Notas de FHE

IX

SÓCRATES






01.

Nas notas anteriores examinamos o surgimento da sofística entre os gregos, a qual, embora tivesse se iniciado já antes de Parmênides, tomou o seu grande impulso depois da visita que este filósofo e seu discípulo Zenão fizeram a Atenas. Tínhamos já visto a acolhida que Sócrates havia dado a Parmênides e a Zenão. Tivemos depois a oportunidade de examinar como foi a acolhida dada a estes por parte dos atenienses, e como os sofistas passaram a se valer das técnicas de argumentação destes filósofos italianos para desenvolverem suas próprias técnicas de argumentação e oratória com o fim de ensinar aos outros a arte de convencer as multidões.

02.

O encontro de Sócrates com Parmênides e Zenão é um dos primeiros fatos históricos que temos a respeito de sua vida. Entre este encontro e a época do fim da guerra do Peloponeso, um período de aproximadamente 50 anos, encontra-se a maior parte da vida ativa de Sócrates.

03.

Ao contrário dos filósofos pré-socráticos, que escreveram diversas obras, mas que se perderam, Sócrates não escreveu nada. O que sabemos sobre ele é fruto principalmente de dois dos seus principais discípulos, chamados Platão e Xenofonte.

04.

Platão escreveu uma série de mais de duas dezenas de diálogos, dos quais existem ainda hoje todos eles.

Chamam-se Diálogos porque neles Platão não expõe seus ensinamentos por meio de uma exposição direta, mas sim através do artifício em que é contada uma história na qual sempre se encontram diversas pessoas que iniciam um diálogo. A narrativa do diálogo passa a ser então a parte principal de cada uma das mais de duas dezenas destas obras de Platão; o diálogo é narrado em toda a vivacidade dos detalhes com que ocorreu, mas, se o leitor acompanhar atentamente o diálogo como se estivesse participando dele, passará, logo em seguida, a participar da discussão dos temas filosóficos nele propostos por Platão.

Com a exceção do último diálogo, chamado As Leis, em todos os outros Sócrates é um dos personagens, e na maioria deles é o personagem principal.

Existe uma controvérsia entre os estudiosos a respeito de quais são os diálogos em que Platão reproduz um diálogo realmente ocorrido em que Sócrates se aproveitou da ocasião para expor suas doutrinas e quais são os diálogos imaginados por Platão em que, apresentando Sócrates como um dos dialogantes, está na realidade contando uma situação fictícia e expondo não as doutrinas de Sócrates, mas as suas.

De qualquer maneira, é evidente que muitos diálogos e muitas passagens dos Diálogos são relatos de fatos historicamente ocorridos e uma das principais fontes para o conhecimento da pessoa de Sócrates.

05.

Xenofonte escreveu sobre Sócrates um livro chamado "Ditos e feitos Memoráveis de Sócrates", o qual, embora muito menos profundo do que as obras de Platão, é a segunda fonte mais importante sobre a pessoa e o pensamento de Sócrates.

06.

Sócrates nasceu em Atenas na época do fim das guerras dos atenienses contra os persas, cerca de 470 AC, e morreu alguns anos após o fim da guerra do Peloponeso, em 399 AC.

Era filho de um escultor e uma parteira. Durante algum tempo, parece ter ganho a vida como escultor, mas ao que tudo indica não seguiu a carreira.

Provavelmente foi educado, quando criança, de acordo com o sistema escolar vigente em Atenas à sua época que já tivemos a oportunidade de descrever. No entanto, nos Ditos Memoráveis, Xenofonte relata Sócrates conhecer e conhecer bem diversos outros assuntos que não faziam parte das matérias usualmente ensinadas pelos professores de Atenas, embora ele próprio não desse muita importância a estes conhecimentos. Não está bem claro como Sócrates os tivesse aprendido, pois ele nunca se ausentou de Atenas, a não ser quando convocado para cumprir seus deveres militares, e não consta que ele tivesse tido maiores contatos com os filósofos do sul da Itália, nem com os da Ásia Menor, nem que tivesse viajado ao Egito ou à Pérsia. Alguns dos homens antigos que escreveram sobre Sócrates tentaram explicar este fato levantando a hipótese de que ele talvez tivesse sido discípulo de Anaxágoras na época em que este filósofo ainda vivia em Atenas, mas tal afirmação é uma coisa muito incerta. Mais provável é que tenha estudado com Arquelao, discípulo de Anaxágoras.

07.

Embora seja comum muitas pessoas terem ouvido falar alguma coisa a respeito de Sócrates, poucos conhecem o que realmente testemunnharam dele os seus contemporâneos. A maioria das pessoas que ouviram falar alguma coisa de Sócrates fazem dele uma imagem como de um velhinho falador mas infinitamente paciente.

Entretanto, o primeiro testemunho que seus contemporâneos dão dele é o de um soldado de uma imensa superioridade técnica e moral em campo de batalha, um homem de coragem, inspirador de respeito tanto pela sua bravura como pelos princípios em que baseia sua conduta em meio às situações mais difíceis, em que uma outra pessoa qualquer perderia sua dignidade diante do medo.

08.

Assim é que, um ano antes do início da guerra do Peloponeso a cidade de Potidéia rebelou-se contra Atenas e ambas entrarram em guerra. Na expedição militar organizada pelos atenienses contra Potidéia estavam juntos como soldados Sócrates e Alcebíades, sobrinho de Péricles.

