10.

Qualidades da fé.

Mostramos, até aqui, a importância que as Escrituras conferem à virtude da fé, que é a ela que se atribui o recebimento da graça do Espírito Santo, e explicamos o que é a fé, considerada em sua essência.

Quando um centurião romano veio pedir a Cristo que lhe curasse um de seus servos, Jesus, vendo a sua fé, lhe respondeu:

"Em verdade eu vos digo,
que não encontrei ninguém em Israel
com tão grande fé.
Vai, faça-se segundo a tua fé".

Mt. 8, 13

Cristo poderia ter curado o servo independentemente da fé do centurião; mas na vida espiritual, de que este milagre é um símbolo, a restauração do homem, a obra que Cristo efetivamente tomou sobre si e que veio tornar possível, não se realiza senão segundo a sua fé. Vítima, no dizer de Santo Antão,

"juntamente com toda a família humana,
de uma chaga profunda
que infecciona e aumenta
prodigiosamente",

para que a fé possa trazer ao homem aquele nascimento e crescimento espiritual que num texto anterior atribuímos à graça do Espírito Santo, é necessário que esta fé, sem a qual, dizem as Escrituras,

"não é possível agradar a Deus",

se revista de certas condições de que ainda não tratamos. Estas condições podem ser vistas como sinais pelos quais o homem que busca crescer na fé pode fazer uso para examinar seu progresso nesta virtude. Destas condições, as três primeiras são qualidades inerentes à virtude da fé. São elas a firmeza, a constância e a pureza, de que trataremos em seguida.

A firmeza da fé.

A firmeza da fé é aquela certeza profunda da verdade do que é proposto por Deus para se crer. Embora seja a qualidade mais conhecida da fé, não é, porém, a única. Os evangelhos insistem de modo especial nela, reportando-a ao ensinamento do próprio Jesus:

"Em verdade eu vos digo",

diz Jesus no Evangelho de São Marcos,

"se alguém disser a este monte:

`Ergue-te e lança-te no mar',

e não hesitar no próprio coração,
mas acreditar que aconteça o que diz,
isso lhe será feito.
Por isso eu vos digo,
tudo o que pedirdes na oração,
crede como já alcançado,
e vos será concedido".

Mc. 11, 23-24

No Evangelho de Mateus encontramos uma passagem muito semelhante:

"Se tiverdes fé
como um grão de mostarda",

diz também Jesus,

"podereis dizer a este monte:

`Muda-te daqui para ali'

e ele se mudará;
e nada vos será impossível".

Mt. 17, 20

Nestas passagens ocorre algo semelhante ao comentado por ocasião dos milagres de Jesus, que dissemos serem sinais de realidades da vida espiritual. Jesus se refere ao monte que se ergue e se lança ao mar; mas este milagre extraordinário, como todos os demais operados por Jesus, é o símbolo da restauração humana operada pela graça do Espírito Santo. De fato, lemos em várias partes do Evangelho que aquilo que Jesus ensinou que devemos pedir em primeiro lugar através da oração é a graça do Espírito Santo. A contrapartida para esta disposição humana em pedir a Deus com tanto empenho a graça do Espírito Santo a ponto de colocá-la em primeiro lugar diante de todos os demais pedidos possíveis é a revelação das Sagradas Escrituras de que Deus promete como verdade de fé que está disposto a conceder a graça do Espírito Santo a todos aqueles que lhe pedirem através da oração. Esta é a oração, dizem as Escrituras, que Deus ouve infalivelmente:

"Por isso eu vos digo",

disse Jesus na passagem já citada acima,

"tudo o que pedirdes na oração,
crede como já alcançado,
e vos será concedido".

Nesta passagem Jesus aparenta estar se referindo ao milagre do monte e a outros milagres de ordem material, e não está mentindo, porque ele prometeu de modo claríssimo que todos aqueles que cressem verdadeiramente seriam acompanhados pelos milagres (Mc. 16, 17-18). Mas, apesar disto, esta passagem do monte se refere de modo principal à obtenção da graça do Espírito Santo, que vem infalivelmente pela fé. As demais orações e milagres só são concedidos, ordinariamente, aos que pela fé pedem e alcançam de Deus primeiro a graça do Espírito Santo sem se preocuparem com o resto. De fato, é o mesmo Jesus que assim ensinou:

"Buscai em primeiro lugar
o Reino de Deus e a sua justiça,
e todas as outras coisas
vos serão dadas por acréscimo".

