Notas de FHE

X

PLATÃO



01.

Nas notas anteriores tratamos da figura de Sócrates. Vimos os testemunhos de Alcebíades sobre a pessoa de Sócrates, sobre a sua bravura na guerra, sobre suas virtudes, sobre sua capacidade incomum de concentração mesmo nas condições mais adversas, sobre seu ideal de justiça e como por este ideal Sócrates não titubeava em expor a sua própria vida a qualquer perigo.

Vimos também como Sócrates apreciava conversar com as pessoas e, através do diálogo, trazer os homens ao conhecimento de si mesmos, arte que ele comparava à obstetrícia.

Vimos finalmente a defesa de Sócrates quando levado ao tribunal e a dignidade com que se comportou ao ser condenado, em nada diversa daquela que havia sido sua característica durante a vida.

02.

Mencionamos também a existência de diversos discípulos de Sócrates, dentre os quais Xenofonte e Platão. Deste, Platão é, sem sombra alguma de dúvida, o mais importante de todos.

03.

Ao contrário de Sócrates, que era muito pobre, Platão vinha de uma família rica e tradicional.

Por parte de pai era descendente de reis. Por parte de mãe era descendente de Sólon, o grande reformador ateniense. Ele era bisneto do neto do irmão de Sólon. Seu avô foi também irmão de Crítias, o principal dos Trinta Tiranos que dominaram Atenas logo em seguida à derrota da Guerra do Peloponeso.

04.

Platão nasceu, segundo Diógenes Laércio, em Atenas no mesmo ano em que morreu Péricles.

Péricles, conforme havíamos dito, morreu durante uma peste que assolou Atenas logo após o início da Guerra do Peloponeso. Como a Guerra do Peloponeso durou 28 anos, toda a juventude de Platão coincidiu com este período de guerra.

Seu verdadeiro nome era Arístocles, mas seu professor de ginástica, por causa dos ombros grandes que o jovem Arístocles possuía, deu-lhe o apelido de Platão, nome pelo qual ficou conhecido a partir daí.

Platão aprendeu a ler e a escrever com um professor chamado Dionísio, vindo depois a se interessar muito por literatura. Começou a escrever pequenos poemas, depois poesias maiores e finalmente passou a escrever tragédias para o teatro.

Foi um dia, quando tinha vinte anos de idade e ia entregar uma peça de teatro que havia escrito para um conscurso de autores que estava sendo promovido em Atenas, que encontrou o velho Sócrates conversando com algumas pessoas junto à porta do teatro onde os manuscritos para o concurso deveriam ser entregues. Parou então um instante para verificar o motivo daquele ajuntamento e, ouvindo Sócrates falar, deu-se conta da imensa diferença que havia entre a mensagem que Sócrates tentava transmitir e o que ele mesmo havia escrito nos textos que ia entregar para o concurso. O impacto foi tão grande que Diógenes Laércio diz que então o futuro filósofo atirou a sua obra às chamas e passou a ser discípulo de Sócrates.

05.

Platão, desta maneira, antes de ter sido filósofo, foi poeta e escritor.

Embora, ao conhecer Sócrates, tivesse abandonado definitivamente a carreira de escritor, este fato deixou nele uma marca que o tempo não mais apagaria, pois as obras de filosofia que mais tarde ele iria escrever se tornaram não só obras primas da filosofia, como também um dos clássicos da literatura grega.

Foi um caso muito diferente do de Aristóteles, que foi discípulo de Platão. Aristóteles era filho de médico; sua obra filosófica prima por uma exatidão e uma clareza de pensamento talvez inigualáveis em toda a história da filosofia, mas do ponto de vista literário vale muito pouca coisa.

06.

Platão tornou-se, assim, discípulo de Sócrates aos vinte anos de idade e o foi durante oito anos, até à condenação de Sócrates. Quando Sócrates morreu, tinha, pois, Platão, vinte e oito anos.

07.

Estes primeiros vinte e oito anos de vida de Platão foram marcados, por um lado, pelo espetáculo das virtudes e da sabedoria de Sócrates e, por outro, pela visão do comportamento exatamente oposto que ele observava em toda a sociedade ateniense.

Poucas vezes um homem, em toda a história, teve a oportunidade de conviver tão intimamente e ao mesmo tempo com dois aspectos tão importantes do comportamento humano e, também, tão extremos e tão opostos.

08.

Ele conviveu oito anos com Sócrates, unido a ele por uma amizade da qual mais de dois milênios de tempo não puderam ainda apagar os vestígios.