Péricles já sabemos quem foi. Quando iniciou-se no ano seguinte a Guerra do Peloponeso era ele a principal figura de Atenas. Foi Péricles quem coordenou o início da guerra contra os espartanos, mas antes que se iniciassem as principais ofensivas, Péricles morreu vítima de uma peste que assolou a cidade de Atenas vinda da Etiópia e do Egito. Seu sobrinho Alcebíades passou a ser, depois disso, o homem chave dos atenienses na condução da guerra do Peloponeso durante os seus primeiros anos e um dos principais durante boa parte do restante da guerra.

Ora, este Alcebíades teria morrido bem antes disso, na campanha contra Potidéia, se não tivesse sido salvo por Sócrates. Assim narra Plutarco o feito, ao contar a vida de Alcebíades:

"Ainda adolescente, engajou-se Alcebíades
na expedição contra a cidade de Potidéia.
Ali foi companheiro de Sócrates, na tenda,
e também nas fileiras em combate.
Travou-se então uma batalha feroz
e ambos se distinguiram nas ações.
Mas então Alcebíades tombou ferido.
Sócrates, (que podia ter continuado a luta
como todo soldado, sem se preocupar
com os soldados tombados),
cobriu seu corpo com o dele e continuou a luta
defendendo a ambos com notável denodo.
Deste modo salvou-lhe a vida assim como as armas".

Ora, continua Plutarco,

"o prêmio desta bravura competia por justiça
a Sócrates.
Finda guerra, porém,
os generais atenienses,
considerada a posição social,
pois Alcebíades era sobrinho de Péricles,
mostravam-se ansiosos por conferir a glória a Alcebíades".

Sócrates, por outro lado, mostrou não ser ambicioso das honras e não ter desejado mais do que cumprir bem o seu dever. Diz então Plutarco que, em vez de protestar e querer para si as honras de herói, Sócrates ao contrário,

"desejando desenvolver no jovem Alcebíades
os sentimentos de honradez nas ações militares,
foi o primeiro a depor a favor de Alcebíades
e a apelar para que lhe designassem
a coroa e a panóplia".

09.

Platão conta, em um dos seus Diálogos denominado O Banquete, como o próprio Alcebíades, anos depois do término da campanha de Potidéia, deu pessoalmente o seu testemunho a favor de Sócrates.

Estavam conversando, na casa de um certo Agatão, Sócrates e mais seis pessoas, dentre os quuais Aristófanes, o escritor de peças de teatro que mencionamos nas notas precedentes, o autor da comédia As Nuvens, em que Sócrates é ridicularizado sendo tomado como um sofista. Quando ocorreu este diálogo, Aristófanes já havia escrito e apresentado As Nuvens em público, pois um dos interlocutores do diálogo dirige a palavra a Aristófanes citando, na presença de Sócrates, um trecho da comédia em que Aristófanes satiriza a Sócrates.

É então que repentinamente entra na casa de Agatão e interrompe a conversa destes homens nada menos do que Alcebíades, fazendo os maiores elogios de Sócrates. Vejamos o que Alcebíades tinha a dizer:

"Senhores,
devo lhes dizer como admiro a índole,
a sabedoria e a bravura deste homem
aqui presente.
Nele encontrei alguém como jamais
esperei encontrar outro homem
com tamanha prudência e fortaleza.
Logo depois que o conheci,
participamos ambos de uma expedição
contra Potidéia,
e tínhamos as refeições juntos.

Pois bem,
para começar,
ele superava a mim
e a todos os outros nas fadigas.
Toda vez que,
com as comunicações cortadas,
como acontece nas guerras,
éramos forçados a ficar sem provisões de boca,
perto dele os outros não valiam nada
para suportar a situação.

Por outro lado,
quanto a suportar os invernos,
e lá os invernos são terríveis,
este homem fez prodígios.
Certa vez, entre tantas,
tivemos uma geada das mais terríveis;
ninguém saía ao relento,
ou, se alguém saía,
ia embrulhado com uma espantosa
quantidade de agasalhos,
calçado com os pés envoltos em tiras de feltro
e pele de carneiro.
Mas Sócrates, nesta ocasião,
saiu sem nada levar além daquela mesma manta
que costumava vestir antes e, descalço,
caminhava sobre o gêlo com mais desenvoltura
do que os outros calçados.
Os soldados o olhavam com desconfiança,
pensando que com isto Sócrates
os estava querendo humilhar.

E quanto aos combates,
outro tanto é o que eu tenho a dizer.
Eis aqui uma dívida
que é justo que se lhe pague.
Quando se feriu aquela batalha
após a qual os generais me atribuíram
a insígnia de bravura,
quem me salvou não foi outro
senão este homem
que tendes aqui presente.
Ele não quis me abandonar ferido,
mas salvou juntamente minhas armas
e minha pessoa.
Quando voltamos a Atenas,
eu propus aos generais que dessem as insígnias
a ti, Sócrates,
e tu não me podes censurar por isto,
nem desmentir.
Todavia os generais estavam de olhos
postos na minha linhagem,
e queriam atribuir a mim as honras.