Mt. 6, 33

Esta também é outra promessa de Jesus, isto é, que todas as demais coisas seriam dadas por acréscimo se, em primeiro lugar, fosse buscado o Reino de Deus.

A constância da fé.

Para entender o que significa a constância da fé, convém examinar primeiro uma observação dos "Mistérios da Fé Cristã", onde Hugo de S. Vítor diz que crer é algo muito diferente do que apenas não negar os ensinamentos da fé:

"Há um gênero de homens",

diz Hugo de S. Vítor,

"para os quais crer significa apenas
não contradizer a fé".

Ainda que não a contradigam não só pelas palavras, mas também pelas obras, tais pessoas

"são chamadas fiéis
mais pelo costume da vida
do que pela virtude de crer".

"Dedicados apenas às coisas do mundo
e às coisas que passam",

continua Hugo,

"nunca elevam a mente
ao pensamento das coisas futuras;
embora recebam os sacramentos da fé cristã
juntamente com os demais fiéis,
não atentam para o que significa ser cristão
ou que esperança há
na expectativa dos bens futuros.
Embora chamamos a estas pessoas fiéis pelo nome,
de fato e em verdade estão longe da fé".

De fato, diz ainda Hugo em outra passagem dos Mistérios da Fé Cristã, pela fé produz-se

"uma tal pureza do coração
e da consciência"

no homem que já

"se começa a saborear interiormente
aquilo que se crê pela fé".

Se isto ocorre não uma vez ou outra, mas sempre e cada vez mais freqüente e constantemente, chamamos a isto de constância da fé, o que fêz São Paulo dizer que os homens santos

"vivem da fé".

De fato, na Epístola aos Hebreus, São Paulo cita o livro de Habacuc, em que o profeta diz a mesma coisa:

"O justo viverá da fé,
diz o Senhor,
mas,
se retroceder,
não será aceito à minha alma".

Heb. 10, 37

O mesmo, porém agora com suas próprias palavras, São Paulo escreve na Epístola aos Colossenses:

"Já que ressuscitastes com Cristo,
procurai as coisas do alto,
pensai nas coisas do alto,
não vos interesseis pelas terrenas,
já que vós morrestes,
e vossa vida está escondida
com Cristo em Deus".

Col. 3, 13

Se nossa fé não for assim, embora sejamos chamados de fiéis, diz Hugo de São Vítor,

"de fato e em verdade
estaremos longe da fé".

Outra era a fé do profeta Elias, de quem dizem as Escrituras que vivia constantemente

"na presença do Senhor".

I Reis 17, 1

Outra também era a fé dos salmistas, os quais, em suas orações, quando se referiam ao tabernáculo ou à casa do Senhor, freqüentemente era à fé que estavam se referindo:

"Pudesse eu habitar para sempre
no teu tabernáculo,
ó Senhor,
e acolher-me à sombra
das tuas asas".

Salmo 61, 5

"Bem aventurado, Senhor,
o homem que acolhes
e tomas para ti.
Ele habita nas tuas moradas,
sacia-se dos bens de tua casa,
da santidade do teu templo".

Salmo 65, 5

"A minha alma suspira,
deseja os átrios do Senhor;
o meu coração e a minha carne
exultam pelo Deus vivo.
Bem aventurados, Senhor,
os que moram na tua casa,
eles te louvam sem cessar.
Ao passarem pelo vale mais árido,
o transformam em fonte,
e a primeira chuva o recobre de bênçãos.
Caminham com vigor sempre crescente,
verão o Deus dos deuses em Sião".

Salmo 84, 3-8

Para entender o significado destas passagens, deve-se considerar primeiramente que o maior mandamento do Cristianismo não é a fé, mas o amor a Deus, conforme a sentença de Cristo:

"Amar a Deus de todo o coração,
com todo o entendimento,
com toda a alma,
com todas as forças,
este é o primeiro",

diz Jesus,

"e o maior
de todos os mandamentos".

Mc. 12, 29-31

Porém, para que Deus habite permanentemente em nós pelo amor, devemos também construir em nós uma casa para a fé, e é desta casa que falam os salmos acima. Pela constância da fé se constrói a casa em que Deus vem habitar em nós pelo amor, e é desta constância que também falava Ricardo de São Vítor no prefácio do De Trinitate:

" `O meu justo vive da fé'.

