemplação é, sob este aspecto, a operação da inteligência da qual surgem as obras de síntese tais como a Summa Theologiae de Santo Tomás de Aquino.

Pode-se mostrar, ademais, que esta outra característica da contemplação também não apenas está essencialmente contida na humildade, como também é um desenvolvimento desta última, na medida em que o homem, consciente de ser apenas uma criatura como todos os demais homens e não um deus, respeito o seu próximo não por alguma qualidade circunstancial que se lhe atribua, mas incondicionalmente, seja o seu próximo quem for ou como se lhe apresente, apenas pela própria dignidade da natureza humana que não se adquire nem se abdica por nenhuma circunstancialidade.

O respeito incondicional do homem humilde pelo seu próximo contém virtualmente as características mais amadurecidas da contemplação pela qual esta abarca simultaneamente uma totalidade de objetos cognoscíveis porque o respeito do homem humilde pelo seu semelhante não consiste no autodomínio do homem que sabe conter seus impulsos agressivos. Isto não seria uma manifestação de humildade, mas de paciência ou mansidão. Não é por ser capaz de conter os seus próprios impulsos que o homem humilde não agride o seu semelhante, mas pelo profundo respeito que ele tem pelo outro. Por causa disto, o respeito que o homem humilde demonstra pelo seu semelhante vai muito além do simples propósito de não agredí-lo, fisica ou moralmente. O respeito do homem humilde é aquele pelo qual o outro é acolhido em sua dignidade, não só no trato exterior, como principalmente pela consideração interior.

Neste sentido, o comportamento do homem humilde difere radicalmente do comportamento do homem orgulhoso. O homem orgulhoso se comporta como se a visão que ele possui do mundo fosse dotada de atributos divinos, e despreza, pelo menos no seu íntimo, todos os homens que não são capazes de perceber este fato, como se, por causa desta circunstancialidade, eles fossem dotados de uma natureza inferior. Por este motivo, quando alguém conversa com um homem orgulhoso, o homem orgulhoso, em vez de ouvir o que se lhe diz, ouve na realidade fundamentalmente o seu próprio pensamento que compara o que diz o locutor com o que pensa o ouvinte que é ele próprio, para a seguir passar a criticar ou a elogiar o locutor não absolutamente falando, mas por comparação para consigo mesmo. Seja a atitude final do orgulhoso para com o locutor uma atitude de crítica ou de elogio, em ambos os casos ele nunca ouve verdadeiramente o outro, mas apenas a si próprio. Já o homem humilde, alguém verdadeiramente consciente de não ser um deus, ou uma criatura dotada de atributos essencialmente supra humanos, ouve sempre com atenção qualquer outro ser humano que se lhe dirija a palavra, independentemente de sua aparência ou de suas credenciais, estando sempre aberto para a possibilidade de que, seja quem for que lhe dirija a palavra, poderá vir a tratar de algum assunto mais importante do que tudo quanto ele até então conhecesse. E mesmo na hipótese de que, durante a conversa, fique claro que não era este o caso, e que o locutor nada acrescente de importante para o ouvinte, ainda assim o homem humilde irá ouví-lo e procurar entendê-lo com seriedade pelo fato de que, ainda que o assunto não seja importante para o ouvinte, deverá sê-lo pelo menos para o locutor. Apenas um motivo técnico de força maior pode fazer o homem humilde deixar de ouvir e procurar entender o seu semelhante, nunca uma disposição interior de desconsideração pelo outro a quem ele respeita como um ser humano limitado tanto quanto a si próprio.

Ora, a experiência tem mostrado que esta atitude do homem humilde conduz, com o tempo e o desenvolvimento, àquela outra pela qual o homem se torna capaz de prestar uma atenção desapaixonada e imparcial a uma multidão ou mesmo a todos os aspectos de qualquer realidade que se lhe venha a propor como tema de sua consideração, ao mesmo tempo em que se torna capaz de atribuir, a todos e a cada um destes aspectos um valor, tanto quanto é humanamente possível, objetivamente considerado.

