11.

A Esperança e a Caridade.

De tudo quanto dissemos até o momento fica evidente a tão grande importância da virtude da fé, que deve ser a primeira preocupação de cada cristão. Sem esta virtude não é possível iniciar a vida cristã; sem ela não nos é concedida a graça do Espírito Santo, sem a qual o homem é impotente para cumprir os mandamentos, compreender o seu alcance e freqüentemente até mesmo o seu sentido.

Tão grande é a importância da fé que Jesus mencionou esta como um elemento decisivo em sua última recomendação dada aos homens:

"Ide por todo o mundo",

disse então Jesus,

"e anunciai o Evangelho
a toda a criatura.

Aquele que crer,
será salvo;
aquele, porém, que não crer,
será condenado".

Mc. 16, 15-16

Aquele que não crer será condenado, não apenas porque não acreditou, mas também porque, sem a graça do Espírito Santo que lhe viria pela fé, privado inteiramente de qualquer senso espiritual, sua vida terá consistido na busca egoísta dos bens materiais, dos prazeres da carne e da satisfação do orgulho pessoal, num grau muito mais elevado do que o homem mergulhado neste estado é capaz de compreender. Este baixíssimo grau de consciência do próprio estado, característico da morte espiritual, são aquelas trevas de que fala o Evangelho de Mateus:

"O povo que jazia nas trevas,
viu uma grande luz;
e uma luz levantou-se
para os que jaziam na região
e na sombra da morte".

Mt. 4, 16

A luz de que fala Mateus nesta passagem é a graça do Espírito Santo, que nos veio através de Cristo. Esta luz que o Cristo nos trouxe, porém, não nos vem dEle de modo imediato, mas através da fé. De fato, diz o Evangelho de João, Jesus

"deu-lhes o poder
de se tornarem filhos de Deus".

Não o deu, porém, a qualquer um, mas

"àqueles que creem no seu nome,
àqueles que não nasceram do sangue,
nem da vontade do homem,
mas de Deus".

Jo. 1, 12

Sem a virtude da fé, portanto, a luz de que fala Mateus pode ter-se levantado no meio do povo, mas ela não se acende para nós, e para quem nunca viu a luz, na maior parte dos casos as trevas não parecem tão escuras.

Jesus resume claramente a triste condição de quem vive neste estado em uma passagem do Evangelho de São João:

"Deus amou de tal modo o mundo",

diz Jesus,

"que lhe deu o seu Filho unigênito,
para que todo aquele que nele crê
não pereça,
mas tenha a vida eterna.

Deus não enviou o seu Filho ao mundo
para condenar o mundo,
mas para que o mundo seja salvo por ele.

Quem nele crê, não é condenado,
mas quem não crê,
já está condenado,
porque não crê no nome
do Filho unigênito de Deus.

A condenação está nisto:
a luz veio ao mundo,
e os homens amaram
mais as trevas do que a luz".

Jo. 3, 16-19

"Quão aplicados, pois, não nos convém ser à fé", diz Ricardo de S. Vitor, "da qual procede o fundamento de todo o bem e através da qual se alcança o firmamento?" Mas, para que pela fé se alcance a graça do Espírito Santo, além das qualidades da firmeza, da constância e da pureza, inerentes à verdadeira fé em qualquer grau que se a tenha, a doutrina ensinada pelas Sagradas Escrituras nos mostra ainda que ela deve ser acompanhada das virtudes da esperança e da caridade.

A Esperança.

A esperança é uma virtude pela qual o homem, conhecendo através da fé as promessas que Deus faz àqueles que o buscam, e confiando nelas, aspira seriamente à santidade e à bem aventurança do céu que é o próprio Deus, na certeza de que estas coisas, pelo auxílio que Deus manifesta que nos deseja oferecer, não são mais ideais vagos e distantes, mas bens efetivamente possíveis de serem alcançados.