Esta sentença é ao mesmo tempo
apostólica e profética.
O Apóstolo diz o que o profeta prediz,
pois o justo vive da fé;
e se assim é,
ou melhor,
porque assim é,
devemos nos elevar com freqüência
aos mistérios de nossa fé.
Se somos filhos de Sião,
levantemos aquela sublime escada da contemplação,
tomemos asas como de águia,
pelas quais nos possamos destacar
das coisas terrenas
e nos levantar às coisas celestes.
Pensemos nas coisas do alto,
não nas coisas da terra,
onde Cristo está sentado à direita de Deus;
para isto de fato Cristo nos enviou o seu Espírito,
para que conduzisse o nosso Espírito de tal modo
que para onde Cristo ascendeu com o corpo,
ascendamos nós pela mente".

A pureza da fé.

Para entendermos o que é a pureza da fé devemos entender primeiro o que é a pureza considerada em si mesma. Podemos nos valer para tanto do Comentário ao Livro do Profeta Joel, escrito por Hugo de São Vitor. Ao comentar o verso

"Jerusalém será santa,
e os estrangeiros não tornarão mais
a passar por ela",

Joel 3, 17

ele anuncia que irá nos explicar o que é a santidade. Na realidade, porém, em vez da santidade o que ele nos expõe é a essência da pureza, tomando-a pela santidade, na medida em que a santidade envolve necessariamente a pureza. Eis o que ele nos diz a respeito:

"O próprio nome santidade",

diz Hugo,

"mostra de muitos modos
a sua virtude e a sua espécie:
santo em grego se diz AGHIOS,
nome composto de A e GHE.
GHE significa terra,
A significa sem.
De onde que é dito santo
o que é feito sem terra,
e se eleva da terra.
Santos eram aqueles de quem está escrito:

`Nossa conversação
está nos céus'.

Fil. 3, 20

`Jerusalém', portanto,
`será santa',
diz Joel,
pela alma contemplativa,
pelos seus afetos celestes,
pelo seu senso espiritual,
por suas ações angélicas".

"É dito santo o que é feito sem terra", diz este comentário a Joel, "e se eleva da terra". Esta é a essência daquilo a que chamamos de pureza. As coisas nobres são ditas puras quando não contém mistura de substâncias estranhas. A água é pura quando não contém barro nem sujeira, o ouro é puro quando não vem misturado com outros metais. A nobreza da fé provém dela ser de coisas celestes; a vida da fé será pura quando não vier misturada com as coisas da terra.

No Comentário à Ética de Aristóteles Santo Tomás de Aquino também nos diz, de outro modo, o que é a pureza. Ali encontramos escrito:

"A sabedoria é admirável pela sua pureza.
A pureza da sabedoria provém do fato
dela ser acerca de coisas imateriais".

Nesta passagem Santo Tomás diz que a sabedoria é pura porque ela diz respeito a coisas imateriais; ele associa, portanto, a pureza à imaterialidade.

Ora, a vida da fé produz na alma do homem esta forma de pureza, pois, conforme diz a Epístola aos Hebreus, ela diz respeito

"às coisas que não se vêem".

Heb. 11,1

As coisas que não se vêem são as coisas imateriais, isto é, as coisas do céu, que não se vêem com os olhos da carne porque são inteiramente espirituais.

A fé é pura por ser de coisas que não se vêem não porque devido a alguma circunstância estas coisas não puderam ser vistas, mas porque, por sua própria natureza, estas coisas não poderiam ser vistas pelos olhos da carne quaisquer que fossem as circunstâncias.Neste sentido, não são os acontecimentos narrados pelas Sagradas Escrituras que são o objeto principal da fé, isto é, aquilo em que Deus quer que o homem principalmente creia e viva desta fé; os fatos históricos narrados pelas Escrituras foram de natureza tal que puderam ser vistos pelos olhos da carne, e se algum homem não os viu não foi porque não poderia te-los visto, mas apenas porque não estava ali presente quando aconteceram. Quando Deus pede que tenhamos fé nestes fatos históricos não está pedindo principalmente que acreditemos que eles aconteceram, mas que acreditemos naquilo que neles havia de divino. Por exemplo, todos sabemos que Jesus morreu na cruz; houve pessoas, como São Pedro, que viram isto com os seus próprios olhos.

"Como pôde, porém,
São Pedro ter tido fé na paixão de Cristo
se ele a viu com os seus próprios olhos
e a fé é de coisas que não se vêem?",

pergunta Hugo de São Vitor. Ele mesmo, entretanto, nos responde a esta pergunta:

"O mérito de São Pedro não foi
o de ter visto a paixão de Cristo,
mas o de ter acreditado ser Deus
aquele homem que viu pendente na cruz";

e acrescenta estas impressionantes palavras:

"a fé sobre que se alicerça o edifício espiritual
é sempre de coisas que não se podem ver".