Pode-se perceber, deste modo, que a humildade assim considerada é uma das fontes principais de onde jorrou a Summa Theologiae de Santo Tomás de Aquino. Nela observa-se uma extraordinária capacidade de síntese em que o autor demonstra ter desenvolvido uma finíssima sensibilidade em não deixar escapar nenhum aspecto relevante de questões de amplíssima natureza, tratando-as a todas com equilíbrio e isenção de ânimo e discernindo corretamente as conexões existentes entre elas. Demonstra também ter sido capaz de utilizar, para emitir o seu próprio julgamento, do mais profundo respeito pelo pensamento dos autores que anteriormente a ele haviam tratado destes mesmos assuntos; sejam eles quem sejam, cristão, judeus, muçulmanos, pagãos, herejes ou mesmo possivelmente algum ilustre desconhecido que tivesse se apresentado diante dele, pessoalmente ou através de algum escrito, declarando ter algo a manifestar-lhe sobre o tema, Santo Tomás de Aquino os consulta a todos com verdadeiro interesse não apenas para citá-los em sua obra, mas para inteirar-se efetivamente do que dizem, e os interpreta, caso raro entre os filósofos, sem distorcer-lhes o pensamento. Vemos assim que apenas a inteligência não explica a Summa Theologiae; ela é, dentre outros fatores que concorrem para explicá-la, um dos mais eloqüentes testemunhos do grau de discernimento a que é capaz de ser conduzido o homem humilde.

É ainda sob esta perspectiva que deve ser interpretado um fato bastante conhecido ocorrido ainda na adolescência de Santo Tomás de Aquino. Conta-se que certa manhã, quando era jovem estudante entre os dominicanos, os colegas de Tomás, querendo colocá-lo em ridículo pelo seu hábito de falar muito pouco que transparecia entre eles como um sinal de imbecilidade, escolheram um deles para que se aproximasse do rapaz e lhe dissesse:

"Frei Tomás,
vinde para a janela;
vinde ver um boi voando no céu!"

Calmamente, Tomás de Aquino se aproxima da janela, olha para o céu e afirma não estar vendo nada. Seus demais colegas, que contemplas estupefatos esta cena, não conseguem logo a seguir esconder uma explosão de riso. Estava demonstrado mais do que evidentemente que Tomás era de fato o idiota que eles sempre haviam suposto. Um deles então lhe dirige a palavra e pergunta:

"Que fazes, Tomás?
Que estás a procurar?
Quando é que já se ouviu falar alguma vez
de um boi voando no céu?
Era apenas uma brincadeira,
mas este teu modo de proceder
é para nós agora
causa de preocupação.
Dize sinceramente:
o que te leva a crer
que possa haver de fato
um boi voando no céu?".

A resposta de Tomás já evidenciava, porém, o quanto estava enganada esta primeira avaliação de seus colegas:

"Julguei",

respondeu Tomás de Aquino,

"que seria mais fácil
ver um boi voando no céu
do que um frade mentindo".

Este episódio da vida de Santo Tomás de Aquino, narrado o mais das vezes apenas como uma anedota, se transforma, porém, diante do que estivemos expondo, em algo que se reveste de uma transcendente seriedade. Somente uma pessoa capaz de,pelo impulso interior de não desconsiderar a um irmão, chegar a admitir a possibilidade de que um boi esteja efetivamente voando a ponto de, pelo menos, a hipótese merecer uma verificação ocular, é que poderia, um dia, vir a escrever uma obra como a Summa Theologiae.

Tudo isto que foi dito da Summa Theologiae pode ser aplicado também as obras de Hugo de S. Vitor, nas quais transparece um inconfundível sentido de equilíbrio que lhe é característico e que é fruto daquela contemplação que abarca em uma só visão uma multidão de aspectos que o comum dos homens usualmente só alcança de modo fragmentário e em que a apreensão de cada fragmento freqüentemente se realiza à custa da exclusão de outros.

O mesmo pode ser dito também da Regra de São Bento, a qual, não obstante o seu muito menor tamanho, é, porém, neste mesmo aspecto, não menos admirável do que a Summa Theologiae ou a obra de Hugo de S. Vitor. Dela vamos a seguir tecer alguns comentários, de cujo exame novamente se nos revela aquela mesma capacidade de

"estender-se a uma compreensão,
que abarca em uma visão plenamente manifesta,
muitas ou mesmo todas as coisas",

que Hugo de S. Vitor atribui à contemplação e que se origina a partir da virtude da humildade como de um desenvolvimento natural. É esta qualidade que brilha também de um modo especial na Regra de São Bento, um texto que mostra um profundo conhecimento da natureza humana e da vida monástica, em que o autor demonstra, diante destas realidades, uma delicada reverência incapaz de negligenciar uma justa atenção para com nenhum de seus múltiplos aspectos, sejam os seus grandes princípios ou os seus pequeninos detalhes, e a todos sabe inserir num conjunto cuja unidade é fruto de uma sabedoria tornada realidade vivente.