Porém o fato,
deve-se dizer,
é que o desejo de que eu as recebesse,
e não Sócrates,
era maior em Sócrates do que
nos próprios generais.

Ainda muitas outras coisas admiráveis
se poderiam dizer em louvor deste homem,
senhores.

No tocante a outras ocupações,
talvez se pudessem dizer coisas semelhantes
a respeito de outros;
mas naquilo em que ele não se assemelha
a homem algum,
nem do passado, nem do presente,
é que ele é digno de toda a admiração."

10.

Que outras coisas são estas a que Alcebíades se refere?

Conta a história que, durante a Guerra do Peloponeso, travou-se uma batalha em Délio. Dela participaram novamente Alcebíades e Sócrates. Conta o fato assim Plutarco:

"De outra feita,
feria a batalha de Délio,
quando batiam os atenienses em retirada.
Alcebíades ia montado,
enquanto Sócrates retirava a pé com poucos outros.
Quando Alcebíades o viu,
não passou à frente,
mas cavalgou ao seu lado
e o defendeu do inimigo,
que os ia acossando e eliminando em grande número".

Mas no Banquete de Platão, o próprio Alcebíades dá uma versão mais completa do ocorrido. Ouçamos o que ele tem a nos dizer:

"Ainda mais,
senhores,
valia a pena observar Sócrates
quando o exército batia em retirada
fugindo de Délio.

Acontece, com efeito,
que desta vez eu estava ao seu lado.
Eu tinha um cavalo;
ele, apenas o seu equipamento de infantaria
(isto é, o dos soldados que combatem a pé).
Sócrates ia se retirando,
junto com Laques,
quando os demais homens já tinham debandado.
Eu os vi por acaso,
e mal os vi,
exortei-os a ter coragem,
prometendo não abandoná-los.
Ali, melhor do que na batalha de Potidéia,
pude examinar a Sócrates,
pois eu tinha menos o que temer por ir montado.
Em primeiro lugar,
quanto a sua inteligência superava
a do seu colega que ele amparava!
Ele caminhava como aqui,
observando de soslaio, serenamente,
empertigado e lançando os olhos para os lados,
amigos e inimigos, deixando claro a todos,
mesmo bem de longe,
que se alguém tocasse na sua pessoa,
defender-se-ia com grande vigor.
Por isso retirava-se ele em segurança
com o seu companheiro.
De fato, na guerra,
quase nem tocam em pessoas
que procedem desta forma,
mas perseguem aos que fogem
desordenadamente".

E quem era Laques, que Sócrates amparava? Este companheiro Laques, de que fala Alcebíades, não é outro senão Xenofonte, o discípulo de Sócrates, também soldado naquela batalha, pois nós lemos em Diógenes Laércio, na sua biografia de Sócrates, o relato deste mesmo caso, em que se conta que o colega que Sócrates amparava era na realidade Xenofonte, que havia caído de seu cavalo, quando Sócrates, parou, voltou atrás e o amparou em uma retirada a pé.

11.

Alcebíades é também testemunha da capacidade incomum de concentração de Sócrates, mesmo nas condições mais adversas. Ele nos conta como Sócrates ficou imóóvel, meditando, à procura de uma idéia, durante vinte e quatro horas seguidas, e isto não no aconchego do lar, nem no silêncio de uma casa de campo, mas na guerra, entre uma batalha e outra em que todos poderiam perder a vida a qualquer momento.

Ouçamos o próprio Alcebíades falar:

"Quanto à bravura deste homem,
senhores,
tenho dito.
Mas o que realizou Sócrates certa vez
na campanha de Potidéia
vale a pena ouvir.
Entregue a seus pensamentos,
achava-se de pé desde o amanhecer,
à procura de uma idéia.
Como esta não lhe vinha,
ele não se dava por vencido.
Mantinha-se de pé, procurando.
Já era meio dia
quando os homens o observaram e,
maravilhados,
comentavam de um para o outro:

`Sócrates está de pé
desde o alvorecer,
a pensar em alguma coisa'.

Por fim, sobreveio a tarde;
alguns dos que o tinham observado,
depois de jantarem e estenderem
suas camas ao relento,
pois então era o verão,
ficaram deitados tomando o sereno
e ao mesmo tempo observando
se ele permaneceria de pé a noite toda.

Ele ficou lá, senhores, de pé,
até vir a manhã e sair o sol.
Chegando a luz do dia,
fez uma prece
e seguiu o seu caminho".

12.

Mas a coragem e a honestidade de Sócrates não eram apenas em tempo de guerra. Seus contemporâneos relatam que ele não abandonava seu ideal de justiça por qualquer que fosse o motivo, mesmo que isto lhe custasse a própria vida.

