OS PRESSUPOSTOS DO
APRENDIZADO

- Quinta Parte -




38.

Consciência e virtude.

Nos tópicos imediatamente precedentes interrompemos nossa exposição sobre a humildade e, mais precisamente, a exposição sobre a relação existente entre a humildade e a contemplação, para mostrar que a Escritura reconhece a realidade significada pelo nome de contemplação e os efeitos que dela decorrem. Vimos também que as Escrituras insistem continuamente em que os homens façam uso da mesma, e nos dizem que, através da contemplação, os homens podem verdadeiramente ouvir ao Criador.

Ouvindo a sua palavra, ademais, os homens preparam-se para acolher ao próprio Cristo, que as Escrituras afirmam ser a Palavra de Deus que se fêz homem:

"Nós vimos com os nossos olhos",

diz o Apóstolo João,

"nossas mãos apalparam
a Palavra da Vida,
e isto vo-lo anunciamos".

I Jo. 1, 1-3

A conclusão é clara: aquele que tiver sabido inclinar o seu ouvido para acolher a palavra de Deus saberá também acolher esta mesma Palavra quando ela se manifestar como homem. "Eu sou o bom pastor", diz Jesus de si mesmo, "conheço as minhas ovelhas e elas me conhecem, elas ouvem a minha voz e eu chamo cada uma pelo seu próprio nome. Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará e ele viremos e nele estabeleceremos morada" (Jo. 10/14). A conclusão novamente é do Apóstolo João:

"E nós vos anunciamos
a vida eterna",

termina João,

"que estava com o Pai
e apareceu em nós,
para que estejais em comunhão conosco,
pois a nossa comunhão é com o Pai
e com seu Filho Jesus Cristo".

I Jo. 1

Antes, porém, de interrompermos a nossa exposição para tratarmos da Sagrada Escritura dissemos que a contemplação, sendo uma realidade muito rica, pode ser apreendida sob diversos aspectos. Pode-se mostrar, porém, que seja qual for o aspecto apreendido, sob este mesmo aspecto, a humildade será a própria contemplação em embrião.

Um dos aspectos sob o qual a contemplação pode ser apreendida é o de uma operação para a qual culmina um processo de uma progressiva tomada de consciência e de queda na realidade. Tomada a contemplação sob este aspecto, a humildade é o primeiro passo necessário da longa caminhada que conduz à contemplação e que já contém, em sua essência, aquilo mesmo que estará presente mais plenamente nesta última.

Vimos também que o fim para o qual tendem todas as formas de espiritualidade é a consecução da contemplação; consideradas todas estas coisas, fica claro por que, sendo a espiritualidade vitorina um modo de ascese que se utiliza do estudo e da escola como parte integrante da vida espiritual, no Opúsculo sobre o modo de Aprender Hugo de São Vitor coloca já de partida que o primeiro requisito de que devem estar imbuídos os alunos da escola de São Vitor é a humildade ou então nenhum aprendizado será possível. Na realidade, qualquer corrente de espiritualidade terá que afirmar que a humildade é o seu ponto de partida, empregue ela ou não o estudo e a pedagogia como parte integrante de seu modo de ascese; o que o Opúsculo sobre o Modo de Aprender faz é apenas enquadrar este requisito dentro do quadro mais específico de uma escola.

Tudo isto decorre, como vimos, do fato de que a humildade é a própria contemplação em embrião. Aqueles que são humildes já possuem, em sua essência, aquela realidade que a contemplação é; só lhes falta ser alimentados e crescer à luz da graça, e este é o objetivo da vida espiritual.

Vimos também que, conforme Hugo de S. Vitor, o aprendizado e a virtude são duas vertentes simultâneas deste crescimento da humildade em direção à contemplação. Embora esta afirmação tenha, nos escritos dos vitorinos, um colorido característico inconfundível, ela é uma verdade de valor objetivo presente nos mais diversos autores da tradição cristã e da filosofia grega. Assim, conforme encontramos comentado no início do capítulo 5 da Educação segundo a Filosofia Perene, no livro VII da Política Aristóteles afirma que os fatos confirmam que a felicidade, que o filósofo afirma consistir na contemplação, encontra-se

"entre aqueles que cultivam até à excelência
as virtudes e a inteligência
e se moderam na aquisição
dos bens exteriores".