Quando Sócrates e Platão se encontraram pela primeira vez, Sócrates reconheceu no jovem o filhote de cisne com que tinha sonhado na noite anterior, com o que esta história quer mostrar como Sócrates percebeu imediatamente com que tipo de pessoa passava a tratar a partir daquele instante.

Por outro lado, a marca que Sócrates deixou em Platão pode ser vista bastando dizer que a obra escrita de Platão tem aproximadamente o tamanho de uma Bíblia e que nela Sócrates é o personagem principal praticamente todo o tempo. O pouco que de Sócrates escrevemos nas quinze páginas das notas anteriores já dão uma idéia das qualidades morais deste homem que faz impressão; daí pode-se avaliar o efeito que Sócrates não deve ter produzido sobre um discípulo como Platão em uma amizade tão íntima e que se prolongou não por quinze páginas, mas por oito anos, e o quanto Platão conhecia de perto, por experiência, o que é uma vida baseada na sabedoria e na virtude.

09.

Por outro lado Platão nasceu, conforme dissemos, em Atenas, logo após o início da Guerra do Peloponeso. Ele era de uma família tradicional, rica e influente na política. Quando se instalou o regime dos Trinta Tiranos, ele era parente e amigo destes tiranos; e nas épocas em que vigorou o regime democrático, ele participava e ficava a par daquilo que não era freqüentemente levado à discussão na Assembléia Popular. Foi desta posição previlegiada que ele assistiu às incoerências da Guerra do Peloponeso. Finda a Guerra do Peloponeso, assistiu às incoerências e às injustiças ainda maiores do regime dos Trinta Tiranos. Findo o regime dos Trinta Tiranos, asssitiu àquela que, no seu entender, foi a maior de todas as incoerências e injustiças que ele jamais supôs que poderia vir a assistir em sua vida, isto é, a condenação à morte por um júri popular de uma pessoa como Sócrates, com base em acusações que não passavam de evidentes banalidades.

10.

Platão, enquanto foi discípulo de Sócrates, e provavelmente mesmo antes, tinha pensado seriamente em dedicar-se à carreira política. Mas, tendo visto por um lado o que era a virtude por ter convivido com um modelo da mesma e, por outro, o que era a realidade política, percebeu claramente a inutilidade dos seus esforços diante da situação em que se encontravam as coisas.

Ele próprio declarou o seguinte em sua Carta Sétima:

"Com os hábitos que o modo de vida
que os gregos vem levando
têm produzido,
hábitos estes que se formam
já nos primeiros anos de vida,
nenhum homem debaixo do céu
poderá alcançar a sabedoria.
A natureza humana não é capaz
de uma combinação
assim tão extraordinária.

O resultado é que as constituições das cidades
ficarão sempre em estado de perpétua mudança,
passando da tirania para a oligarquia,
da oligarquia para a democracia
e assim se sucedendo umas às outras
enquanto que aqueles que ditam o poder
não conseguirão sustentar
nenhuma forma de governo
que faça permanecer a justiça.

Não será possível existir a felicidade
nem para uma comunidade,
nem para um homem individualmente considerado,
a menos que ele passe a sua vida
sob a regra da virtude
sendo nesta guiado pela sabedoria,
ou porque este homem possua
ele próprio em si mesmo estas virtudes,
ou porque viva debaixo do governo de outros homens
que receberam para tanto
um treino e uma educação
no que diz respeito à vida moral".

A esta mesma conclusão já havia chegado, quatro gerações antes, o filósofo Pitágoras.

11.

Foi assim que, quando Sócrates foi condenado e executado, Platão abandonou definitivamente a política ateniense e pôs-se a viajar em busca de mais conhecimento.

Viajou durante doze anos, desde os 28 anos de idade até aos 40 anos.

Inicialmente, juntamente com outros discípulos de Sócrates, foi estudar com o filósofo Euclides na cidade de Megara. Não se tratava do famoso Euclides de Alexandria, o maior dos geômetras da antigüidade. Este último ainda não havia nascido, mas viria a ser em Atenas aluno dos primeiros discípulos de Platão, antes de mudar- se para Alexandria no Egito e ali fundar uma escola.

Depois de estudar com Euclides de Megara, Platão foi para o norte da África, na região de Cirene, onde atualmente fica a fronteira do Egito com a Líbia, estudar com o matemático Teodoro.

Passou então para a Itália, onde ficou por um bom tempo nas escolas dos Pitagóricos.

Dali foi estudar com os sábios do Egito.

Quis passar depois para a Pérsia, tal como cerca de um século antes tinha feito Pitágoras, mas diz Diógenes Laércio que a situação política e as guerras que havia então na Ásia o impediram de prosseguir viagem.

