III.7.

A pedagogia de Platão. II.

Segundo Platão, a educação do futuro filósofo começa cedo, já na infância:

"Começamos por contar
fábulas às crianças.

Estas são fictícias,
por via de regra,
embora haja nelas
algo de verdade.
As fábulas,
na educação das crianças,
aparecem antes da ginástica.

O princípio é o mais importante
em toda a obra,
sobretudo quando se trata
de criaturas jovens e tenras;
pois neste período de formação do caráter
é mais fácil deixar nelas gravadas
as impressões que desejarmos.

Não poderemos então permitir,
levianamente,
que as crianças escutem
quaisquer fábulas,
forjadas pelo primeiro que apareça.
Trataremos de convencer às mães e às amas
que devem contar às crianças apenas as histórias
que forem autorizadas,
para que lhes moldem as almas
por meio das histórias
melhor do que os corpos com as mãos.
Será então preciso rechaçar
a maioria das fábulas
que estão atualmente em uso:
jamais devem ser narradas
em nossa cidade,
nem se deve dar a entender
a um jovem ouvinte
que ao cometer os maiores crimes
não fez nada de extraordinário;
nem tampouco se deve dizer uma palavra
sobre as guerras no céu,
as lutas e as ciladas
que os deuses armam uns aos outros,
o que aliás nem é verdade.
Pelo contrário,
se houver meio de persuadí-los
de que jamais houve cidadão algum
que tivesse se inimizado com outro
e de que é um crime fazer tal coisa,
esse, e não outro,
é o gênero de histórias
que anciãos e anciãs deverão contar-lhes
desde o berço,
pois os meninos não são capazes
de distinguir o alegórico do literal
e as impressões recebidas nesta idade
tendem a tornar-se fixas e indeléveis.
Portanto, é da mais alta importância
que as primeiras fábulas que escutarem
sejam de molde a despertar nelas
o amor da virtude"
(29).

Além das histórias, Platão quer também que as crianças sejam sadiamente educadas desde cedo em uma arte correta:

"Teremos de vigiar não apenas os poetas,
fazendo-os expressar a imagem do bem
em suas obras
ou a não divulgá-las entre nós;
mas será preciso vigiar também
os demais artistas,
impedindo que exibam
as formas do vício,
da intemperança,
da vileza
ou da indecência na escultura,
na edificação
e nas demais artes.

Pois a arte reflete a harmonia da alma:
a beleza do estilo, a harmonia,
a graça e a eurritmia
não são mais do que conseqüências
da verdadeira simplicidade,
próprias de uma mente e caráter
nobremente dispostos;
busquemos, pois,
aqueles artistas cujos dotes naturais
os levam a investigar
a verdadeira essência do belo
e do gracioso.
Desta maneira,
os jovens crescerão
em uma terra salubre"
(30).

Que os jovens também sejam educados a respeito do abuso do prazer:

"O abuso do prazer não tem
nenhuma afinidade com a temperança,
nem com a virtude em geral"
(31).

"Sabemos por experiência
que quanto mais fortemente
somos arrastados pelos desejos num sentido,
mais fracos se mostram eles nos outros;
é como uma corrente que fosse desviada
toda para um canal.
Aqueles cujos desejos o conduzem
para o saber sob todas as suas formas
se entregará inteiramente
aos prazeres da alma
e porá de lado os do corpo,
se for filósofo verdadeiro e não fingido.
Tal homem será temperante
e nada avaro de riquezas"
(32).

Continuando a exposição, Platão mostra como existe um equilíbrio ideal entre ginástica e música na formação do futuro filósofo:

"Quanto às duas artes da música e da ginástica,
crêem alguns que se destinam uma a atender a alma
e outra a atender o corpo;
mas é muito possível que tanto uma
quanto a outra
tenham sido criadas com vistas
sobretudo ao aperfeiçoamento da alma.
Pois os que praticam exclusivamente
a ginástica tornam-se por demais abrutalhados,
enquanto que os que se dedicam exclusivamente à música
amolecem-se mais do que lhes convém.
Será preciso, pois,
combinar a ginástica com a música
e ajustá-las à alma dos jovens
na mais justa proporção"
(33).

Depois Platão insiste que é preciso treiná-los também nas diversas virtudes e na arte militar:

"Dentre eles depois escolheremos
os mais inclinados a ocupar-se
com o que julgam útil à cidade,
aqueles para os quais não haja sedução
nem violência
capaz de fazer-lhes esquecer o sentimento
do dever para com a comunidade"
(34).

"E se hão de ser
tais como os descrevemos,
é necessário que tenham
a qualidade da veracidade.
De caso pensado,
jamais acolherão a mentira em suas mentes,
pois a odeiam tanto quanto amam a verdade.