Cultivar até à excelência a virtude e a inteligência são, pois, para Aristóteles, os requisitos ou o caminho para se alcançar a contemplação. Expressões equivalentes podem ser encontradas nas obras de Santo Tomás de Aquino e nas de muitos outros autores.

Vimos também que, assim como Hugo de São Vitor diz no Opúsculo sobre o Modo de Aprender que a humildade é o princípio do aprendizado, no Opúsculo sobre os Frutos da Carne e do Espírito ele afirma que ela é também o princípio de todas as virtudes. A humildade, pois, é o princípio tanto do aprendizado como das virtudes, as duas vertentes simultâneas de seu crescimento em direção à contemplação.

Destas afirmações decorre que, se a contemplação é uma tomada de consciência em grau elevadíssimo, um cair na realidade levado à sua totalidade, uma operação da inteligência para a qual convergem todas as demais operações da alma e na qual todas as suas faculdades se integram à apreensão da inteligência, as virtudes deverão, assim como a humildade, possuir também estas mesmas características de um modo parcial. Elas deverão possuir, de um modo imperfeito, aquilo que a contemplação possui de um modo perfeito.

Não é difícil mostrar que efetivamente é isto o que ocorre. Examinando-se debaixo do aspecto da consciência, que na contemplação é total ou pelo menos tende para a totalidade, verifica-se que as virtudes estão relacionadas com um aspecto parcial da consciência à qual denominamos de consciência moral. As virtudes não são a consciência moral, mas têm uma relação intrínseca para com ela; não se pode conceber o desenvolvimento da virtude sem um progressivo desenvolvimento da consciência moral. A consciência moral, por sua vez, é um aspecto parcial daquela mais ampla consciência que é a verdade prometida por Jesus que trará a liberdade aos homens, verdade que é objeto da contemplação.

É muito freqüente, porém, no modo usual de falar dos homens, esquecer ou mesmo ignorar que a consciência é muito mais do que a consciência moral e chamar-se a consciência moral simplesmente de a consciência. A maioria das pessoas faz isto a maior parte do tempo ou mesmo todo o tempo, e isto não é nelas um êrro de apreciação, mas, ainda que estas mesmas pessoas não o saibam, provém de uma consideração objetiva da realidade. Segundo o modo mais comum de falar, chama-se usualmente a consciência moral simplesmente de consciência porque, devido a uma especial particularidade da psicologia humana, a consciência moral é um aspecto da consciência que possui uma importância tão grande para o homem que merece, com razão, de poder ser chamada simplesmente de a consciência. Ela é, normalmente, o aspecto mais sadio e menos adormecido no homem daquilo que se deveria chamar simplesmente de consciência.

A psicologia humana trabalha de um modo que pode compreender este aspecto da consciência a que chamamos de consciência moral mais facilmente e mais rapidamente do que praticamente todos os demais. Para o homem cair na real em relação a uma questão que envolva moral não é, muitas vezes, necessária uma aula de filosofia nem o uso da contemplação. Às vezes é suficiente uma repreensão sem qualquer fundamentação metafísica; freqüentemente nem as palavras se fazem necessárias, basta uma surra ou uma lágrima. Outras vezes nem mesmo isto será necessário; um fenômeno chamado de remorso perseguirá o indivíduo mesmo contra todas as suas idéias preconcebidas e contra todo o seu entendimento, até que ele se veja obrigado a cair na real. Fenômenos como estes, que denotam uma predisposição singularíssima para se cair na realidade, só ocorrem com esta facilidade naquele aspecto da consciência a que chamamos de consciência moral. Para ocorrerem nos demais setores da consciência são necessárias a oração e o estudo profundo, e muitas vezes serão possíveis apenas e tão somente pela contemplação. Mas, por algum mistério da natureza, no que diz respeito às questões morais, a maioria dos homens tem uma propensão, uma inclinação particularíssima toda especial para caírem na real.

