IX.2.

A sociedade como parte das coisas da natureza.

O início do Comentário à Política descreve o modo como se originam as sociedades com o intuito de mostrar, entre outras coisas, que a sociedade humana não é fruto de um livre acordo entre as vontades humanas, mas algo que pertence às coisas da natureza.

"Em todas as coisas vemos",

diz o Comentário,

"que se alguém as examinar segundo o modo
como se originam de seu princípio,
otimamente poderá contemplar nelas a verdade"
(1).

A primeira de todas as comunidades é aquela que se dá entre o homem e a mulher. É necessário dividir a cidade até às suas partes mínimas, de modo que assim cheguemos à primeira comunidade de pessoas que não podem existir umas sem as outras, que é a comunidade existente entre o homem e a mulher. Esta comunidade se dá por causa da geração pela qual nascem os homens e as mulheres; a geração não compete aos homens por eleição, isto é, na medida em que é dotado de uma razão que escolhe, mas lhes compete segundo uma razão comum a si e aos demais animais e também às plantas. De fato, há em todos um apetite natural para que deixem após si um outro semelhante a si mesmo, para que pela geração se conserve pela espécie aquilo que pelo número não pode conservar-se (2).

A esta comunidade do homem e da mulher se acrescentou a comunidade entre o senhor e os servos, quando aqueles que são ricos de forças corporais, para sobreviverem, se associaram àqueles que pela sabedoria são capazes de prever as coisas e reger os demais pela prudência. Esta comunidade também é pela natureza, porque a natureza não somente pretende a geração, mas também que o que é gerado sobreviva (3).

Destas duas comunidades, uma para a geração, outra para a sobrevivência, constituíu-se a primeira casa (4). Toda comunidade se ordena a alguns atos; os atos humanos podem ser de dois tipos, isto é, os cotidianos, como comer, aquecer-se ao fogo, e os não cotidianos, como comprar e vender, guerrear, etc.. Uma casa é uma comunidade constituída, segundo a natureza, com uma ordenação aos atos cotidianos (5).

A primeira comunidade entre várias casas chamou-se aldeia. Ela difere de uma casa porque os aldeões não se comunicam pelos atos cotidianos que são próprios de uma casa, mas por aqueles atos externos que não são cotidianos (6).

A aldeia é uma comunidade manifestamente natural. Ela, de fato, se origina quando de uma casa procedem muitos filhos e netos que, multiplicando-se, instituem diversas casas próximas umas às outras. De onde que, como a multiplicação da prole é algo que pertence à natureza, segue- se que a comunidade aldeã é algo que também pertence à natureza (7).

Na antiguidade, diz Aristóteles, os homens habitavam dispersos por aldeias, sem se congregarem em alguma sociedade. Sinal de que foi a multiplicação da prole que formou as primeiras aldeias é o fato de que no início, ainda segundo Aristóteles, todas as cidades eram governadas por reis, assim como toda casa é governada por alguém antiquíssimo, e assim como os filhos são governados pelos pais; Homero, o poeta mais antigo dos gregos, também afirma em seus versos que cada um instituíu leis à sua esposa e aos seus filhos como um rei na cidade. Assim, o regime real nas cidades proveio de um regime mais antigo na casa ou na aldeia (8).

Assim como uma aldeia compõe-se de muitas casas, assim a cidade constitui-se de muitas aldeias.A cidade é uma comunidade perfeita, pois ela se ordena a que o homem tenha suficientemente tudo o que é necessário à vida. Na cidade encontra-se tudo o que é necessário à vida humana, pelo que se compõe de muitas aldeias, em uma das quais exerce-se a arte fabril, em outra a arte têxtil, e assim por diante. No início a cidade constituiu-se apenas para que os homens encontrassem nela suficientemente com o que pudessem viver;mas na medida em que pelas leis da cidade a vida do homem passou a ordenar-se à virtude, dela proveio que os homens na cidade não apenas vivessem, mas também passassem a viver bem (9).

A cidade também pertence às coisas da natureza, pois o fim das coisas naturais é a natureza delas. Ora, a cidade é o fim das comunidades já mencionadas, das quais mostrou-se todas pertencerem à natureza; portanto, a cidade pertence às coisas da natureza (10).

Do caráter natural da cidade infere-se que o homem é por natureza um animal político, pois a cidade não é senão uma comunidade de homens; sendo ela parte das coisas da natureza, o homem também será por natureza um animal político. Aquele que por natureza e não pelo acaso deixa de viver em sociedade é ou um ser vil, corrompido em sua natureza humana, ou alguém superior ao homem, possuidor de uma natureza mais perfeita do que o comum dos homens (11).

De tudo isto conclui-se que em todos os homens há uma inclinação natural à comunidade civil assim como às virtudes. Assim, porém, como as virtudes são adquiridas pelo exercício, conforme afirma o II da Ética, assim também as cidades foram instituídas pelo trabalho humano. Aquele que, portanto, por primeiro instituiu a cidade foi causa para os homens de bens máximos. De fato, o homem é o melhor dos animais se nele se aperfeiçoam as virtudes às quais possui inclinação natural. Mas se vive sem lei e justiça, o homem se torna o pior de todos os animais, pois a injustiça é tanto pior quanto maior for o número de suas armas e de instrumentos para a execução do mal. De fato, ao homem convém por sua natureza a prudência e a virtude que de si se ordenam ao bem; mas quando o homem é mau, usa delas como de armas para a execução do mal. O homem sem virtude, quanto à corrupção da potência irascível torna-se maximamente cruel e selvagem; quanto à corrupção da potência concupiscível torna-se péssimo na busca do prazer venéreo e na voracidade dos alimentos. Mas o homem pode ser reduzido à justiça pela ordem da cidade, de onde fica manifesto que aquele que instituiu a cidade livrou os homens que se tornassem péssimos e possibilitou-lhes que se tornassem ótimos segundo a justiça e as virtudes (12).



Referências

(1) In libros Politicorum Expositio, L. I, l. 1, 16.
(2) Idem, L. I, l. 1, 17-18. (3) Idem, L. I, l. 1, 19. (4) Idem, L. I, l. 1, 25. (5) Idem, L. I, l. 1, 26. (6) Idem, L. I, l. 1, 27. (7) Idem, L. I, l. 1, 28. (8) Idem, L. I, l. 1, 29. (9) Idem, L. I, l. 1, 31. (10) Idem, L. I, l. 1, 32. (11) Idem, L. I, l. 1, 34-35. (12) Idem, L. I, l. 1, 40-41.