Voltou então para Atenas com 40 anos de idade, passando, porém, primeiro por Siracusa na Sicília onde foi preso e posto à venda como escravo; seus amigos, sabendo disso, se cotizaram e pagaram o preço, mas o vendedor, ao saber quem era aquele que ele estava vendendo como escravo, não quis aceitar o dinheiro que acabou ficando para o próprio Platão. Com este dinheiro Platão comprou um campo fora dos muros de Atenas de um homem chamado Academo onde fundou uma escola de filosofia que funcionava com semelhanças notáveis com as escolas fundadas por Pitágoras. Como veremos posteriormente, tais semelhanças não foram um simples coincidências. Como o local onde a escola funcionava tinha pertencido a Academo, a escola passou a denominar-se simplesmente a Academia.

Platão ensinou na Academia até a sua morte, ocorrida aos seus oitenta e um anos de idade. Foram, pois, quarenta e um anos de magistério. A Academia sobreviveu à sua morte e continuou funcionando no mesmo local durante alguns séculos até depois do início da era cristã.

12.

Mas é importante, para entender o que vem mais adiante, ouvir uma parte destes fatos tais como foram relatados pelo próprio Platão. Ele as relata em uma longa carta que escreveu de Atenas a alguns amigos de Siracusa na Sicília, carta essa que ficou conhecida como a Carta Sétima. Nesta carta, assim Platão fala de si próprio:

"Na minha juventude
passei pelas mesmas experiências
pelas quais passaram muitos outros.
Eu imaginava que se quisesse tornar-me
cedo na vida senhor de mim mesmo,
deveria entrar imediatamente na carreira política.
Nela, porém, vi-me diante dos seguintes fatos
que dizem respeito aos negócios públicos
da cidade onde vivia.
A constituição (democrática)
existente (durante a Guerra do Peloponeso)
era condenada por muitos,
em conseqüência do que fêz-se uma revolução
e foram apontados trinta governantes
com plenos poderes
sobre os problemas públicos em geral.

Alguns destes governantes
eram meus parentes,
outros meus amigos,
em vista do que me convidaram imediatamente
para participar de seus afazeres
como algo a que eu tivesse direito.

O efeito (deste convite)
não foi surpreendente
em se considerando o caso de um homem
ainda jovem (que na época eu era).
Eu imaginava que eles iriam, de fato,
administrar a cidade de tal maneira
que tirariam os homens de uma vida péssima
para uma vida boa.
Assim eu os observava muito atentamente
para ver o que eles iriam fazer.

No entanto o que eu vi foi que,
em um espaço muito curto de tempo,
eles fizeram o governo anterior parecer,
por comparação ao deles,
uma coisa mais preciosa do que o ouro.
Dentre muitas outras coisas,
eles tentaram fazer com que um meu amigo,
o velho Sócrates,
a quem sem escrúpulo algum
eu não tenho receio de descrever
como o homem mais correto do seu tempo,
juntamente com outras pessoas,
trouxesse à força um dos cidadãos de Atenas
para ser executado
para que, com isto,
o velho Sócrates,
querendo ou não querendo,
tivesse que participar
da culpa de suas condutas.
Ele, entretanto, não os obedeceu,
assumindo todas as conseqüências deste ato
em vez de preferir tornar-se seu cúmplice
dos seus atos iníquos.

Vendo eu todas estas coisas
e outras do mesmo tipo
em considerável quantidade,
discordei destes procedimentos
e me desliguei de qualquer vínculo
com os abusos daquele tempo.

Não muito tempo depois
uma revolução acabou com o poder dos trinta
e com a forma de governo
que havia com eles.
Uma vez mais,
embora mais hesitante,
comecei a nutrir o desejo
de participar dos problemas políticos
e dos negócios públicos.
Ora, mesmo neste governo,
que mal tinha acabado de se estabelecer,
começaram a ocorrer eventos
que ninguém naturalmente poderá deixar
de desaprová-los.
Não era de se surpreender
que em um período de revolução
tivessem se inflingido castigos exagerados
por parte de alguns aos seus oponentes políticos;
mas uma vez mais aconteceu
que alguns daqueles que estavam no poder
levaram meu amigo Sócrates,
a quem mencionei acima,
a julgamento diante do tribunal,
acusando-o muito injustamente
de algo até muito desapropriado à sua pessoa,
pois foi com uma acusação de impiedade
que alguns deles processaram
e outros condenaram o próprio homem
que não participou do aprisionamento injusto
de um dos amigos do partido
que estava então no exílio,
no tempo em que eles próprios
estavam no exílio e na desgraça.