A esperança não é uma qualidade da fé, mas uma virtude inteiramente distinta, que se origina da fé e se acrescenta a ela. A fé viva de que nos falam as Escrituras, através da qual nos é dada a graça do Espírito Santo, é uma fé tal que deve dar origem à virtude da esperança, pois quem crê, através da fé que produz a esperança, nas coisas que Deus ensina através das Escrituras, necessariamente tem que se dar conta de que elas nos falam sobre a existência de um ser que nos ama imensamente. Este ser, embora por sua natureza divina não possa sofrer, nos ama entretanto como se sofresse pela loucura a que nos deixamos escravizar e pela ignorância com que avaliamos nossa condição neste estado. Para poder sofrer por nós, o que lhe era impossível em sua condição divina, humilhou-se e tomou a natureza humana. Revestiu-se da imagem de servo, entregou-se por nossos pecados, ressuscitou para poder-nos distribuir mais copiosamente a sua graça. Por nos amar não como a estranhos, quis reconduzir-nos a nosso estado original, que jamais deveria ter desaparecido. Preparou-nos um caminho não apenas para nos tornar felizes, mas para nos tornar participantes de sua própria felicidade.

Quando, através da fé, os homens despertam para estas realidades, encontram-se na situação descrita por Santo Antão:

"Também eu",

diz Santo Antão,

"o mais miserável de todos,
que estou escrevendo esta carta,
desperto de meu sono de morte,
passei o mais luminoso dos dias
que me foram concedidos na terra
a me perguntar,
com pranto e lágrimas,
com que poderia retribuir ao Senhor
por tudo o que Ele me fêz.

Eis, caríssimos,
que agora é nossa vez
de nos dispormos a ir ao nosso Criador
pelo caminho do pureza".

Nesta carta, quando Santo Antão cita

"o mais luminoso dos dias
que lhe foram concedidos,
desperto de seu sono de morte",

está se referindo a um efeito da virtude da fé.

Quando ele menciona ter chegado

"a nossa vez de nos dispormos
a ir ao nosso Criador",

está se referindo à virtude da esperança. Junto com a esperança, de fato, surge com ela, conforme diz a regra de São Bento,

"com toda a cobiça espiritual,
o desejo da vida eterna".

A esperança, porém, já estava em preparação como também já estava contida na fé de que falam as Escrituras. A fé pela qual se inicia a obra da restauração humana é um conhecimento sobrenatural que pressupõe a esperança que se origina dela própria; se não fosse assim, jamais São Paulo teria definido a fé como

"a substância
das coisas que se esperam",

Heb. 11, 1

colocando a virtude da esperança na própria definição que explica o que é a fé.

É por isso que também no texto acima de Santo Antão, depois de ter comentado a respeito de ter chegado

"a nossa vez de nos dispormos
a ir ao nosso Criador",

referindo-se à esperança, retorna novamente a falar da fé, ao dizer que isto se faz através do

"caminho da pureza",

como se a fé, o caminho da pureza, necessitasse primeiro da esperança para poder caminhar. "O caminho da pureza", de fato, é o caminho pelo qual se vai a Deus, que se inicia pela fé, a virtude que possui como uma de suas características essenciais a qualidade da pureza.

No Terceiro Livro das Sentenças de Pedro Lombardo encontra-se a também a seguinte definição da esperança:

"É uma virtude pela qual
esperamos confiantemente
os bens espirituais e eternos,
uma expectativa certa
da futura bem aventurança".

A virtude da esperança, diz Pedro Lombardo, é "uma expectativa certa", porque a esperança tem sua origem na fé; participa, portanto, da certeza da fé. Sua certeza, porém, não é a certeza de que a futura bem aventurança será infalivelmente alcançada, coisa que Deus não prometeu de antemão a ninguém, mas a certeza de que Deus nos ama muito e que tem tudo pronto para acolher os que correspondem à sua graça. Quando, portanto, através da fé, reluz diante dos homens o amor que Deus nos demonstra, surge neles a virtude da esperança e os bens eternos despontam como bens certamente possíveis e ao seu alcance, como se estivessem, apesar de sua dificuldade, apenas um pouco mais à frente:

"Apodera-se deles",

diz a Regra de São Bento,

"o desejo de caminhar para a vida eterna;
por isso lançam-se como de assalto
ao estreito caminho do qual diz o Senhor
que conduz à vida".