Perto do fim da Guerra do Peloponeso, Alcebíades tinha sido expulso do comando da frota ateniense. Ocorreu então o episódio da chamada Batalha das Ilhas Arginusas. Este episódio é assim narrado pelo historiador M. Rostofzeff:

"Após a expulsão de Alcebíades,
os atenienses fizeram mais um grande esforço.
O principal objetivo dos espartanos,
que nesta altura já tinham se aliado com os persas,
era conquistar as águas da região nordeste da Grécia,
e assim privar Atenas dos suprimentos de alimentos
vindos do Mar Negro.
Uma frota ateniense foi então enviada
para defender a região e começou com êxito.
Os espartanos foram derrotados
na Batalha das Ilhas Arginusas em 406 AC".
(A Guerra do Peloponeso, que durou 28 anos,
terminou em 404 AC).
"Mas a batalha das Arginusas foi travada
durante uma tempestade
e muitos marinheiros atenienses afogados".
(A guerra, nesta altura,
já estava bastante difícil para os atenienses.
Em vez de comemorarem a vitória),
"o fracasso dos generais em salvar os marinheiros
do afogamento provocou uma explosão de ira
na Assembléia Popular em Atenas.
Os generais foram privados de seu comando
e os que voltaram para casa foram mortos.
Esta justiça sumária não encorajou seus sucessores.
A esta causa, entre outras, os atenienses devem
sua derrota final e decisiva na Guerra do Peloponeso,
ocorrido em Egospótamos, próximo à entrada do Helesponto".

Estes generais, 10 ao todo, foram chamados de volta a Atenas para enfrentar um julgamento. Já vimos como eram os tribunais em que se faziam os julgamentos da Justiça Ateniense: quinhentos juízes, escolhidos entre um número de 6000 cidadãos escolhidos por sorteio, que votavam o veredito por maioria simples, após defesa pessoal dos acusados, com um magistrado coordenando a seqüência das acusações, defesas e votações.

Só que neste julgamento, que ficou na história, tratava-se de uma questão de guerra e os juízes seriam todos os cidadãos presentes à Assembléia Popular, qualquer que fosse o seu número. Coube a Sócrates, por sorteio, desempenhar o papel do Magistrado que iria coordenar o julgamento dos 10 generais.

Logo que se iniciou o julgamento, Sócrates percebeu sua irregularidade. A Assembléia queria julgar os dez generais e, ao que tudo indicava, condená-los à morte, em um só bloco. Segundo as leis atenienses, porém, cada general deveria ser julgado em separado e haver tantos julgamentos quantos fossem os réus. Enfrentando a ira popular, o que naquelas circunstâncias poderia vir a custar-lhe a vida, Sócrates conseguiu se impor e obter o julgamento individual de cada um dos acusados.

No Quarto Livro dos Ditos Memoráveis de Sócrates, Xenofonte se refere a este fato desta maneira:

"Quanto à justiça, Sócrates,
longe de rebuçar sua opinião,
patenteava-a por atos:
no particular de sua casa
era todo equidade e benevolência;
como cidadão,
de impecável honestidade para com os magistrados
em tudo o que manda a lei,
quer na cidade,
quer exército,
onde o abalizava o seu espírito de disciplina.
Presidindo, certa vez,
na qualidade de Epístata,
à Assembléia Popular,
impediu o povo de votar contra as leis e,
fundamentado nelas,
resistiu à fúria do populacho
que nenhum outro teria coragem de enfrentar".

Findo cada julgamento, Sócrates ainda teve a coragem, conforme diz Diógenes Laércio, de ter sido o único cidadão a votar, e públicamente, pela absolvição dos generais.

"Ele era um homem
de grande independência
e dignidade de caráter",

diz Diógenes Laércio, comentando o fato.

13.

Finda a Guerra do Peloponeso, e derrotados os atenienses, o general espartano Lisandro impôs em Atenas um regime ditatorial em que trinta homens teriam inteira autoridade sobre a vida dos cidadãos. Eram todos atenienses, mas eram pessoas tidas como iníquas pelos seus concidadãos, por terem traído a causa pátria pela dos espartanos. Este regime ficou sendo conhecido como o regime dos Trinta Tiranos, que durou oito meses, até que Trasíbulo restaurasse novamente a democracia em Atenas.

Curiosamente, o principal homem dos trinta tiranos era Crítias, um ex-discípulo de Sócrates, mas que em nada se comportava segundo o exemplo do mestre.

Começaram então os desterros e as mortes, e os Tiranos frequentemente davam ordens a cidadãos honestos que eles próprios prendessem seus condidadãos para serem levados ao suplício. Alguns testemunhos da época, embora talvez exagerados, dizem que nestes oito meses em que durou o regime dos Trinta Tiranos morreu mais gente em Atenas do que nos 28 anos da Guerra do Peloponeso.

Na História Universal de Cesare Cantú, este historiador diz que Sócrates,

"vendo tantos cidadãos perecerem,
vítimas da crueldade dos Trinta,
ou serem exilados, dizia:

`O pastor que visse
todos os dias
diminuir o seu rebanho
e se recusasse confessar
que era mau pastor,
não teria sinceridade;
menos ainda o teria
o governador de uma cidade que,
notando a diminuição
do número dos cidadãos,
negasse que governasse mal'".

Os Trinta lhe ordenaram que guardasse silêncio e não conversasse com cidadão algum menor de trinta anos; porém nem por isso ele deixava de falar com a mesma liberdade; e quando lhe perguntavam se não receava que a franqueza dos seus discursos lhe atraísse a desgraça, respondia:

"Pelo contrário, espero mil males;
mas nenhum seria igual
ao que eu cometeria,
fazendo uma coisa injusta",

embora, rigorosamente falando, não seria uma injustiça calar onde não se espera fruto algum das próprias palavras.