À medida em que eu observava estes incidentes
e os homens engajados nos negócios públicos,
as leis e os costumes,
e quanto mais eu os examinava de perto
e mais avançava em idade,
mais difícil me parecia
lidar com os negócios públicos corretamente.
Pois não era possível ser ativo na política
sem amigos e pessoas influentes de valor;
e achar a estes não era uma coisa simples,
já que os negócios públicos em Atenas
não estavam mais sendo conduzidos
conforme as maneiras
e as práticas de nossos pais.

Quanto às leis,
tanto as escritas como as não escritas,
iam se alterando para pior,
e o mal crescendo
com uma estonteante rapidez.

O resultado foi que,
embora no começo eu tivesse tido
um forte impulso para a vida política,
na medida em que eu me dava conta
do curso dos acontecimentos
e percebia que eles eram arrastados
em todas as direções
por facções em luta umas contra as outras,
minha cabeça começou a ter vertigens.
Por causa disso,
embora não tivesse parado para ver
se havia alguma probabilidade de melhora
nestes sintomas e no curso geral da vida pública,
eu adiei a ação
até que uma oportunidade adequada
pudesse surgir.

Finalmente, ficou claro para mim,
em relação a todas as comunidades existentes,
que elas eram uma só e todas mal governadas,
porque suas leis geraram uma cidade
quase incurável,
a não ser por alguma reforma
com uma certa quantidade de boa sorte
para sustentá-la.

Fui assim forçado a dizer,
ao elogiar a verdadeira filosofia,
que é por meio dela
que os homens se tornam capazes
de enxergar o que a justiça
nos negócios públicos e particulares
realmente é.

Portanto, concluí,
não haverá término para os males humanos
até que aqueles que estão buscando
a reta e verdadeira filosofia
recebam o poder soberano nas cidades,
ou aqueles que estão no poder nas cidades,
por alguma disposição da providência,
se tornem verdadeiros filósofos".

13.

Devem aqui ser notadas bem as palavras finais de Platão:

"Não haverá término para os males humanos
até que por alguma disposição da providência
aqueles que estão no poder nas cidades
se tornem verdadeiros filósofos
ou até que aqueles que estão buscando
a reta e verdadeira filosofia
recebam o poder soberano nas cidades".

Platão chegou a esta conclusão logo após a condenação de Sócrates.

É evidente que foi o exemplo pessoal de Sócrates que fêz com que Platão chegasse a esta conclusão. Sócrates era um homem justo, o que todos nós já percebemos suficientemente pelo pouco que lemos a seu respeito. Se todos os governantes fossem justos como Sócrates, e isto não é uma coisa impossível, porque Sócrates mostrou com o seu exemplo que um homem o pode ser, se todos os governantes fossem como Sócrates, dizíamos, o que depois do exemplo de Sócrates ficou evidente que não é uma coisa impossível,

"haveria então um término
para os males humanos",

como diz Platão.

14.

Se, porém, parece ser claro haver sido do exemplo de Sócrates que Platão tirou sua conclusão, examinado este exemplo mais atentamente, parecerá também que Platão tenha chegado à conclusão errada.

Se todos fossem justos como Sócrates, ou pelo menos, se os governantes fossem justos como Sócrates, haveria um término para os males humanos. Esta é a conclusão que parece ser correta.

Mas, examinando as palavras de Platão, verificamos que não foi esta a conclusão a que ele chegou.

Platão não disse:

"Não haverá término para os males humanos
até que os homens justos como Sócrates
recebam o poder soberano nas cidades",

mas sim que

"Não haverá um término para os males humanos
até que aqueles que estão buscando
a reta e verdadeira filosofia
não recebam o poder soberano nas cidades".

Com isto, porém, Platão parece estar pedindo demais. Parece, na verdade, estar pedindo além do necessário.

Se os governantes fossem justos como Sócrates, isto não seria suficiente? Que necessidade haveria de que estivessem buscando

"a reta e verdadeira filosofia?"

