IX.13.

A tendência geral à Democracia.

Vemos assim que o Comentário à Política não tem a intenção de esconder as dificuldades no estabelecimento da sociedade ótima. Ao contrário, além das que já foram mencionadas, ele aponta também para a existência de uma tendência geral de todas as sociedades, inclusive das Monarquias, a se transformarem em Democracias e a assim permanecerem.

Antes de mostrarmos como o Comentário chega a esta conclusão, devemos chamar a atenção para a relevância do fato aqui apontado para os dias de hoje. Pois, considerando a argumentação de que o Comentário se utiliza para evidenciá- la, observa-se que ela vale de modo especial para as sociedades historicamente isoladas. Depreende-se, dos argumentos do Comentário, que quando a uma sociedade é permitido viver apenas a sua própria história, com um mínimo de interferências externas, há uma tendência geral a que estas sociedades se acabem transformando em Democracias.

Ocorre porém que nunca, na história da humanidade, houve civilizações inteiramente isoladas; ao contrário, sempre elas se conquistavam umas às outras e até mesmo o Império Romano, aparentemente tão auto suficiente, teve que sofrer as invasões dos bárbaros. A primeira vez na história em que parece ter surgido uma civilização que não possa mais sofrer influências externas sobre si própria é no momento presente, em que as comunicações e o progresso tecnológico fizeram do globo terrestre como que uma só comunidade humana. Daí a relevância do argumento que vamos examinar.

Diz o Comentário que no início de todas as sociedades o regime era monárquico. Ao fazer esta afirmação, o Comentário não está se referindo à sociedade ótima que ele acabou de descrever, mas a uma forma de governo baseada no poder de um só governante e que apresenta algumas características que lembram o regime que foi descrito nas páginas precedentes:

"As cidades",

diz o Comentário,

"no princípio eram regidas por um só rei,
porque era mais fácil encontrar
um sábio do que muitos,
e por isso o governo real foi concedido
pela primeira vez a um só.

Ademais, no início,
as cidades eram pequenas,
e por isso era suficiente um só
para governá-las.

Ademais, escolheram para si um rei
por causa de algum benefício
que haviam alcançado através dele,
seja porque por eles lutou
contra os seus inimigos,
seja porque descobriu alguma arte
que lhes fosse necessária,
todas estas coisas sendo obras
de um homem bom.
Por este motivo,
a este homem,
como a alguém bom e virtuoso,
o tomaram como rei"
(69).

Mas, continua o Comentário, aos poucos esta monarquia foi se transformando em Aristocracia:

"Aconteceu, porém, depois,
que muitos se exercitaram nas obras da virtude,
pelo que muitos se tornaram virtuosos.
Estes, em seguida,
procuraram instituir o governo de muitos,
pois eram todos semelhantes na virtude,
e deixaram de sustentar o governo real,
instituindo o governo dos iguais na virtude.
Ora, esta forma de governo é a Aristocracia;
depois, portanto, da monarquia,
veio a Aristocracia"
(70).

Com o passar do tempo, porém, a Aristocracia transformou-se em Oligarquia. É assim que o Comentário narra o acontecido:

"Ocorreu depois
que estes governantes se tornaram ricos
com os bens comuns e,
inclinando-se aos prazeres destituídos da razão,
passaram a governar por causa da riqueza;
deste modo o Estado Aristocrático
se converteu em Estado Oligárquico.
Transformaram a riqueza em objeto de honra,
e fizeram com que os homens
tivessem que governar por causa delas"
(71).

O passo seguinte foi o advento da Tirania:

"Ocorreu então que um dos governantes
se tornou mais rico do que os outros,
mais poderoso pelas suas amizades,
e com isto acabou por subjugar aos demais.
Deste modo, converteu
o Estado Oligárquico em uma Tirania,
governando apenas para o seu próprio interesse"
(72).

Surge, então, quando a Tirania chega ao extremo, o Estado Democrático:

"Após a Tirania adveio a Democracia.
De fato,
como o tirano oprimisse até os homens ricos
para poder obter lucros torpes,
os próprios cidadãos que conduziam esta política extorsiva,
desviando parte do lucro torpe do tirano,
incitaram uma multidão mais forte
e fizeram com que ela se insurgisse contra o tirano.
Aconteceu assim que o povo se rebelou,
expulsando o tirano e ficando com o poder,
instaurando-se com isto uma Democracia.
Esta é a causa porque
em muitas cidades governa o povo,
porque o povo é numeroso
e por isso detém o poder.
Todavia, lá onde o povo domina,
introduz alguma coisa
das demais formas de governo;
nomeia, de fato, alguns homens
que darão as ordens
e nomeia também alguém
que esteja acima destes"
(73).

Com estes argumentos o Comentário aponta para a existência de uma tendência histórica em todas as sociedades pela qual, com o tempo, acabam se transformando em Democracias. Percebe-se, deste modo, como é difícil estabelecer entre os homens uma sociedade propícia à virtude e à contemplação, muito embora seja esta a aspiração mais profunda do homem e, correlativamente, a obrigação fundamental da sociedade. Trata-se, na verdade, de um dos problemas mais difíceis com que se pode defrontar a sociedade humana.



Referências

(69) In libros Politicorum Expositio, L. III, l. 14, 409.
(70) Idem, L. III, l. 14, 500. (71) Idem, L. III, l. 14, 501. (72) Idem, L. III, l. 14, 502. (73) Idem, L. III, l. 14, 503.