Em outra ocasião, os Trinta Tiranos exigiram de Sócrates que os ajudasse a prender um tal de Leon de Salamina, e sequestrar todos os seus bens. Mesmo sabendo o que poderia vir a lhe acontecer, Sócrates recusou, alegando não uma desculpa qualquer, mas declarando que não o faria porque tratar-se-ia de uma injustiça.

Diz do fato Xenofonte:

"Quando os Trinta lhe davam
ordens contrárias às leis,
não as acatava.
Assim, quando o proibiram
de falar com os jovens
e o encarregaram,
juntamente com outros cidadãos,
de conduzir um homem
que intentavam assassinar,
só ele se recusou a obedecer,
porque tais ordens não eram justas".

14.

Revela mais ainda o caráter de Sócrates o fato segundo o qual um certo dia surgiu em Atenas um homem que dizia possuir os conhecimentos necessários para descrever o caráter de um homem apenas pela observação de sua fisionomia. Levaram então o homem até Sócrates, que estava dialogando com vários outros. Fez-se silêncio entre todos, para que o homem examinasse os traços da fisionomia de Sócrates. Terminado o exame, disse o homem:

"Eis aqui um homem estúpido,
orgulhoso,
e incapaz de controlar
seus instintos sexuais".

A afirmação, tão abrupta, fêz cair a todos na gargalhada, tal a diferença evidente entre este julgamento e a realidade.

Mas houve alguém que não riu, e este foi o próprio Sócrates. Ao contrário, pareceu como que apanhado em flagrante, e, para não maior supresa dos presentes, dirigiu-lhes estas palavras:

"Não!
Está certo.
Este homem está certo!
São justamente estas as inclinações
que eu vejo existirem em mim,
e que tenho lutado para dominá-las".

15.

Notável também foi o modo como ele conheceu os seus principais discípulos. Diógenes Laércio narra o primeiro encontro entre Sócrates e Xenofonte, que começou a segui-lo antes de Platão. Ao narrar a vida de Xenofonte, assim se expressa Diógenes Laércio:

"Xenofonte, filho de Grillo,
era cidadão de Atenas.
Era um homem de rara modéstia
e extremamente educado.
A história conta
que Sócrates encontrou-o
em uma passagem estreita,
quando Xenofonte então
lhe perguntou por acaso:

"Onde eu posso encontrar
um lugar em que se vende
qualquer tipo de comida?"

Sócrates respondeu à pergunta,
mas depois fez a Xenofonte a seguinte:

"Agora dize-me tu,
aonde um homem pode se dirigir
para se tornar bom e honrado?"

Xenofonte ficou embaraçado,
e disse que não o sabia.

"Então segue-me",
disse Sócrates,
"e aprende".

A partir daquele dia
ele se tornou discípulo de Sócrates".

16.

Muito tempo depois, Sócrates encontrou-se com Platão, evento narrado também por Diógenes Laércio ao contar a vida de Platão.

Diz este antigo historiador que, sem que Platão e Sócrates ainda se conhecessem, o primeiro, Platão, vinha se interessando há algum tempo pelo estudo da Filosofia, e costumava ler os escritos de Heráclito, filósofo que já mencionamos sem termos tido, porém, a oportunidade de desenvolver o seu pensamento.

Certo dia Platão, cujo verdadeiro nome era Arístocles, resolveu inscrever-se em um concurso de composição de peças de teatro. Contava então com 20 anos.

Na véspera do dia em que a obra iria ser entregue, ocorreu que Sócrates sonhou que havia um filhote de cisne em seus joelhos, o qual se revestiu repentinamente de uma vistosa plumagem para logo em seguida levantar vôo depois de emitir em voz bem alta uma doce nota musical.

No dia seguinte Platão se dirigiu ao teatro de Dionísio para entregar uma cópia de sua peça, quando ouviu Sócrates conversando junto à porta do mesmo. Ficou tão impressionado com o modo de falar de Sócrates que jogou seu manuscrito às chamas e pediu para ser apresentado àquele homem. Assim que Sócrates viu o moço, disse aos circunstantes:

"Eis aqui
o filhote de cisne
do meu sonho".

A partir daí iniciou-se entre os dois uma amizade que a história não mais apagaria.

17.

Mas o que fazia Sócrates como filósofo?

Vimos como Sócrates tinha altíssimos padrões de conduta moral, os quais foram analisados até aqui apenas do ponto de vista exterior, isto é, tal como eles se manifestaram muitas vezes nos fatos da vida real. Eles, porém, se fundamentavam em pressupostos bem mais elevados que só mais adiante poderemos examinar.

Ao contrário dos demais filósofos pré socráticos, que se dedicavam à contemplação da natureza, a atividade principal de Sócrates era conversar, e conversar justamente sobre o conhecimento do homem sobre si mesmo, e sobre as virtudes, tais como a sabedoria e a justiça.

Este seu interesse pelas virtudes, entretanto, conforme veremos mais adiante, não é de natureza diversa do que o interesse dos outros pré socráticos pela contemplação do mundo à nossa volta. É verdade que a maioria dos historiadores contemporâneos apresentam Sócrates como inaugurando uma nova orientação na filosofia, em que o filósofo se preocupa com os problemas morais em vez do estudo da natureza. Na realidade, porém, não há fundamentalmente uma nova orientação; trata-se da mesma orientação, mas isto só ficará claro mais adiante. Tanto os filósofos pré socráticos, com a contemplação da natureza, como Sócrates, com a sua preocupação pelas virtudes, analisados mais de perto, estão realizando a mesma coisa. Mas para perceber isto será preciso primeiro compreendê-los mais a fundo.