Se, de fato, tivéssemos um Presidente da República correto como Sócrates e, além do Presidente da República, ministros de Estado corretos como Sócrates, deputados, senadores, magistrados, juízes, governadores, prefeitos, vereadores honestos, virtuosos e incorruptíveis como Sócrates, isto não seria já um sonho inimaginável para o povo de qualquer nação moderna? Não nos parece que isto seria suficiente para remediar os males da política? Iríamos então encontrar em homens deste porte defeitos irremediáveis e exigir que além disso eles tenham necessariamente que ser também filósofos para poderem governar? E se fossem filósofos, iria isto melhorar em algo o que eles fariam se não o fossem, isto é, se fossem apenas pessoas competentes em seus cargos e junto a esta competência tivessem também a virtude de Sócrates? Será mesmo tão necessário que se lhes exija que sejam filósofos? Não seria isto um exagero? Se um presidente da república for um homem justo e competente, mas não for um filósofo, deveremos removê-lo do cargo apenas por não ser filósofo? Parece claro que não. Os governantes devem ser removidos de seus cargos se forem incompetentes e desonestos, sejam eles filósofos ou não. Se tivermos governantes competentes e honestos até o heroísmo, não é o ser ou não filósofo que deverá pesar no mérito de uma deposição. Está se vendo, portanto, que a questão política parece ser outra que não a da Filosofia.

Mas se é assim, e se Platão era uma pessoa inteligente, capaz de compreender, por suposto, argumentos aparentemente tão evidentes, por que motivo então ele ainda assim insiste na Filosofia?

15.

Esta pergunta permite-nos a oportunidade de entender melhor o relacionamento da Filosofia com a Educação.

Na segunda desta série de notas descrevemos em que sentido os filósofos eram homens que contemplavam a natureza. O exercício habitual da contemplação da natureza leva o homem, pela própria admiração para com o comportamento aparentemente racional que tem diante dos olhos, a se fazer uma série de perguntas que, na mente do filósofo, tem o mesmo tipo de racionalidade que a natureza aparenta possuir.

  • Como aconteceu tudo isso?

  • Como foi possível que nós
    tenhamos nos encontrado aqui
    para compreender estas coisas?

  • Como pode ter se produzido um ser
    capaz de compreender tudo isto?

  • Quem sou eu?

  • Que é o homem?

  • O que é o mundo?

  • O que significa tudo isto?

Quando o homem chega a se fazer esta última pergunta, ele começa a se relacionar com a natureza de um modo que nenhum animal jamais o poderia fazer. Pois poderia até dar-se que a natureza não significasse nada, mas é evidente pelo menos que ela se comporta como se de fato quisesse significar algo, como se existisse uma mensagem que ela quer transmitir e que só o homem entre os animais seria capaz de captar. A partir do momento em que o homem se torna capaz de contemplar a natureza neste nível, ele passa como que a dialogar com a natureza num certo grau de igualdade, no sentido de que parece que na pequenina mente humana esteja contida, prevista pela natureza como doação ao homem, a possibilidade de entender o restante da natureza no seu conjunto, como se a mente humana fosse um receptáculo em miniatura, mas essencialmente completo, da idéia que está por trás da natureza.

Quando isto ocorre, o homem também percebe que não só ele próprio é parte desta natureza, e parte desta idéia que parece estar por trás da natureza, mas que também muitas das assim chamadas instituições humanas, tais como a sociedade e a educação, são igualmente parte da natureza.

Aristóteles, discípulo de Platão, no início do seu livro de Política, escreveu a este respeito as seguintes observações sobre a sociedade:

"É evidente que a sociedade
faz parte das coisas da natureza,
e que o homem é por natureza
um animal destinado a viver em sociedade.
Isto não é nos homens
o efeito de uma idéia pré-concebida,
é a natureza que os inspira.
Aquele que,
por instinto,
e não porque alguma circunstância o impede,
deixa de fazer parte da sociedade,
ou é um ser vil,
ou um ser superior ao homem".

A mesma coisa pode-se dizer também da Educação.

O homem é um animal educador, não por uma idéia preconcebida, mas porque a natureza assim os inspira.

É fácil perceber isto, porque vemos uma profunda diferença neste aspecto entre o homem e os demais animais. Enquanto a maioria dos animais, apenas recém nascidos, já são capazes de cuidar de suas próprias vidas, o homem nasce frágil e dependente de seus pais durante uma quantidade muito grande anos não só para a sua sobrevivência física, mas também para se ambientar ao mundo e à natureza. É evidente, pois, que a educação humana faz parte das coisas da natureza e que é, ela própria, uma instituição da natureza.

Ora, nós vemos que a natureza em seu conjunto parece ter uma mensagem que, ao que tudo indica, só os homens são capazes de alcançar. Mais ainda, a natureza parece se comportar como se tivesse produzido os homens com a finalidade principal de que erla pudesse se dar a compreender, o que, coisa verdadeiramente admirável, também parece fazer parte da mensagem.

E a Educação? Se tudo o que dissemos é coerente, e se a Educação é também uma instituição da natureza, então a Educação também faz parte da mensagem.

