V.21.

O ensino da ciência moral na filosofia grega.

H. I. Marrou, notável historiador e profundo conhecedor da vida na antiguidade através de amplo contato direto com as fontes da época, quiz nos deixar em seu livro sobre a História da educação na antiguidade um retrato tão vivo quanto lhe foi possível do ensino ministrado entre os filósofos gregos. O que impressiona de modo particular em sua descrição é como, embora o objetivo do ensino filosófico fosse a sabedoria, isto é, um conhecimento, davam eles grande importância aos problemas morais:

"A cultura filosófica",

diz H. I. Marrou,

"confinava-se, na antiguidade grega,
apenas a uma minoria,
a uma elite de espíritos que,
para assimilá-la,
dispunha-se a fazer o esforço necessário.

Ela implica, com efeito,
uma ruptura com a cultura comum,
com sua orientação predominantemente literária,
oratória e estética.

Supõe até mais:
a filosofia grega não é apenas
uma modalidade determinada de formação intelectual,
mas também um ideal de vida,
que pretende plasmar o homem por inteiro.
Tornar-se filósofo é
adotar um modo de vida novo,
mais severo do ponto de vista moral,
envolvendo inclusive um certo esforço ascético,
o qual se manifesta,
de maneira concreta,
no comportamento e até no vestuário:
reconhece-se o filósofo por sua túnica curta,
grosseira e escura.

De todos a filosofia reclama,
efetivamente,
um ideal de vida,
que está em oposição com a cultura comum
e supõe uma vocação profunda,
direi até uma conversão.

Esta palavra não é forte demais",

continua H. I. Marrou.

"Os antigos gostavam de citar
a significativa anedota do jovem Pólemon
irrompendo, embriagado,
com uma coroa na cabeça,
ao sair de uma orgia,
no recinto de aula do filósofo Xenócrates:
este iniciava,
precisamente naquele instante,
uma dissertação sobre a temperança.

Desenvolve a prelação num tom
tão persuasivo, tão patético,
que Pólemon renuncia à sua vida de libertino
e se deixa fascinar pela filosofia
a ponto de fazer juz, mais tarde,
à sucessão de seu mestre na direção da Academia.

Freqüentemente,
nesta "conversão" à filosofia,
cuja formal analogia
com a nossa moderna conversão religiosa
é notável,
o rompimento com a forma oratória da cultura
é claramente inculcado.

O exemplo clássico é de Dion de Prusa:
renomado sofista,
tinha cerca de cinqüenta e cinco anos
quando Domiciano o exilou em 85.
Em meio às privações e à miséria,
sofre profunda transformação moral,
renuncia às vaidades da sofística
e adota a vida austera e militante de filósofo.

Daí o papel que desempenha no ensino
dos mestres da filosofia o discurso exortativo,
do qual Aristóteles foi o criador do gênero.

O Protéptico de Aristóteles,
dirigido ao príncipe cipriota Têmison,
foi várias vezes imitado,
primeiramente pelos epicúreos
e finalmente por Cícero.

Foi o Hortêncio assim escrito por Cícero
que acabou por determinar a primeira conversão
do jovem professor de retórica africano
que mais tarde se chamou Santo Agostinho.

Existia, realmente, um ensino de filosofia
mais ou menos organizado.
Encontramo-lo sob três formas principais.

Havia, inicialmente, o ensino,
até certo ponto oficial,
que se ministrava no seio das escolas de filosofia
propriamente ditas,
de cada uma das escolas fundadas por mestres
cujos ensinamentos se perpetuava de geração em geração,
transmitido por um chefe de escola
regularmente investido no cargo por seu predecessor.

Assim, Platão havia escolhido seu sobrinho Espeusipo,
o qual escolhera Xenócrates,
que por sua vez escolheu Pólemon,
a quem sucedeu Crates.

Da mesma maneira,
Aristóteles transmitiu a direção do Liceu a Teofrasto,
preterindo Aristoxeno,
para grande indignação deste.

Podemos reconstituir,
quase sem lacunas,
a sucessão das quatro grandes escolas de filosofia
durante todo o período helenístico
até o fim da antiguidade.

As sedes de todas estas escolas encontravam-se,
em princípio em Atenas,
mas podiam encontrar-se filiais em outros locais.

Este ensino apresentava diversos aspectos
de progressivo tecnicismo.
Supõem, de início,
um estudante que tenha terminado
sua formação secundária.
As várias escolas não são
igualmente exigentes neste ponto:
os filósofos epicúreos e os céticos
afetam desinteressar-se por isto;
as escolas que mantém, rigidamente,
a necessidade de uma preparação inicial
substancialmente matemática,
diante do declínio do nível de estudos científicos,
ministravam elas próprias a iniciação matemática,
a qual, porém, em si mesma,
era estranha ao programa específico do filósofo.

O estudo propriamente dito da filosofia
começa por uma iniciação bastante elementar:
em qualquer que seja a escola,
começa-se pela aquisição de algumas noções gerais
de História da Filosofia.
Seguia-se a isto um curso,
bastante genérico,
a respeito da doutrina da própria escola.
O verdadeiro ensino escolar
só começava depois.
Apresentava também um duplo aspecto:
em primeiro lugar,
o comentário dos clássicos da escola.