18.

Pelo menos, porém, para um observador exterior, à primeira vista parece haver uma diferença.

Os pré socráticos se afastavam do convívio intenso com as multidões. Sócrates, ao contrário, procurava o convívio com as pessoas para poder conversar com elas. Ele frequentava as festas e os banquetes, e onde houvesse uma oportunidade de conversar com quem quisesse dialogar com ele, lá estava presente.

O tema favorito dos pré socráticos, pelo menos na impressão que os historiadores modernos gostam de transmitir deles, era a natureza. O tema favorito de Sócrates eram as virtudes.

Pelo menos exteriormente, assim parece haver uma diferença.

19.

Quando Sócrates conversava, ele não ensinava nenhuma doutrina pré estabelecida. Ao contrário dos pré socráticos, que ofereciam uma doutrina positiva, ele dizia que nada tinha a ensinar. Sócrates apenas perguntava. E assim se iniciava um diálogo. Sócrates costumava procurar para conversar as pessoas que diziam que tinham algum tipo de conhecimento para ensinar, e então começava a lhe fazer perguntas. Muitos dos que ele procurava eram os filósofos sofistas que visitavam constantemente a cidade de Atenas em busca de alunos, os quais se gabavam de serem capazes de ensinar qualquer assunto e responder a qualquer pergunta a quem quer que fosse. Embora anunciassem tais pretensões, quando os sofistas começavam a dialogar com Sócrates, não era preciso esperar muito para que eles próprios percebessem que sua idéias eram contraditórias e que suas afirmações eram simples opiniões improvisadas para fazerem efeito diante dos ouvintes, mas que não eram capazes de suportar a análise de alguém que buscasse sinceramente compreender as verdades últimas a respeito do homem e da vida humana.

Quando o sofista, conversando com Sócrates, chegava a se dar conta deste fato, em vez de aceitar a verdade, o mais comumente se revoltava contra o favor que Sócrates lhe havia prestado e começava a falar mal daquele homem para tantas pessoas quantas pudesse. Mas se ele era suficientemente honesto para aceitar a verdade, Sócrates então o convidava a juntar-se a ele para buscarem um verdadeiro conhecimento da natureza humana.

Sócrates comparava esta técnica do diálogo ao trabalho de sua mãe que havia sido parteira. O interlocutor podia ser tanto o sofista profissional como ou qualquer outra pessoa que fosse, pois na verdade todos nós somos sofistas por adotarmos sem refletir uma conduta em nossa vida que é baseada em concepções sobre o que é o homem, sobre o que é a vida humana e quais os seus objetivos que não suportariam uma análise sincera por quem quer que busque a verdade sem que caiam em contradição. Sócrates então comparava este interlocutor a uma gestante em trabalho de parto. Ele próprio, Sócrates, era a parteira, que, dialogando, nos faria entrar em contradição flagrante a respeito das concepções sobre as quais, consciente ou inconscientemente, fundamentamos nossas vidas. O momento em que o interlocutor percebesse a série de ilusões fundamentais em que sua vida normalmente se baseia, este Sócrates o comparava ao nascimento. Daí para a frente ele poderia ser ajudado a crescer como um novo homem.

20.

A técnica obstétrica de Sócrates foi imortalizada por Platão, o qual transcreveu uma multidão de diálogos que ele presenciou pessoalmente ou que ele reconstituiu baseado no testemunho de outros que haviam conhecido a Sócrates antes que ele próprio.

Sócrates procurou uma quantidade infindável de pessoas para simplesmente conversar com elas e ajudá-las a realizar o parto de suas almas. Isto lhe granjeou a estima e a gratidão de muitos, mas também a inveja e o ódio de outros tantos.

21.

Esta atividade de Sócrates de procurar as pessoas para conversar com elas iniciou-se, ao que parece, de um modo que tem o encanto da inocência das crianças.

Um amigo seu de infância, chamado Querofonte, impressionado com a conduta e os modos exemplares de Sócrates, resolveu dirigir-se ao oráculo do Templo de Delfos. Ali arriscou uma consulta, e perguntou se havia algum homem mais sábio do que Sócrates. A resposta foi afirmativa:

"De todos os homens vivos,
Sócrates é o mais sábio",

disse o oráculo, segundo Diógenes Laércio.

Querofonte correu para dar a boa notícia a Sócrates. Quando Sócrates a ouviu, custou a acreditar. Não podia ser verdade. Talvez houvesse algum sentido oculto no oráculo. Ao pé da letra, não podia ser verdade, e ele poderia prová-lo. Ele sabia que era um homem bom e justo, mas daí a supor que fosse o homem mais sábio de todos ia uma distância enorme. Ao contrário, ele tinha uma firme impressão de não ser um homem que soubesse muito.

"Eu sei que não sou um sábio",

dizia Sócrates.

"Como poderia, então,
eu não só afirmar o contrário,
como ainda por cima supor
que sou o homem mais sábio
de todos os homens vivos?"

"Mas, de qualquer forma,
não será difícil descobrir a verdade",

continuou Sócrates.