E, sendo assim, o filósofo que, habituado à contemplação da natureza, consegue chegar a contemplar também o alcance daquelas perguntas que fizemos ainda há pouco, pode repetir aquelas mesmas perguntas para a Educação.

Houve, após muita observação e muitas perguntas, um momento em que ele percebeu a pergunta maior:

O que significa tudo isto?

Esta pergunta maior surgiu quando ele percebeu que não apenas as pequenas coisas isoladamente podem significar algo, mas que o conjunto delas significa algo maior, e que todas as coisas isoladamente consideradas existem em uma harmonia tal que todas parecem ter sido produzidas especialmente para que no seu conjunto significassem uma outra maior. Por isto ele quer saber não mais o significado desta ou daquela coisa em particular, mas sim, como está escrito, o significado de

tudo isto.

Ele percebeu que a totalidade tem um significado e que por trás da totalidade parece haver uma idéia, ou pelo menos, se não a há, que a totalidade se comporta tal como se a tivesse.

É então que ele também pode perguntar, se a Educação é parte da natureza,

O que a Educação significa
em tudo isto?

Em outras palavras, ele não quer saber uma ou outra teoria sobre Educação, não quer saber um ou outro detalhe sobre a Educação, ele quer saber a resposta final sobre a Educação, porque, conforme dissemos, no mínimo a natureza se comporta como se ela tivesse uma verdade última, e o homem quer saber qual é esta verdade.

Pode-se entrever, então, como uma coisa à primeira vista tão banal como a contemplação da natureza é capaz de nos levar a perceber que temos o legítimo direito de pretender, em Educação, não apenas uma resposta, mas

"A Resposta".

Só o homem capaz de contemplar a natureza neste nível é capaz de perceber a legitimidade de uma pretensão como esta em matéria de Educação. Outro homem ficará rapidamente satisfeito com qualquer resposta, ou mesmo com nenhuma resposta. Este homem será como alguém que veio ao mundo, andou em círculos, não entendeu nada do que se passava à sua volta, e morreu. Houve nele alguma coisa muito importante que deveria ter surgido e não surgiu, alguma coisa que deveria ter nascido e que não nasceu. Filosoficamente falando, houve aí um aborto.

17.

Colocadas as coisas deste modo, devemos agora considerar uma objeção a toda esta argumentação, objeção esta que seria de se esperar principalmehte do homem moderno.

Concordamos, dirá o homem moderno típico, concordamos que a Educação é de fato uma instituição da natureza. Os filósofos têm razão. O homem quando nasce não pode viver sozinho, precisa de acompanhamento e da tutela dos pais antes de poder viver a própria vida.

Mas não há nada de extraordinário nisso.

Outros animais também dão este acompanhamento aos seus filhotes, embora em menos anos ou mesmo apenas em alguns meses, tais como os gatos, os cachorros e os leões. Nestes casos este acompanhamento pouco se parece com aquilo que costumamos entender pelo nome de educação no seu sentido mais pleno. Estes animais amamentam seus filhotes durante algum tempo e desenvolvem, inclusive, um trabalho de ambientação dos filhotes ao mundo que está à sua volta antes de os deixarem livres para viverem suas próprias vidas. No entanto, não há nada de extraordinário nisso. Trata-se apenas um instinto biológico de sobrevivência. Não se pode dizer que se trate de educação em seu verdadeiro e pleno sentido, trata-se de algo que não ultrapassa os limites dos instintos animais. Certamente, dirá o homem moderno, quando a humanidade surgiu pela primeira vez na natureza, provavelmente ela não terá feito, em matéria de educação, também muito mais do que isto pelos seus filhotes. Se aceitamos estas hipóteses, deveremos então dizer que a educação que veio mais tarde não é uma instituição da natureza, mas uma elaboração posterior do homem, um artifício, uma invenção humana.

Os filósofos gregos, se estivessem vivos, deveriam saber que os homens modernos foram acostumados a pensar que quando a humanidade surgiu sobre a terra sua situação não era melhor do que a dos macacos em geral. Assim como os macacos viviam nas árvores, assim também homens modernos pensam que os primeiros homens viviam nas cavernas. O homem moderno imagina que os primeiros homens, quando nasciam, viviam com os pais apenas para aprender a sobreviver. A educação daquela época, portanto, não poderia ser mais do que a luta elementar pela sobrevivência. Se existe uma educação instituída pela natureza, dirá o homem moderno, parece evidente que ela somente poderia se estender até aí. Todo o resto do que conhecemos hoje como educação é uma invenção posterior do homem.