Estas palavras de São Bento podem atribuir-se com razão à virtude da esperança, a qual, por sua vez, germina da virtude da fé.

Já vimos o Salmo 84 dizer coisas semelhantes a respeito da fé e da esperança que dela surge, ao reportarmos suas palavras de admiração sobre os que vivem na casa do Senhor, isto é, os que vivem da constância da fé:

"Bem aventurados, Senhor,
os que moram na tua casa.

Caminham com vigor sempre crescente,
verão o Deus dos deuses em Sião".

Tal é a fé animada pela esperança.

A necessidade da caridade.

Não basta, porém, apenas que a fé seja animada pela esperança. As Sagradas Escrituras, na Epístola aos Gálatas, depois de recordar aos cristãos da Galácia que havia sido através da fé que haviam recebido o Espírito Santo (Gal. 3, 1-5), acrescentam que a fé a que São Paulo se refere é aquela fé que "opera pela caridade" (Gal. 5, 6):

"Ainda que eu tivesse toda a fé",

diz São Paulo,

"ao ponto de transportar os montes,
se não tivesse caridade,
não seria nada".

I Cor. 13, 2

Em conformidade com estas palavras, a Epístola de São Tiago diz também que a fé, sem a obra da caridade, ainda que fosse animada pela esperança,

"é morta em si mesma".

Tg. 2, 17

A esperança de tal homem seria inútil:

"Poderá salvá-lo tal fé?",

pergunta São Tiago (Tg. 2, 14). Nos escritos de Santo Tomás de Aquino encontramos também repetidamente afirmado que a fé somente se torna realidade perfeita através da caridade.

A caridade é o amor a Deus que nos foi prescrito no Evangelho de São Marcos como sendo o maior de todos os mandamentos:

"Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração,
com toda a tua alma,
com todo o teu entendimento,
com todas as tuas forças".

Mc. 12, 28

Poderia-se chamar ao que nos foi ordenado neste mandamento apenas de amor, mas a tradição cristã preferiu em vez disso utilizar-se da palavra caridade, uma palavra especial, porque em todos os tempos os cristãos perceberam que a caridade é mais do que amor. A caridade é amor, mas é um amor muito especial, um amor que só pode nascer não apenas da fé, mas também necessariamente da esperança.

Amor, no seu sentido mais geral, significa uma afinidade da vontade por alguma coisa. A caridade, embora sendo um amor especial, sendo porém também amor, pressupõe esta afinidade para com as coisas divinas pela qual amamos a Deus. Mas se a caridade fosse apenas esta afinidade pelas coisas divinas, não haveria razão para que fosse chamada com um nome especial.

Se a caridade fosse apenas uma afinidade pelas realidades divinas, seria ela a mesma coisa que o amor, tomado em seu sentido genérico, ainda que preceituado ao seu grau máximo:

"a Escritura não preceituou
apenas que amássemos a Deus,
ou que amássemos apenas a Deus,
mas que o amássemos o quanto pudéssemos",

diz Hugo de São Vítor.

"A tua possibilidade
será a tua medida".

Um amor desta natureza pressuporia uma afinidade para com as coisas divinas levada ao seu grau máximo, o que certamente também pressuporia a fé, mas poderia ser alcançado sem a esperança. Mesmo levado a este grau máximo, portanto, a caridade não passaria de outro nome do amor, tomado na sua máxima intensidade.