Mas o ensino tinha um segundo aspecto,
mais pessoal, e mais vivo:
o professor também falava diretamente,
em seu próprio nome,
e comunicava aos seus discípulos
o sumo de seu próprio pensamento
e de sua sabedoria.
Eram colóquios mais livres,
em tom familiar,
girando em torno de um texto
que se havia acabado de comentar,
de um incidente da vida cotidiana,
de uma questão suscitada de passagem,
para elevar-se a considerações doutrinais.

Enfim,
e talvez, sobretudo,
havia as conversações pessoais,
entre o mestre e o discípulo, a dois,
ou na presença de um terceiro companheiro e amigo:
ressaltei, amiúde,
o caráter pessoal da educação antiga;
aqui ele se manifesta com particular nitidez.
Exigia-se do filósofo que fosse não apenas
um professor, mas também, e sobretudo,
um mestre, um guia espiritual,
um verdadeiro mentor de consciências;
a essência de seu ensino não era prodigalizada
da altura de sua cátedra,
mas no seio da vida em comum,
que o unia aos seus discípulos:
mais do que sua palavra,
importava o seu exemplo,
o espetáculo edificante
de sua sabedoria prática
e de suas virtudes.

Em princípio,
o ensino completo de um filósofo
devia constar de três matérias:
lógica, física e ética,
ou seja,
uma teoria do conhecimento,
uma doutrina acerca do mundo
e uma moral.
Este quadro era aceito sem discussão
por todas as escolas".
(164)

Até aqui o texto de H. I. Marrou; texto de notável beleza, mas que deve ser avaliado em uma justa perspectiva. H. I. Marrou não é filósofo, mas historiador. Não pretende ter captado a essência das escolas de filosofia antigas, mas ter nos dado uma descrição das mesmas tal como talvez pudesse ter sido dada por algum cidadão culto da idade antiga que convivesse na mesma sociedade em que funcionavam estas escolas de filosofia, sem ter feito, porém, parte delas. Mas mesmo assim, e até por causa disso mesmo, causa impressão o número elevado de referências à questão da moral e das virtudes no ensino filosófico contido neste texto. Vejam-se, por exemplo, as seguintes:

"Tornar-se filósofo",

diz Marrou,

"é adotar um modo de vida novo,
mais severo do ponto de vista moral,
que se manifesta, do ponto de vista concreto,
no comportamento".

"Exigia-se do professor,
também e sobretudo,
que fosse um guia espiritual,
um verdadeiro mentor de consciências".

"A essência do ensino do mestre
era prodigalizada pelo espetáculo edificante
de suas virtudes".

"Em princípio,
o ensino completo de um filósofo
incluía a Ética".

O que, porém, em matéria moral não está muito claro neste texto é que esta Ética ensinada nas escolas de filosofia, segundo se depreende dos Comentários de Tomás de Aquino, devia ser ministrada de modo a que não fosse apenas uma exortação às virtudes, nem apenas um estudo especulativo sobre moral, mas uma ciência em que o aluno deveria saber justificar por razões filosóficas a moralidade das ações humanas nas diversas circunstâncias com a sua contrapartida prática, pela qual o aluno deveria provar que norteava todos os atos de sua vida pelos conhecimentos adquiridos no estudo da Ética.

Desnecessário dizer que nenhum centro de ensino superior do mundo moderno faz semelhantes exigências a seus alunos.

Cabe, porém, voltar a perguntar: por que o ensino da ciência moral entre os filósofos não era apenas uma exortação à vida correta, mas exigia-se também a justificação racional dos motivos das ações de suas vidas individuais, como se depreende do conjunto do Comentário à Ética?

A resposta que podemos dar para isto é que as justificativas últimas da ciência moral radicam todas em razões maximamente universais, tais como na preponderância do bem comum sobre o bem individual ou particular ou sobre o bem das paixões, ou na excelência do bem da ordem que se observa na natureza. De onde que a verdadeira ciência moral não consiste apenas em uma exortação ao correto agir ou na criação de bons hábitos pelo costume, mas em fazer com que o homem passe a ter por motor de seus atos razões maximamente universais que se fundamentam em uma ordem superior à das estreitas perspectivas que lhe são fornecidas pelas paixões com que ele inicia sua vida, entrando no princípio em contato com o cosmos apenas através delas. O homem que progride por este caminho deve acabar por abandonar por completo a motivação das paixões e passar a seguir uma outra mais elevada, até tornar-se ele próprio, com todas as suas potências, como que uma personificação da verdade, na medida em que não apenas a inteligência, mas todas as suas potências passam a participar da própria ordem do universo apreendida pela inteligência.

Ora, é evidente que uma disposição como esta não pode ser senão uma disposição muito próxima à contemplação da sabedoria. Não apenas a inteligência é desimpedida no trabalho da contemplação pela ausência da perturbação dos movimentos da imaginação, mas também é como que compelida à contemplação por todas as demais potências que participam, através dela, da própria ordem do universo.



Referências

(164) Marrou, H. I.: História da Educação na Antiguidade; São Paulo, Herder-EDUSP, 1969; IIa. parte, C. XI, pgs. 323-328.