Ocorre, porém, que a psicologia humana é uma só e um todo interligado. Por este motivo uma forte e contínua tomada de consciência no aspecto moral, principalmente se se dá de um modo metódico e na totalidade da área abarcada pela matéria moral, acabará por produzir um fortíssimo impulso para a elevação da consciência no seu sentido mais amplo. É assim, por exemplo, que vemos o testemunho do abade Teodoro, narrado nas Instituições de João Cassiano:

"Alguns irmãos",

diz Cassiano,

"manifestavam a sua admiração
ao abade Teodoro
por tanta ciência e tantas luzes,
e o interrogavam sobre o sentido
de certas passagens da Escritura.
Disse-lhes então o santo abade:

`O monge que deseja penetrar
no sentido das Escrituras
não deve se fatigar,
lendo os comentadores.
Deve antes dirigir toda a sua solicitude
em aplicar com amor o espírito e o coração
no cuidado de se purificar dos vícios carnais.
Logo que os suprimimos,
o véu das paixões é retirado
dos olhos de nosso coração
e podemos então contemplar
como que naturalmente
os mistérios das Escrituras.
Pois a graça do Espírito Santo não as inspirou
para que permanecessem obscuras e incompreensíveis a nós.
Somos nós que as tornamos obscuras por nossa culpa,
quando o véu dos nossos pecados
forma como que uma nuvem
diante do olhar do nosso coração.
Uma vez sanada a nossa vista,
a leitura das Escrituras é suficiente,
em abundância,
para que se contemple a verdadeira ciência,
sem a ajuda dos comentadores.
É o que acontece
com os olhos do nosso corpo.
Não é necessário ensinar-lhes a ver,
se não sofrerem de catarata ou de cegueira'".

Instituições 5, 34

Quando as Escrituras nos preceituam, portanto, a observância de determinadas leis morais, e não apenas as preceituam como também nos chamam a atenção e nos repreeendem se não as observamos, e se dirigem a nós com palavras mais insistentes se continuamos a nos julgar no direito de escolher o não obedecê-las, não estão fazendo isto por um desejo mórbido de despertar e nós a dor do remorso ou o desconforto do sentimento de culpa. Ao contrário, elas conhecem a nossa natureza e estão nos prestando um inestimável favor; querem elas nos elevar para um plano de superior de existência, a plenitude da filiação divina onde é possível a contemplação, e sabem elas que se não cairmos na real primeiramente no que diz respeito à vida das virtudes não cairemos nela por nenhum outro caminho.

Disto provém em grande parte a importância que a ascese cristã atribui à prática regular da confissão. À parte o fato de que a confissão seja um sacramento e, por este motivo, conferir efetivamente a graça e o perdão dos pecados a quem a recebe dignamente, um de seus principais efeitos, que se verificaria em boa medida também na hipótese de que não se tratasse de um Sacramento, consiste precisamente na queda na realidade experimentada de modo quase imediato por todos aqueles que se aproximam regular e corretamente da mesma. Neste sentido, a confissão não é uma terapia para sentimentos de culpa, mas um processo de elevação da consciência. A pessoa que se confessa deve declarar todos os pecados graves cometidos, tenha ou não em relação a eles sentimentos de culpa que o angustiem, e a gravidade destes pecados deve ser avaliada pelo penitente não segundo a impressão subjetiva que eles lhe causam, mas pelos critérios da moral cristã que são em si mesmos objetivos e independentes da pessoa do penitente, embora levem em conta suas circunstâncias pessoais. Ademais, a confissão só poderá ser válida se o penitente puder sinceramente declarar-se arrependido de todos os pecados cometidos de que se acusa; se os declarar a todos, sem exagerá-los nem diminuí-los, objetivamente em número e espécie, e de viva voz ao sacerdote que ouve a confissão; e se puder fazer o propósito de não voltar a cometê-los. Assim, na medida em que a confissão implica em um crescimento da tomada de consciência da realidade, ela está estreitamente relacionada com o desenvolvimento da virtude, da qual se torna um fortíssimo motor, e a qual supõe sempre uma elevação da consciência moral. Na medida em que, como Sacramento, a confissão confere a graça, ela está também intimamente relacionada com a vida das virtudes, pois no homem uma prática integral das mesmas é impossível sem o auxílio da graça.

Mesmo assim, porém, anteriormente ao benefício que a confissão pode trazer ao homem sob o aspecto da elevação do grau de consciência da realidade, benefício que a prática das virtudes também realiza e com a qual a confissão está relacionada, anteriormente a tudo isto está situada a virtude da humildade, que é, conforme vimos, a primeira raíz de todas as demais virtudes. Sem ela não há aprendizado possível, nem virtude possível, pela mesma razão pela qual para uma gravidez seguir adiante é preciso primeiro haver a fecundação.