Summa Sententiarum
L. I, c. 2

É precisamente nisto que consiste a grandeza da fé e toda a sua pureza. A fé obriga a alma a se habituar à contemplação de objetos que estão além das possibilidades dos sentidos, elevando as faculdades do conhecimento humano a planos cada vez mais nobres.

Não é, pois, por um simples capricho ou pelo prazer de testar continuamente o homem que Deus pede para que ele creia e viva da fé no que ele não pode ver, acrescentando, conforme vimos anteriormente,

"que se ele se afastar,
não lhe será mais de seu agrado".

Heb. 10, 38

Ao contrário, Ele deseja com isso elevar a nossa alma a uma extraordinária pureza, aquela da qual o próprio Jesus disse:

"Bem aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus".

Mt. 5, 8

Ele faz isto, portanto, para o nosso próprio bem, conforme mais adiante o atesta também a Epístola aos Hebreus:

"Nossos pais nos educaram
segundo a sua própria conveniência;
Deus, porém,
o faz para o nosso bem,
para nos comunicar
a sua santidade".

Heb. 12, 10

Se o homem pudesse, portanto, ver com os olhos da carne as coisas que são objeto da fé, supondo que com isso tudo lhe seria mais fácil, em vez disto ajudar o homem, faria, ao contrário, com que perdesse toda a pureza que a fé é capaz de trazer às faculdades do conhecimento, destruindo-lhe com isso os próprios alicerces sobre que se fundamentam as possibilidades de seu crescimento espiritual.

A vida da fé produz inicialmente a pureza nas faculdades do conhecimento. À medida, porém, em que progride a vida espiritual, ela passa a estender seus efeitos a todas as demais faculdades da alma. Das faculdades do conhecimento ela passa a atuar sobre o afeto, e posteriormente alcança também o próprio agir do homem. Na Summa Theologiae Santo Tomás explica como isto ocorre:

"A fé",

que no início causa a pureza da inteligência, se estende depois

"também ao coração,
porque as coisas que estão na inteligência
são princípios das coisas que estão no afeto,
na medida em que o bem do intelecto move o afeto;
de onde que a purificação do coração
é um efeito da fé.
Por isso é que diz São Pedro,
nos Atos dos Apóstolos,
falando aos judeus a respeito dos pagãos:

`Deus não fêz distinção alguma
entre judeus e gregos;
antes, purificou o coração de todos
pela fé'".

A pureza causada pela fé no conhecimento, deste modo, extravasa e se estende também ao coração. Mas ela não pára aí. Á medida em que o homem cresce na fé, ela estende suas raízes ao seu próprio agir. Quem nos menciona este fato é S. Diádoco, bispo de Fócia no século V, que fêz a este respeito uma das afirmações mais impressionantes que já apareceram sobre a fé. A fé, dizem as Escrituras, diz respeito às coisas que não se vêem; mas S. Diádoco, como um daqueles justos que vivem pela fé, percebeu pela sua experiência pessoal uma conseqüência que não estava imediatamente contida nesta expressão; de fato, diz São Diádoco, não apenas a fé é das coisas que não se vêem, mas, mais ainda,

"a fé ensina a desprezar
as coisas que se vêem";

isto é, a pureza causada pela fé se estende já integralmente a todo o agir do homem, não mais apenas à mente e ao coração. Na Epístola aos Filipenses e na IIa. aos Coríntios São Paulo já havia escrito coisas semelhantes:

"Tudo aquilo
que eu considerava como lucro
antes de minha conversão",

diz São Paulo,

"tudo isto agora eu tenho como perda
diante do eminente conhecimento de Jesus Cristo,
e as considero como esterco,
para ganhar a Cristo e ser encontrado nele,
através da justiça que nasce da fé em Jesus Cristo,
a justiça que vem de Deus pela fé.

Esqueço-me do que fica para trás
e avanço para as coisas que estão diante,
prosseguindo para a meta
e para o prêmio da soberana vocação de Deus
em Jesus Cristo.

Embora em nós o homem exterior
vá caminhando para a sua ruína,
o homem interior se renova de dia a dia,
pois não olhamos para as coisas que se vêem,
mas para as que não se vêem,
não para as passageiras,
mas para as eternas".

Fil. 3, 7-15
II Cor. 4, 16-18