Sendo assim, continuaria o homem moderno, a teoria que foi apresentada pelos filósofos gregos deve ser atribuída a um exagero por parte deles. Neste sentido não há, para a mente do homem de hoje, nem pode haver, nenhuma mensagem especial objetiva na educação. Dentro do ponto de vista da natureza, a educação não pode ultrapassar os limites do instinto elementar pela sobrevivência.

18.

Ouvimos assim a opinião do homem moderno típico a este respeito. O homem de hoje não pode concordar, do ponto de vista objetivo, com o elevado conceito que os filósofos gregos possuiam a respeito da Educação. O conceito dos filósofos gregos pode ser muito bonito, mas examinado pela avançada mente do homem moderno não passa de romantismo. Se é para fazer poesia, concordamos, dirá o homem moderno. Consideradas, porém, as coisas objetivamente, o homem era um macaco que vivia nas cavernas. A educação é invenção do homem, não uma instituição da natureza e, se o homem moderno for coerente com as suas premissas, outra não pode ser a sua verdadeira opinião a este respeito.

Deveríamos agora perguntar aos antigos filósofos o que eles responderiam ao homem de hoje se pudessem estar hoje conosco ouvindo idéias tão avançadas.

Embora, ao que saibamos, nenhum dos antigos filósofos tivesse respondido a questões como estas colocadas de um modo tão explícito, podemos no entanto, conhecendo o conjunto das suas obras, reconstituir uma provável resposta que eles dariam.

Os antigos filósofos gregos, se aqui hoje estivessem, diriam que os argumentos do homem moderno são convincentes apenas aparentemente. Se nos dias de hoje eles parecem evidentes para muitas pessoas, isto se deve não à própria força dos argumentos, mas ao fato de que as pessoas de hoje não estão habituadas ao exercício da contemplação característico dos filósofos da antigüidade.

As pessoas capazes de julgar como evidentes argumentos como os que foram anteriormente expostos não estão se baseando, ao dizerem tais coisas, em uma observação filosófica da natureza. Elas estarão se baseando, provavelmente, isto sim, em algum filme que viram sobre a vida do homem das cavernas onde o ser humano aparece levando uma vida animalesca tal como a de um macaco.

Mas de onde surgiu esta concepção moderna a respeito do homem das cavernas?

Surgiu devido ao fato de terem sido encontrados em certo número de cavernas esqueletos ou restos de esqueletos que, submetidos ao teste do Carbono 14, mostrou-se datarem de uma época anterior às épocas das quais nos restaram registros históricos. Trata-se, ademais, de um número bastante limitado de esqueletos. Além do fato de terem sido encontrados em cavernas, há indícios de que estes homens caçavam e que alguns deles enterravam seus mortos de um modo que sugere a crença em uma outra vida. Mais do que isso quase nada se sabe sobre eles. Foi baseado neste número tão pequeno de dados que se supôs, para que tivesse sido realizado aquele filme, que toda a humanidade daquela época vivia como animais. Destes filmes e de outros meios de divulgação surgiu a imagem que as pessoas têm do homem tal como ele teria sido concebido pela natureza. Desta imagem, por sua vez, é que as pessoas deduzem como seria a educação enquanto instituição da natureza.

Porém, e isto é importante de se notar, os dados sobre os quais estas pessoas estão se baseando não provém da contemplação da natureza, mas da contemplação de um filme. A resposta que elas deduzem é tão estreita quanto a relação que existe entre a estrutura deste filme e a da natureza em seu conjunto.

Por outro lado, porém, é evidente que estas conclusões estão em contradição com as que a observação da natureza nos oferece.

Se alguma vez um homem viveu em uma caverna levando uma vida animalesca tal como aquela que apareceu naquele filme, este modo de vida não pôde ter sido um fenômeno que fosse uma instituição da natureza. É evidente que a vida do homem das cavernas, tal como a que nos é mostrada ou sugerida por estes filmes e documentários, se ela chegou mesmo a ocorrer, é, filosóficamente falando, não um fenômeno da natureza, mas um fenômeno contra a natureza.

Podemos perceber isto, primeiro, vendo que a inteligência, tal como a que temos hoje e tal como se supõe que muitos destes homens das cavernas deviam ter tido, é ela própria, em primeiro lugar, uma instituição da natureza.

Ademais, é evidente também que, ao contrário de todos os outros animais, a inteligência humana está muito além do que é necessário para a simples sobrevivência. Este não é o caso, porém, que ocorre com qualquer outro animal. Todos os demais animais têm apenas as capacidades necessárias para a sobrevivência compatíveis com a sua espécie. O único animal que tem uma inteligência capaz de muito mais do que a simples sobrevivência é o ser humano. E esta inteligência, assim considerada, é parte da natureza.