"Vou conversar com os homens sábios
e interrogá-los.
Suas respostas serão uma prova viva
de que há alguém,
e vários, mais sábios do que eu".

Foi assim que Sócrates começou a procurar as primeiras pessoas para conversar com elas e fazer-lhe perguntas. Com isto porém, tal como uma criança inocente, ele desejava simplesmente entender o oráculo de Delfos a seu respeito.

Para sua surpresa, não conseguiu encontrar nenhum sábio, mesmo entre aqueles que ostentavam sê-lo. Ao contrário, descobriu as profundas ilusões a respeito da vida e do homem sobre as quais se baseiam as vidas da maioria de todos nós. Foi a partir desta descoberta que Sócrates iniciou o seu magistério e teve que reconhecer que, afinal de contas, o oráculo tinha razão, pois ele não era um sábio, mas pelo menos estava consciente da extensão de sua ignorância, enquanto os demais nem isto sabiam.

22.

Muitos anos depois, já passada a Guerra do Peloponeso e o Governo dos Trinta Tiranos, algumas pessoas que se sentiram ofendidas pelo magistério de Sócrates inventaram uma queixa caluniosa contra ele no tribunal de Atenas.

Sócrates se dizia inocente.

O magistrado, porém, diante da multidão dos quinhentos juízes, perguntou:

"Afinal, Sócrates,
vamos ser sinceros uns com os outros.
Qual é a tua ocupação?
Se dizes que estás sendo caluniado,
de onde procedem as calúnias a teu respeito?
Naturalmente, se não tivesses
uma ocupação muito fora do comum,
não haveria este falatório,
a menos que praticasses
alguma extravagância".

Sócrates, então, com suas próprias palavras, contou a sua história:

"Muito bem, atenienses.
Ouvi, então.
Alguns de vós achareis
que estou gracejando,
mas não tenhais dúvidas,
eu vos contarei toda a verdade".

"Eu, atenienses,
devo a reputação que me deram
exclusivamente a uma ciência.
E qual é esta ciência?
Aquela que é, talvez,
a ciência do homem".

"Para testemunhar a minha ciência,
e se é uma ciência,
e qual é ela,
vos trarei o testemunho
do deus de Delfos".

"Conhecestes a Querofonte,
certamente".

"Querofonte era meu amigo de infância,
e também amigo do partido do povo
e seu companheiro naquele exílio
de que voltou conosco.

Ora, Querofonte, certa vez,
indo até Delfos,
arriscou esta consulta ao oráculo,
- repito, senhores, não vos amotineis -,
ele perguntou se havia alguém mais sábio do que eu.
Respondeu o oráculo
que não havia ninguém mais sábio.

Quando soube daquele oráculo,
pus-me a refletir assim:

`Que quererá dizer este oráculo?
Que sentido oculto existe
naquela resposta?
Eu mesmo não tenho consciência
de ser nem muito sábio nem pouco sábio.
Que quererá então ele dizer,
declarando-me o mais sábio?
Naturalmente não está mentindo,
pois isto lhe é impossível'.

Por longo tempo fiquei
nesta incerteza sobre o sentido.
Por fim, muito contra o meu gosto,
decidi-me por uma investigação,
que passo a expor.

Fui ter com um
dos que passam por sábios,
porquanto, se havia lugar,
era ali que, para rebater o oráculo,
eu poderia apresentar alguém
mais sábio do que eu.

Submeti esta pessoa a exame.
Não preciso dizer o seu nome,
mas era um dos políticos.
Eis, atenienses,
a impressão que me ficou
do exame e da conversa que tive com ele:
achei que ele passava por sábio
aos olhos de muita gente,
principalmente aos seus próprios,
mas não o era.
Tentei, então,
explicar-lhe que ele supunha
ser sábio, mas não o era.
A conseqüência foi a de tornar-me odiado,
dele e de muitos dos circunstantes.

Ao retirar-me, ia concluindo
de mim para comigo:
`Mais sábio do que este homem eu sou.
É bem provável que nenhum de nós saiba
nada de bom, mas ele supõe saber
alguma coisa e não sabe,
enquanto eu, se não sei,
pelo menos não suponho saber.
Parece que sou um nadinha mais sábio
do que ele exatamente em não supor
que eu saiba o que não sei'.

Daí fui ter com outro,
um dos que passam por ainda mais sábios,
e tive a mesmíssima impressão.
Também ali me tornei odiado,
dele e de muitos outros.

Depois disso não parei,
embora sentisse,
com mágoa e apreensão,
que ia me tornando odiado.
Não obstante, parecia-me imperioso
dar a máxima importância a este serviço.

Cumpria-me, portanto,
para averiguar o sentido do oráculo,
ir ter com todos os que passavam
por senhores de algum saber.

Ó atenienses!
Já que lhes devo a verdade,
eu vos declaro que se deu comigo
mais ou menos isto:
investigando de acordo com o oráculo,
achei que aos mais reputados
pouco faltava para serem os mais desprovidos,
enquanto outros, tidos como inferiores,
eram os que mais visão tinham
de ser homens de senso.

Depois dos políticos,
fui ter com os poetas,
tanto os autores das tragédias
como a outros,
na esperança de aí me apanhar
em flagrante inferioridade.
Levando em mãos as obras
em que pareciam ter posto o máximo
de sua capacidade,
interrogava-os minuciosamente
sobre o que diziam, para ir,
ao mesmo tempo,
aprendendo deles alguma coisa.