A caridade, porém, diz Santo Tomás de Aquino, não é apenas amor; é uma forma especial de amor a que chamamos de amizade. O amor de caridade não é apenas aquele amor pelo qual o homem cumpre o mandamento de amar a Deus de todo o coração, com toda a alma, com todo o seu entendimento, e com todas as suas forças; é aquele amor que pressupõe o amor pelo qual o homem é amado primeiro por Deus. Na Epístola de São João as Sagradas Escrituras se expressam a este respeito muito claramente:

"Nisto consiste a caridade",

diz São João em sua primeira epístola,

"não fomos nós que amamos a Deus,
mas Ele que nos amou primeiro".

I Jo. 4, 10

São João diz isto porque as Sagradas Escrituras nos mostram repetidas vezes que Deus nos quer tratar não apenas como objetos de seu amor, como trata na realidade tudo o que há no Universo, obra de sua criação, mas nos quer tratar como a amigos. O amor que Ele tem por nós é muito especial, apesar de não o merecermos ou até mesmo de merecermos o contrário. Na parábola do filho pródigo lemos que quando este filho retornou à casa do pai e pediu para ser contado apenas entre os seus servos, conforme ele merecia, Deus o acolheu novamente como filho, fazendo pouco ou nenhum caso de seus pedidos de ser recebido entre os criados. Todas as Sagradas Escrituras, ademais, dão a entender que Deus não quer apenas a nossa felicidade, mas, mais do que isso, Ele quer nos tornar participantes de sua própria felicidade. E no Evangelho de São João, lemos que Jesus disse, durante a última ceia, aos seus discípulos:

"Não vos chamo mais de servos,
porque o servo não sabe
o que o seu amo faz;
mas eu vos chamo de amigos,
porque tudo o que ouvi do Pai
eu vos dei a conhecer".

Jo. 15, 15

Ora, isto é mais do que amor no sentido genérico da palavra, diz Santo Tomás de Aquino. O que todas estas palavras da Escritura nos revelam é a verdadeira natureza da amizade:

"A amizade requer por natureza
uma mútua benevolência",

diz Santo Tomás de Aquino,

"porque o amigo é,
para o amigo,
outro amigo;
requer, ademais,
que esta benevolência se fundamente
sobre alguma comunicação.

A caridade é o amor de amizade
fundamentado sobre a comunicação
entre Deus e o homem
na medida em que Deus quer nos comunicar
a sua própria felicidade",

Summa Theologiae
IIa IIae, Q.23 a.1

e o homem, em resposta,

"se une a Deus pelo afeto de tal modo
que não vive mais para si,
mas para Deus".

IIa IIae
Q. 17 a.6 ad3

Está se vendo, pois, que a caridade é mais do que amar a Deus. Para amar a Deus, seria suficiente o conhecimento da fé. Mas a caridade pressupõe a aceitação daquele amor com que Deus, apesar de não o merecermos, nos amou primeiro, amor pelo qual Ele nos quer tratar como a um amigo e nos fazer participantes de sua vida, de sua natureza e de sua felicidade. Ora, esta aceitação se dá pela esperança, pela qual aspiramos precisamente à participação da eterna felicidade que há em Deus. Sem o desejo do céu, portanto, não pode haver caridade. A caridade é uma entrega mútua entre Deus e o homem.

Talvez a mais bela descrição encontrada na tradição cristã do que seja a caridade esteja contida naquela oração com que Santo Inácio de Loyola encerra seus Exercícios Espirituais:

"Tomai, Senhor",

diz Santo Inácio,

"e recebei toda a minha liberdade,
a minha memória,
o meu entendimento,
e toda a minha vontade,
tudo o que eu tenho e possuo;
Vós mo destes,
a Vós, Senhor, o restituo:
tudo é vosso,
disponde de tudo à vossa vontade;
dai-me o vosso amor e graça,
que isto me basta".

Quem quer que seja verdadeiramente sincero ao se dirigir a Deus com tais palavras, pode estar certo de viver na caridade.