Acrescenta-se a isto que em todas as obras da natureza percebemos uma finalidade inteligente, ou pelo menos, uma estrutura que se apresenta tal como se assim o fosse. Nada na natureza está em vão. Este é um fato pode ser constatado não só pelos filósofos, como também por qualquer cientista.

Ora, não parece ser muito razoável supor que a única exceção a esta regra seja justamente a inteligência humana, que é justamente a maior de todas as obras existentes na natureza. Não seria de se supor que depois de todos os componentes de todos os demais seres vivos, sem exceção, não terem sido feitos senão dotados de objetivos específicos, repentinamente houvesse na natureza uma inexplicável lacuna justamente para o mais importante de todos.

Parece, pois, que temos que admitir que é altamente improvável que a inteligência humana tenha surgido na natureza apenas para uma simples sobrevivência animal. Se tivesse sido este o caso, teria sido suficiente muitíssimo menos do que a inteligência humana ou então teremos que admitir que na natureza, abandonando-se subitamente sem aparente motivo seu modo característico de operar, produziu-se alguma coisa que, em sua maior parte, é destituída de qualquer finalidade.

É evidente também que a inteligência humana, esta instituição existente na natureza, necessita do convívio social para poder se desenvolver. O homem que, ao ter nascido, tivesse sido abandonado ao relento em alguma floresta, se conseguisse sobreviver, não desenvolveria, possivelmente, suas qualidades verdadeiramente humanas. Conforme a citação anterior de Aristóteles:

"É evidente que o homem é naturalmente
um animal destinado a viver em sociedade,
e que aquele que, por instinto,
deixa de fazer parte da sociedade,
é um ser vil ou superior ao homem".

Este é um motivo pelo qual a sociedade humana faz parte das coisas da natureza e não é uma invenção arbitrária dos homens. É dentro de um contexto social que a inteligência humana naturalmente se desenvolve. E este contexto social em que o homem desenvolve suas qualidades humanas e sua inteligência é também o contexto em que se desenvolve a educação do homem como instituição da natureza. Se a finalidade da inteligência, tal como ela existe na natureza, não pode ser a simples sobrevivência, a finalidade da educação enquanto instituição da natureza também não pode ser a simples sobrevivência. Podemos concluir citando novamente uma outra passagem do livro de Política de Aristóteles. Diz Aristóteles que:

"Não é somente para sobreviver,
mas para viver feliz,
que se estabeleceu a sociedade.

E viver feliz é,
segundo o nosso modo de pensar,
o que a observação dos fatos
facilmente demonstra,
saber moderar-se
na aquisição dos bens exteriores
e cultivar até à excelência
a pureza dos costumes
e a força da inteligência.

É preciso, pois, concluir
que não apenas a vida em comum,
mas a virtude e a inteligência
são a finalidade da sociedade política".

19.

Qual a relação entre estas considerações e o que dizíamos anteriormente de Platão?

Acabamos de afirmar que a Educação é uma instituição da natureza. Ora, se isto é assim, isto é, se a Educação é uma das instituições da natureza, conclui-se que ela só poderá ser filosóficamente considerada dentro do contexto geral da contemplação da natureza. E foi exatamente isto que, conforme veremos, Platão fêz.

Porém, o que já vimos é que Platão deseja que os governantes sejam homens de virtude, ou que os homens de virtude sejam aqueles que assumam o poder público. Cabe então agora a pergunta: Insere-se isto dentro da idéia que parece existir por trás da natureza? Teria previsto a natureza uma instituição não inventada pelo homem que o conduzisse naturalmente a uma vida de virtude?

Mas acontece que Platão não se limitou a exigir dos governantes uma vida de virtude. Ele exigiu também a Filosofia, como se não fosse possível ser virtuoso sem ser filósofo. Cabe então novamente outra pergunta: Se isto é verdade, será então a Filosofia uma outra instituição da natureza? E se for, qual é a relação exata que a natureza estabeleceu entre a virtude e a Filosofia? E, mais ainda, como construir um sistema educacional baseado nisto?

Conforme veremos nas notas seguintes, Platão foi mais longe que todos os seus predecessores na resposta a estas perguntas e, inteiramente fundamentado nelas, levantou as bases de um modo se entender a Educação que, desenvolvendo-se ou simplesmente reaparecendo em seus princípios ao longo da história, produziu muito mais fruto do que hoje em dia geralmente supomos ter acontecido.

São Paulo, 28 de novembro de 1989.