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Chegando a este ponto do Comentário à Ética,
considerando que nenhuma virtude moral pode se dar sem a
prudência nem a prudência pode se dar sem a virtude moral, S.
Tomás, seguindo a Aristóteles, pergunta se é possível ao
homem possuir alguma virtude sem possuir também as demais.
De fato, pareceria, diz ele, que as virtudes
morais possam ser separadas entre si, de tal maneira que uma
virtude possa ser possuída sem a outra; pois vemos que um
mesmo homem não é inclinado a todas as virtudes, mas um à
liberalidade, outro à temperança, e assim por diante.
Isto acontece porque é fácil alguém ser conduzido
àquilo ao qual é naturalmente inclinado, porém é difícil
conseguir algo contra o impulso da natureza.
Se, portanto, algum homem está naturalmente
disposto a uma virtude e não a outra, alcançará esta virtude
à qual está naturalmente disposto enquanto que não alcançará
outra virtude à qual não esteja naturalmente disposto.
Portanto, parece possível possuir alguma virtude
sem possuir as outras (138).
Porém, se analisarmos mais atentamente este
argumento, diz Tomás de Aquino, veremos que o que foi dito é
correto no que diz respeito às virtudes naturais, não porém
no que diz respeito às virtudes morais.
De fato, nenhuma virtude moral pode ser possuída
sem a prudência, e assim, quando a prudência, que é uma só
virtude, existe em alguém, simultaneamente existirão com ela
todas as demais virtudes morais, das quais nenhuma existiria
se a prudência não existisse.
Se houvesse diversas prudências acerca das
matérias das diversas virtudes morais, assim como há diversos
gêneros de coisas artificiais, não haveria impedimento para
uma virtude moral existir sem que uma outra existisse, cada
uma delas tendo a prudência a si correspondente.
Mas isto não pode ser, porque os princípios da
prudência são os mesmos para toda a matéria moral, e
portanto, por causa da unidade da prudência, todas as
virtudes morais são conexas entre si (139).
Este argumento de S. Tomás no Comentário à Ética
poderá ficar mais claro se entendermos melhor a natureza da
unidade da prudência, que é o que faz com que todas as
virtudes morais sejam conexas entre si.
A unidade da prudência é mais facilmente
compreendida se nos lembramos que a prudência é na realidade
uma forma de conhecimento, assim como as ciências e as artes.
Ela é, de fato, enumerada entre as virtudes intelectuais,
assim como as ciências, as artes e o intelecto. Mas ela é
mais semelhante às ciências e às artes do que ao intelecto,
porque o intelecto diz respeito ao conhecimento imediato dos
princípios indemonstráveis em que se baseiam os demais
conhecimentos, enquanto que a prudência, as ciências e as
artes dizem respeito a certos conhecimentos que não são
imediatos no homem, mas que se originam a partir do
conhecimento de determinados princípios apreendidos como
verdadeiros.
Assim, o objetivo da prudência é um determinado conhecimento,
isto é, o conhecimento do termo médio das ações humanas
operadas pelas virtudes morais, não porém naquelas ações que
são os fins últimos destas virtudes morais, mas naquelas que
se ordenam a estes fins.
A prudência difere da ciência por ser a ciência um
conhecimento cuja finalidade é o próprio conhecimento,
enquanto que a prudência é um conhecimento cuja finalidade é
a ação, nisto se assemelhando à arte, que é um conhecimento
cuja finalidade é a obra de arte.
A principal diferença, porém, entre a prudência
enquanto conhecimento e as ciências e as artes enquanto
conhecimento é bastante outra, e consiste no seguinte:
enquanto os princípios do conhecimento que é a ciência e as
artes são princípios que residem também na inteligência, os
princípios do conhecimento que é a prudência não estão na
inteligência, mas nas corretas inclinações das virtudes
morais.
A prudência, assim, é uma espécie de ciência
prática cujos primeiros princípios, à diferença das demais
ciências, não estão na esfera da inteligência, mas na das
virtudes morais, as quais se referem às paixões e operações
humanas.
Ora, ocorre que a experiência mostra existir uma
manifesta conexão entre as paixões e operações que se dão na
vida humana: de uma paixão se origina outra, e das paixões se
originam operações e vice versa, de tal modo que toda a
matéria das virtudes morais é um conjunto de muitas partes
mutuamente ordenadas.
Por esta razão as matérias das diversas virtudes
morais não se ordenam entre si como diversas ciências cujas
matérias são desconexas uma da outra, mas como os diversos
princípios de uma mesma ciência.
Portanto, assim como um geômetra que errasse sobre
um dos princípios da geometria não poderia pretender o
conhecimento da ciência geométrica, porque tal erro se
estenderia a toda esta ciência, assim também não pode ser
dito prudente, isto é, alguém que possui o conhecimento de
fazer retas eleições em matéria moral, aquele que errasse
acerca de um só dos princípios em que se baseia tal
conhecimento, pois o defeito da prudência em uma parte da
matéria moral induziria ao erro em todas as suas demais
partes (140).
Daqui se segue que, quanto à correta inclinação do
termo médio, todas as virtudes crescem no homem
simultaneamente em igualdade de proporção, assim como os
dedos de uma mão, embora, materialmente falando, um homem
possa ser mais disposto, pela natureza ou pelo costume, ao
ato de uma determinada virtude do que de outra (141).
Se, pois, o homem se tornar prudente, possuirá
todas as demais virtudes simultaneamente; se não se tornar
prudente, porém, poderá possuir alguma inclinação especial à
paciência ou à temperança, mas estas não serão verdadeiras
virtudes, por causa do defeito da eleição reta proveniente da
prudência, que será corrompida pela falta das demais virtudes
morais (142).
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