Pode estar certo, também, conforme veremos mais adiante, de viver na graça de Deus. Chama-se graça, no dizer de Santo Tomás de Aquino, a uma

"luz e esplendor da alma,
que lhe é uma qualidade,
assim como a beleza o é para o corpo,
infundida por Deus
juntamente com a caridade na alma,
como se Deus a estivesse criando novamente
e através da qual,
já nesta vida,
a alma participa da natureza divina".

Por causa disso, diz mais ainda Santo Tomás:

"aqueles que amam a Deus deste modo
têm em si próprios
a maior prova de serem amados por Deus,
porque ninguém pode amar a Deus deste modo
se Deus não o amar primeiro,
pois o próprio amor pelo qual
nós amamos a Deus deste modo
é causado em nós pelo amor
com que Deus nos ama".

A caridade se estende ao próximo.

À explicação que demos a respeito da natureza da caridade, para maior compreensão do que seja ela mesma, convém acrescentar duas observações a respeito de algumas de suas mais notáveis conseqüências.

A primeira é que seria um absurdo se alguém pretendesse amar a Deus com um amor tão profundo e entranhado como é a caridade e, ao mesmo tempo, odiasse a alguém a quem Deus ama apaixonadamente como a um filho.

Assim, portanto, a caridade para com Deus implica necessariamente no amor para com todos os homens, aos quais Deus ama apaixonadamente como a filhos, sem exceção alguma, ainda que sejam os maiores pecadores e que tudo indique que, ao saírem desta vida, venham a perder as suas almas.

Deus, observa Jesus Cristo,

"fez nascer o Sol para todos,
indistintamente se fossem bons ou maus,
e manda a chuva sobre justos e injustos".

Mt. 5, 45

Isto significa que Ele os ama a todos. O Sol que Ele fêz nascer para todos é, além do Sol visível, o próprio Cristo,

"a luz verdadeira que ilumina
todo o homem que vem a este mundo",

Jo. 1, 9

e que se ofereceu na cruz

"pelos nossos pecados,
e não somente pelos nossos,
mas também pelos de todo o mundo",

I Jo. 2, 2

indistintamente

"se fossem bons ou maus",

conforme disse acima o Evangelho de Mateus.

A chuva de que fala Mateus nesta mesma passagem é, além da chuva visível, também o Espírito Santo que, segundo Provérbios, procura fazer-se ouvir aos corações daqueles que o desprezam e que nem se dão conta de que estão sendo por eles chamados,

"desprezando seus conselhos
e não fazendo caso de suas repreensões".

Pr. 1, 24-25

Deste Espírito Santo, de fato, conforme já vimos na introdução deste livro, o livro de Provérbios afirma que

"ensina em público,
nas praças levanta a sua voz,
grita às multidões,
faz ouvir as suas palavras
à entrada das portas da cidade".

Pr. 1, 20-21

Deus, pois, dizia Jesus,

"fêz nascer o Sol para todos,
indistintamente se fossem bons ou maus,
e manda a chuva sobre justos e injustos".

"Portanto",

conclui Jesus,

"amai os vossos inimigos,
fazei bem aos que vos odeiam,
e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem:
sede perfeitos,
como também vosso Pai celeste é perfeito".

Mt. 5, 44; 5, 48

Amar a Deus com amor de caridade, implica, portanto, em amar a todos os homens, indistintamente sem exceção, segundo a mesma perspectiva com que Deus os ama.

Isto significa que seguir o segundo mandamento,

"amarás ao próximo como a ti mesmo",

não é mais do que uma extensão e uma conseqüência da vivência do primeiro. Se alguém, portanto, em sua vida cotidiana, não possui uma capacidade ilimitada de perdoar e de não guardar ódio e rancor seja por quem for, e no entanto julga amar a Deus pelo amor de caridade, este alguém está se iludindo a si próprio; na realidade, ele sequer consegue se dar conta de qual seja o plano da perspectiva divina.