Esta delicadeza, que na contemplação não despreza e não nos cega para com nenhuma parte de um universo, é essencialmente a mesma que na humildade não despreza e não nos cega o entendimento diante da realidade de nosso semelhante. E, efetivamente, são estas mesmas características que também se encontram na Regra de São Bento todas as vezes que o santo patriarca ensina aos monges como tratar aos seus semelhantes.

São Bento pede ao abade "que não faça distinção de pessoas, que uns não sejam mais amados do que outros", "que o nascido livre não seja anteposto ao originário de condição servil", porque "somos todos um em Cristo, somente num ponto por eles distinguidos, se formos melhores do que os outros nas boas obras e humildes" (2, 16-21); pede também ao abade que ao ensinar "tempere o carinho com o rigor, mostrando a severidade de um mestre e o pio afeto de um pai" (2, 24), lembrando-lhe "que coisa difícil e árdua recebeu: reger as almas e servir ao temperamento de muitos, a este com carinho, àquele, porém, com repreensões, a outro com persuasão, segundo a maneira de ser e a inteligência de cada um, de tal modo que se conforme e adapte a todos" (2, 31-32).

Quanto tiverem que ser feitas coisas importantes no mosteiro, julgue o próprio abade o que for mais útil, não porém sem "convocar antes toda a comunidade e ouvir o conselho dos irmãos". Neste conselho, porém, São Bento insiste que não sejam chamados apenas os mais importantes ou os mais sábios, mas que todos sejam efetivamente ouvidos:

"Dissemos que todos
sejam chamados a conselho",

diz São Bento,

"porque muitas vezes
o Senhor revela ao mais moço
o que é melhor".

Regra 3, 3

A Regra insiste também que o respeito e a atenção devem ser dados não apenas aos superiores, mas particularmente aos velhos e às crianças. Na lista dos preceitos do quarto capítulo pode-se ler:

"Fugir da vanglória;
venerar os mais velhos,
amar os mais moços".

Regra 4, 69-71

No trigésimo sétimo capítulo lemos também:

"Ainda que a natureza humana
seja levada à misericórdia
para com estas idades,
velhos e crianças,
no entanto que a autoridade da Regra
olhe também por elas.
Considere-se sempre a fraqueza
que lhes é própria,
e haja em relação a elas
uma pia consideração".

Regra 37, 1-3

Mais notável ainda é a passagem em que São Bento ensina como se devem acolher os hóspedes:

"Se chegar algum monge peregrino
de longínquas províncias",

diz São Bento,

"e quiser habitar no mosteiro como hóspede,
e mostra-se contente com o costume
que encontrou neste lugar e,
porventura, não perturba o mosteiro
com suas exigências supérfluas,
mas simplesmente está contente com o que encontra,
seja recebido por quanto tempo quiser.
Se repreende ou faz ver alguma coisa
razoavelmente
e com a humildade da caridade,
trate o abade prudentemente deste caso,
pois talvez por causa disso
Deus o tenha enviado".

Regra 61, 1-4

Esta passagem é particularmente notável por mostrar até que ponto deve ir a humildade para embasar verdadeiramente o edifício espiritual. São Bento não se limita a dizer que se o visitante quiser habitar no mosteiro como hóspede, isto é, sem ser admitido como membro da comunidade, deve "ser recebido por quanto tempo quiser". Não contente com isto, o legislador acrescenta que, se, além disto, o hóspede passar a repreender a conduta dos monges ou lhes fizer ver que algo vai mal no mosteiro, não devem os monges se aborrecer com isto julgando que o visitante esteja abusando da hospitalidade que lhe foi oferecida intrometendo-se em assuntos que não lhe dizem respeito. Muito ao contrário, São Bento pede ao próprio abade que vá ouví-lo com atenção e que "trate prudentemente deste caso". O mais impressionante, porém, é que São Bento não pede ao abade que ele faça isto porque pode ocorrer que o hóspede esteja com a razão, mas porque, e pondere-se quanta diferença vai nisto, ele deve considerar seriamente a hipótese de que

"pode ser que por causa disto
Deus o tenha enviado".

É muito difícil julgar o que é mais extraordinário, se ouvir São Bento legislar desta maneira ou ver Santo Tomás de Aquino procurar no céu um burro voando. O que é certo, porém, é que se ambos não tivessem sido capazes destas coisas, nem teriam alcançado a vida de contemplação, nem teriam escrito a Summa Theologiae ou legislado sobre a vida monástica.