Pois bem, senhores,
coro de vos dizer a verdade,
mas é preciso.

A bem dizer,
quase todos os circunstantes
poderiam falar melhor do que eles próprios
sobre as obras que eles mesmo compuseram.
Assim, logo acabei compreendendo
que tampouco os poetas compunham
as suas obras por sabedoria,
mas sim por um dom natural,
por um estado de inspiração.
Ao mesmo tempo, porém,
notei que por causa da poesia
eles supõem ser os mais sábios dos homens
em outros campos em que não o são.
Saí, pois, acreditando superá-los
na mesma particularidade que aos políticos.

Por fim, fui ter com os artífices.

Tinha a consciência de não saber,
a bem dizer, nada,
e certeza de neles descobrir
muitos belos conhecimentos.
Nisso não me enganava;
eles tinham conhecimentos que me faltavam;
eram, assim, mais sábios do que eu.

Contudo, atenienses,
achei que os bons artesãos tinham
o mesmo defeito que os poetas.
Por praticar bem a sua arte,
cada qual imaginava ser sapientíssimo
nos demais assuntos,
os mais difíceis,
e este engano toldava-lhes aquela sabedoria.

De sorte que eu perguntei a mim mesmo,
em nome do oráculo,
se preferia ser como sou,
sem a sabedoria deles
nem a sua ignorância,
ou possuir,
como eles, uma e outra.
E respondi,
a mim mesmo e ao oráculo,
que me convinha mais ser como eu sou.

Desta investigação é que procedem,
atenienses, de um lado,
tantas inimizades que deram nascimento
a tantas calúnias, e,
de outro, esta reputação de sábio.
É que toda vez os circunstantes supõem
que eu seja sábio na matéria
em que eu confundo a outrem.
O provável, senhores,
é que na realidade sábio seja o oráculo
e que este queira dizer que pouco valor
ou nenhum tem a sabedoria humana.
Evidentemente se terá servido do nome de Sócrates
para me dar como exemplo,
como se dissesse:

`O mais sábio dentre vós, homens,
é quem, como Sócrates,
compreendeu que sua sabedoria é verdadeiramente
desprendida do mínimo valor'.

Por isso não parei esta investigação até hoje,
vagueando e interrogando,
de acordo com o oráculo, a quem,
seja cidadão, seja forasteiro,
eu tiver na conta de sábio,
e quando julgar que não o é,
coopero provando-lhe que não é sábio.

Esta ocupação não me permitiu lazeres
para qualquer atividade digna de menção
nos negócios públicos, nem nos particulares.

Vivo muito pobremente.

Além disso,
os moços que espontaneamente me acompanham
sentem prazer em ouvir o exame dos homens.
Eles próprios imitam-me muitas vezes,
interrogando os outros.
Suponho que descobrem uma multidão de pessoas
que supõem saber alguma coisa,
mas pouco sabem, quiçá nada.

Em conseqüência,
as pessoas que ele examina
se revoltam contra mim,
e não contra si próprios,
e difundem que existe um tal de Sócrates,
que é um grande miserável
que corrompe a mocidade.

Quando se lhes pergunta
por que atos ou ensinamentos,
não têm o que responder.

Para não mostrar então o seu embaraço,
levantam aquelas acusações que se levantam
contra todos os filósofos
e que estão sempre à mão:

`Sócrates investiga indiscretamente
os fenômenos celestes;
ensina a descrença nos deuses;
ensina a fazer prevalecer a razão mais fraca
sobre a mais forte'".

"Aí tendes, atenienses, a verdade.
Em meu discurso não vos oculto nada
que tenha alguma importância.
Nada vos dissimulo".

23.

Terminada a defesa, e passado o caso à votação dos juízes, Sócrates foi condenado à morte por pequena margem, conforme já sabemos. Mesmo assim, ao receber a sentença, comportou-se com a dignidade que tinha sido a sua característica em vida.

Aos que o condenaram dirigiu estas palavras:

"Eu já imaginava que a decisão seria essa,
não por pequena,
mas por grande margem;
no entanto, parece-me que,
com a transposição de apenas 30 votos,
eu estaria absolvido.

Perdi-me, senhores,
não por falta de discursos
com que vos poderia convencer.
Perdi-me por falta não de discursos,
mas de atrevimento e descaramento,
por me recusar a proferir
o que mais gostais de ouvir:
lamentos, gemidos,
fazendo e dizendo uma multidão de coisas
que considero indignas de mim,
tais como costumais ouvir dos outros.

Ora, se em minha vida
sempre achei que o perigo
não justificava nenhuma indignidade,
tampouco me pesa agora a maneira
pela qual me defendi.
Ao contrário,
fico mais feliz em morrer
após a defesa que fiz,
do que ficaria em viver
após fazê-la daquele outro modo.

Quer no tribunal,
quer na guerra,
não devo eu,
não deve ninguém
lançar mão de todo e qualquer recurso
para escapar à morte.
De fato, é evidente
que nas batalhas muitas vezes
pode escapar à morte
quem ousar tudo fazer e dizer.

Não se tenha por difícil
escapar à morte.

Muito mais difícil é
escapar à maldade".

São Paulo, 15 de outubro de 1989.