Muito distante de nutrir algum desejo de vingança ou represália por qualquer que seja o motivo, ainda que aparentemente justo, os homens que amam a Deus pela caridade tendem a amar ao próximo de um modo tão semelhante quanto possível ao qual Deus amaria os homens se Ele estivesse no lugar daquele que o ama:

"Aqueles que estão unidos ao Senhor
pela caridade",

diz São Paulo,

"são um só espírito com Ele".

I Cor. 6, 17

Eles fariam pelo próximo tudo aquilo que Deus faria se Deus fosse eles.

Inventariam, em primeiro lugar, todos os meios possíveis ao seu alcance para manifestar aos homens a extensão da loucura a que se entregaram e o grau de consciência praticamente nulo que eles tem desta sua situação. Se fosse preciso, dariam também suas vidas para fazê-los acordar. Viveriam, em suma, como Jesus viveu, mesmo que fossem simples carpinteiros. Direta ou indiretamente, a primeira manifestação de seu amor ao próximo se daria soba forma do último preceito que São Marcos nos diz ter sido dado por Jesus: "Ide", disse Jesus, "e ensinai todos os povos; quem crer será salvo, quem não crer será condenado"; ou melhor, explica mais claramente Jesus em São João, "já está condenado" (Jo. 3, 18).

"Eu desejaria que bem o soubésseis",

escrevia Santo Antão em uma de suas cartas, ou em todas as suas cartas,

"meus queridos filhos no Senhor,
que por causa de nossa loucura
Ele tomou a libré da loucura,
por causa de nossa morte
Ele tomou a libré de um mortal,
e por nós sofreu tanto.

Que se abram os ouvidos de vosso coração
para que tomeis consciência de vossa miséria.

Que aquele que toma consciência de sua vergonha
logo se ponha a buscar a glória à qual é chamado;

que aquele que compreende a sua morte espiritual
bem depressa encontre o gosto pela vida eterna".

É inconcebível que um homem que tenha escrito estas coisas pudesse ao mesmo tempo ter sua vista tão estreita a ponto de ser incapaz de perdoar quem quer que fosse. Ao contrário, Santo Antão amava os homens na mesma perspectiva com que Deus também os ama, do mesmo modo como Jesus nos ensinou no Evangelho ser o amor que Deus tem por nós:

"Foi em conseqüência
de nossos inúmeros pecados,
de nossas funestas revoltas,
de nossas paixões sensuais",

continua Santo Antão,

"que a Lei da Promessa se atenuou
e as faculdades de nossa alma se enfraqueceram.
Por causa da morte a que fomos precipitados,
tornou-se para nós impossível
atender a nosso verdadeiro título de glória:
nossa natureza espiritual.

O Criador então constatou
que a chaga se envenenava
e que era necessário recorrer a um médico;
Jesus, já Criador dos homens,
vem ainda curá-los.
Ele se entregou por todos nós;
nossos pecados causaram suas humilhações,
suas chagas, porém,
foram a nossa cura.
Ele nos reuniu de todos os lugares,
ressuscitando nossas almas,
perdoando nossos pecados,
ensinando-nos que somos membros uns dos outros".

A caridade implica no arrependimento dos pecados.

Além do amor ao próximo, o amor de caridade implica também, em segundo lugar, na obediência aos preceitos divinos. Isto significa que, ao surgir a caridade no homem, surge necessariamente o arrependimento radical de todos os seus pecados cometidos e o propósito de não mais cometê-los no futuro. Se isto não acontecer, tal como comentamos anteriormente ao falar do amor ao próximo, deverá concluir-se que o suposto amor de caridade não passa de uma ilusão do sentimento.

Além do arrependimento dos pecados passados, e do propósito de não mais cometê-los no futuro, para aqueles que já são batizados e possuem os elementos necessários para reconhecerem que a Igreja fundada por Jesus desde o início do Cristianismo é a Igreja Católica, o amor de caridade implica também no propósito de receberem a absolvição de seus pecados no Sacramento da Confissão.

