IX.6.

Pressupostos políticos da educação para a sabedoria.

Do que fica exposto já transparece porque é tão difícil introduzir ou mesmo propor para as sociedades modernas uma educação como a que é descrita neste trabalho.

No capítulo III do presente mencionamos uma afirmação de Raissa Maritain feita a respeito de quando ela, em busca de conhecimento, dirigiu-se aos professores das Ciências da Natureza na Universidade de Paris; segundo ela,

"as matemáticas eram
o seu mais alto céu intelegível".

Uma afirmação semelhante pode-se fazer quanto às aspirações políticas dos povos modernos; neste ponto, suas aspirações mais elevadas não passam do ideal democrático.

Para nos darmos conta deste fato, basta nos reportarmos aos numerosos textos de Teoria Geral de Estado que são utilizados em todos os primeiros anos dos cursos de Direito. Eis aqui, apenas para dar um exemplo, como um deles se expressa a respeito da Democracia:

"`Se houvesse um povo de deuses,
esse povo se governaria democraticamente'.

Com tais palavras mostra Rousseau,
no Contrato Social,
o grau de perfeição que se prende
a esta forma de governo:
governo tão perfeito,
no seu pensamento,
não quadra a seres humanos.
O pensamento político que combate a Democracia
mais de uma vez se escorou
nesta passagem da obra do filósofo
para abalar os fundamentos do regime democrático.

Mas, respondendo a quantos fazem objeção
ao sistema democrático de governo,
o reformista do liberalismo inglês,
Lord Russel, dessa maneira se exprimia:

"Quando ouço falar
que um povo não está
bastantemente preparado para a Democracia,
pergunto se haverá algum homem
bastantemente preparado para ser déspota".

Nos dias correntes,
a palavra Democracia domina com tal força
a linguagem política deste século
que é raro o governo,
a sociedade ou o Estado
que não se proclamem democráticos.
De tal ordem anda o seu prestígio,
que constitui pesado insulto,
verdadeiro agravo,
injúria talvez,
dizer a um governo
que seu procedimento se aparta
das regras democráticas do poder.

Marnoco e Souza,
o afamado jurisconsulto português
do começo deste século,
escreveu que a melhor justificativa
do princípio democrático

"resulta da impossibilidade
de encontrar outro
que lhe seja superior"
(46).

Este texto de Paulo Bonavides reflete muito bem o pensamento contemporâneo a respeito da Democracia; no entanto, apesar dos elogios feitos a esta forma de organização da sociedade, é evidente que em uma Democracia não é possível implantar um sistema educacional que tenha como fim último a contemplação. A razão é que, conforme exposto no capítulo V do presente trabalho, a educação para a contemplação exige o cultivo da virtude até à excelência como um de seus requisitos imediatos; em uma Democracia, porém, não é possível chegar-se a um consenso sobre o que seja a virtude, pois uma Democracia, enquanto tal, é uma sociedade organizada sem compromisso com a virtude: a Democracia, diz o Comentário à Política, busca como ideal apenas a liberdade (47). Se a Democracia produz ou chega a ter algum compromisso com alguma virtude, é apenas de modo indireto e circunstancial, na medida em que uma ou outra virtude são necessárias para assegurar a liberdade dos cidadãos. Mas se algum ato humano, ainda que seja um atentado direto contra a própria ordem da natureza, não interferir com a liberdade de nenhum cidadão, a Democracia não verá este ato como um vício, mas como um direito a ser defendido e tutelado. Ora, num contexto como este não será possível chegar-se a um consenso sobre o que seja a virtude absolutamente considerada. E mesmo que, apesar da estrutura da sociedade, os educadores conseguissem chegar a um consenso sobre o que é a virtude, as conseqüências práticas deste consenso, transformadas em Lei de Diretrizes a Bases, se constituiriam num atentado politicamente insustentável contra a liberdade dos cidadãos. Mas sem este consenso sobre o que seja a virtude não se pode implantar uma educação que tenha como objetivo a contemplação. A conclusão que daí se tira é que a educação para a contemplação, ainda que seja o anseio mais profundo da natureza humana, é impossível em uma democracia; é preciso para tanto uma forma de organização social mais elevada, cujo compromisso básico seja essencialmente com a virtude, apenas por conseqüência com a liberdade.