A importância da caridade.

Nós já examinamos, e voltaremos a fazê-lo mais adiante com mais profundidade, a insistência com que o Novo Testamento fala a respeito da fé, e de modo especial, as Epístolas de São Paulo, a tal ponto que a muitos ele parece, embora erroneamente, não saber falar de outra coisa:

"O justo vive da fé",

diz São Paulo, e este é, de fato, um dos pontos centrais de seus ensinamentos, incansavelmente repetido, sob muitas formas, centenas de vezes em suas apenas catorze cartas.

Vez ou outra, porém, São Paulo nos lembra que a caridade é mais importante do que a fé. Na maioria destas poucas vezes, em comparação com o número das em que ele nos fala da fé, o faz de passagem e apenas circunstancialmente. O número de vezes em que São Paulo toca neste assunto da supremacia da caridade é assustadoramente menor do que a quantidade incontável de ocasiões em que ele nos ensina e insiste sobre a importância e o papel da fé.

Assim é que, na Epístola aos Gálatas, quase em seu final, quando ele diz que

"é do Espírito Santo
que aguardamos a esperança da justiça,
pela fé",

repentinamente São Paulo se lembra de acrescentar que a fé de que ele está falando, e da qual ele sempre está falando,

"é a fé que opera pela caridade".

Gal. 5, 6

No capítulo treze da Primeira Epístola aos Coríntios, que não é o seu escrito mais importante, numa passagem bastante diversa do estilo geral como São Paulo se expressa nas suas cartas, o Apóstolo faz um grande elogio à caridade, e afirma que

"se tivesse toda a fé,
até o ponto de transportar os montes,
mas não tivesse caridade,
não seria nada".

I Cor. 13, 1

No fim deste capítulo São Paulo redige uma conclusão que, para um leitor que se estivesse efetivamente se esforçando em compreender seus ensinamentos, não deixaria de surpreender. Em vez da Epístola repetir que o

"justo vive da fé",

como sempre, de uma forma ou de outra, ele sempre faz, em vez disso São Paulo diz o seguinte:

"Agora, pois, permanecem",
(como coisas necessárias para todos),
"estas três coisas:
a fé, a esperança e a caridade.
A maior delas, porém,
é a caridade".

I Cor. 1, 13

Ora, pode-se perguntar e com razão: se a fé sem a caridade de nada vale, se a caridade é maior do que a fé, por que São Paulo insiste tanto na fé em vez de fazê-lo com a caridade? Por que ele não diz que o justo vive do amor, em vez de dizer que o justo vive da fé? Por que na Epístola aos Romanos, o mais importante dos escritos de São Paulo, que examinaremos logo a seguir, ele mesmo apresenta a fé como sendo o ponto central de seus ensinamentos, em vez de fazê-lo com a caridade? Não havia declarado Jesus que a caridade era o maior de todos os mandamentos? No entanto, São Paulo parece se esquecer disso e, embora admita uma vez ou outra que a caridade é maior do que a fé, parece na prática ensinar e comportar-se como se estivesse ensinando o contrário.

Trata-se de uma questão delicadíssima, mas de cujo entendimento depende inclusive uma maior facilidade para o progresso da vida espiritual.

Na realidade, para os santos que alcançaram a plena estatura da filiação divina, aquela vida inteiramente regida pelo Espírito Santo através do dom de sabedoria, é mais correto dizer que eles vivem do amor do que da fé. Mas não é assim que se inicia a vida espiritual. A vida espiritual não se inicia sem a presença tanto da fé, como da esperança e da caridade. Mas no início é a fé que conduz a esperança e a caridade. Sem o solo fértil da fé, nem a esperança nem a caridade podem crescer. Para que a caridade possa crescer até habitar em nós como aquele fogo invisível que Jesus veio acender sobre a terra, é preciso construir para ela uma casa para a fé. Quando, depois de uma vida em que ela foi guiada pela fé, a caridade tiver produzido toda uma floração de virtudes, às quais se acrescentam a vida de oração, a reflexão e o estudo das Sagradas Escrituras e da ciência que dela deriva, e a fé vai se tornando cada vez mais constante e ficando sempre mais evidente que tal homem vive da fé, aos poucos a relação entre a fé e a caridade começa a se inverter. Até este momento era principalmente a fé que conduzia a esperança e a caridade e por isso era necessário insistir muito sobre a fé, tal como o faz São Paulo, embora a vida da alma proviesse realmente mais da caridade do que da fé. Daqui para a frente, porém, é a caridade que gradualmente passa a se tornar condutora da fé a que está unida. Quando isto ocorre, anuncia-se aos poucos a entrada no regime do dom de sabedoria; em vez da caridade alimentar-se da fé, como vinha acontecendo até o momento, a caridade toma a condução da fé e passa a introduzir a fé num modo superior de vivência, aquilo que Jesus chamava de "a verdade", que, embora não seja o próprio Deus, é a mais alta compreensão possível na terra das coisas divinas. O homem já não vive propriamente da fé, mas do amor e, através dele, da verdade, que é a própria fé transportada, através do amor, a um plano superior de vivência.

Santo Agostinho toca magistralmente neste assunto no início de seu Comentário ao Evangelho de São João, quando diz que há uma passagem do Salmo 71 que se aplica ao Apóstolo São João, o autor do Evangelho de que Agostinho está iniciando o comentário:

"Recebam as montanhas
paz para o teu povo",

diz o salmista,

"e as colinas a justiça".

Salmo 71, 3

São João Evangelista, diz Agostinho,

"é uma daquelas montanhas
a respeito das quais foi escrito:

`Recebam as montanhas
paz para o teu povo,
e as colinas a justiça'.

As montanhas",

continua Agostinho,

"são as almas elevadas;
as colinas são as almas pequenas.
As montanhas recebem a paz
para que as colinas possam receber a justiça. O que é, porém,
a justiça que recebem as colinas?
É a fé,
pois o justo, diz a Escritura,
vive da fé.
As almas menores não receberiam a fé
se as maiores,
que são ditas serem as montanhas,
não fossem iluminadas pela própria Sabedoria,
para que pudessem levar às menores
aquilo de que são capazes de receber,
e assim viverem as colinas da fé,
porque as montanhas alcançam a paz".

Mas as Epístolas de São Paulo, expressões do amor de caridade que vivia no Apóstolo, não foram escritas, como o foi, por exemplo, o Cântico dos Cânticos, para as montanhas, mas para as colinas. São Paulo quer, através de suas cartas, que as colinas cheguem a se transformar em montanhas. Para isso, porém, é preciso que elas aprendam a viver da fé. Por isso é que ele insiste tanto sobre a fé. Sem a profundidade da vivência da fé, a caridade não pode crescer até atingir a vida do dom de sabedoria. São Paulo deixou escapar isto em uma carta que ele escreveu não a uma comunidade, mas a um seu amigo íntimo. Na Primeira Carta a Timóteo ele afirma, logo no início, que tudo o que ele ensinou sobre a fé tinha por fim fazer surgir a vida da caridade:

"Recomendei-te, Timóteo,
que ficasses em Éfeso",

escreve São Paulo,

"para que admoestasses alguns
a que não ensinassem doutrinas diversas
do que nós mesmos ensinamos,
as quais servem mais para suscitar questões
do que para aquela edificação de Deus,
que se fundamenta sobre a fé.
Ora, o fim dos preceitos"
(que demos sobre a fé)
"é a caridade que nasce de um coração puro,
de uma boa consciência
e de uma fé sincera".

I Tim. 1, 3-5