Que sociedade o Comentário aponta como tal é algo de que trataremos mais adiante; vamos continuar, enquanto isso, com nossa argumentação.

Concedamos que, de fato, em uma sociedade democrática, a educação para a contemplação não possa se transformar em Lei de Diretrizes e Bases obrigatória para toda a nação. Tal obrigatoriedade seria contra o princípio democrático, que respeita a liberdade dos cidadãos que discordam deste tipo de educação; ou, mais precisamente, respeita a liberdade dos que discordam da existência daquela entidade a que os filósofos chamam de virtude e que, desde que não interfiram na liberdade de ninguém, querem a maior distância possível de uma vida virtuosa e que o Estado os ampare nesta sua decisão. Nada impediria, porém, que se houvesse pessoas que reconhecessem a excelência da virtude e da contemplação, estas mesmas pessoas organizassem uma escola baseada nestes princípios e que pudesse ser freqüentador por todos aqueles que assim o desejassem. Isto lhes seria reconhecido como um direito, amparado pela sociedade democrática. Parece, portanto, que mesmo em uma sociedade democrática pode-se, ao contrário do que foi afirmado antes, implantar-se uma educação para a contemplação, para todos os que assim o quisessem.

Porém, examinadas as coisas mais atentamente, se isto fosse possível, verificaríamos que tais escolas seriam pequenas sociedades não democráticas sob a tutela jurídica de uma sociedade democrática politicamente superior; de onde se seguiria novamente a conclusão de que uma sociedade democrática não é suficientemente perfeita para promover, enquanto tal, este tipo de educação.

Dissemos, entretanto, se isto fosse possível, porque uma situação como esta não seria algo facilmente sustentável. O ser humano é um animal naturalmente político, que necessita, portanto, por esta razão, não apenas da escola, mas da verdadeira e plena sociedade para o seu aperfeiçoamento. Uma escola organizada nestas condições não contaria com amparo positivo algum por parte da sociedade a que pertence para o aperfeiçoamento que pretende de seus alunos; a sociedade democrática, enquanto tal, seria incapaz de compreender o que estaria acontecendo naquela escola: a forma especial de educação que ela ministra seria um problema interno que nada teria a ver com a sociedade; esta prestaria um auxílio meramente negativo, na medida em que tutelaria a escola contra os que desejassem negar diretamente o seu direito de existência.

Mas a sociedade democrática que assim agisse estaria indo contra um dos princípios fundamentais do Comentário à Política: aquele segundo o qual não é apenas para existir ou viver que os homens se reuniram em sociedade; ao contrário, a natureza do homem é tal que ele necessita da própria sociedade, e não apenas da escola, para alcançar o fim último de sua vida, e nada pode substituí-la neste papel, pois trata-se de algo que pertence à natureza do homem enquanto tal. A sociedade que apenas garante o direito de existência de uma escola como esta está simplesmente se omitindo naquilo que é precisamente o seu dever fundamental.

Ademais, ainda que uma escola como esta se dispusesse a existir em uma sociedade democrática, é uma anomalia que a parte seja hierarquicamente superior ao todo. Um general dificilmente conseguirá seguir a carreira de cabo, ainda que o queira, e ainda que as instituições jurídicas o amparem. Se não por outros motivos, os demais cabos e sargentos procurarão encontrar um modo de impedir-lhe a carreira. Não se pode dizer que seja impossível que ele persevere, mas é grande a possibilidade de que ele acabe sendo expulso ou que, com o tempo, vá perdendo as qualidades próprias de um general.

Por conseqüência, devemos concluir que a educação para a contemplação exige como pressuposto uma sociedade estruturalmente comprometida com o bem máximo do homem, uma sociedade em que suas instituições e suas leis, mais do que ao ideal da liberdade, estejam voltadas para o ideal da virtude, absolutamente considerada.



Referências

(46) Bonavides, Paulo: Ciência Política; São Paulo, Forense, 1986; pgs. 319-321.
(47) In libros Politicorum Expositio, L. III, l. 4, 381.