Haverá alguma coisa
mais natural à filosofia
do que a verdade?

É necessário, portanto,
que o verdadeiro amante do saber
aspire desde a sua juventude
à verdade em todas as coisas"
(35).

"Devemos examinar ainda outro critério
pelo qual se aquilata a índole filosófica:
que não passe desapercebida nenhuma vileza,
porque a mesquinhez do pensamento
é o que há de mais incompatível com a alma
que tende constantemente para a totalidade
e a universalidade do divino
e do humano"
(36).

"Um homem assim não poderá considerar
a morte como coisa terrível.
Como pode, (de fato),
(quem teme a morte),
ter a elevação necessária
para vir a contemplar a verdade?"
(37).

"Ademais, o homem
harmoniosamente constituído,
que não é avaro nem mesquinho,
vaidoso nem covarde,
não poderá jamais mostrar-se duro ou injusto
em suas relações com os outros"
(38).

"Tampouco pode-se passar por alto
se aprende com facilidade ou não;
pois como pode-se esperar
que alguém ame aquilo
que lhe pesa fazer
e em que se adianta pouco
e a duras penas?"
(39).

"Mas a verdade será a principal
e a primeira de todas as qualidades,
que ele deverá perseguir sempre
e em todas as coisas"
(40).

"Estes são os sinais que distinguem
desde a juventude
a natureza filosófica
da que não o é"
(41).

Passada a juventude, depois do exercício das virtudes, começará o exercício da inteligência:

"Durante o período de crescimento
os jovens tem de ocupar-se sobretudo
com os seus corpos,
para que lhes sejam prestantes,
mais tarde,
no serviço da filosofia.
À medida que a vida for avançando
e o intelecto começar a amadurecer,
intensificarão pouco a pouco
a ginástica da alma"
(42).

"Será preciso fazer com que se exercitem
em muitas disciplinas,
para vermos se serão capazes de suportarem
a maior de todas elas,
ou se fraquejarão como os que fraquejam
em outras coisas"
(43).

A matemática, será, nesta época, um dos estudos a que hão de se dedicar os jovens. Porém, no que diz respeito a esta disciplina, Platão reconhece que não é buscada pelo motivo com que convém buscá-la:

"Ninguém se serve devidamente dela,
pois a sua verdadeira utilidade
é atrair as almas para as essências"
(44).

A matemática

"é uma espécie de conhecimento
que se deveria implantar por lei,
tentando persuadir os que vão exercer
as mais altas funções da cidade
que se acerquem dela
e a cultivem
não como amadores,
mas para que cheguem a contemplar
a natureza dos números
com a ajuda exclusiva da inteligência;
não como fazem
os comerciantes e os revendões,
para utilizá-la
nas compras e nas vendas.

A matemática (pode começar a)
elevar a alma a grandes alturas,
obrigando-a a discorrer sobre os números em si,
rebelando-se contra qualquer tentativa
de introduzir objetos visíveis
ou palpáveis
na discussão.
Nota-se que os que têm
um talento natural para o cálculo
também mostram grande vivacidade
para compreender todas
ou quase todas as ciências,
e que mesmo os espíritos tardios,
quando foram educados
e exercitados nesta disciplina,
tiram dela,
quando não outro proveito,
pelo menos o se fazerem mais atilados
do que antes eram.
Fica, pois, assentado que
esta será
nossa primeira matéria
de educação"
(45).

A segunda matéria que se segue à matemática, diz Platão, será a Geometria. No entanto, os homens também não estudam a Geometria como convém:

"Confundem as necessidades da geometria
com as da vida diária:
no entanto, o verdadeiro objeto de toda esta ciência
é o conhecimento.
Ela (deve) ser cultivada
com vistas no conhecimento
do que sempre existe,
e não do que nasce e perece.
Então ela atrairá a alma para a verdade
e formará mentes filosóficas
que dirijam para cima
aquilo que agora dirigimos
indevidamente para baixo.
Em todos os ramos de estudo,
como demonstra a experiência,
quem aprendeu geometria
tem uma compreensão
infinitamente mais viva"
(46).

Assim, depois de dissertar também sobre a importância do estudo da geometria no espaço, da astronomia e da música na formação do filósofo, Platão chega finalmente à própria filosofia, que ele chama de Dialética:

"Assim chegamos finalmente
à melodia que a Dialética executa,
a qual,
embora seja unicamente do intelecto,
é imitada pela faculdade da vista
ao procurar contemplar os animais,
as estrelas reais e o próprio Sol.
Quando, pelo seu auxílio,
tentamos dirigir-nos,
com a ajuda da inteligência
e sem a intervenção de nenhum sentido,
para o que é cada coisa em si
e não desistimos até alcançar,
com o auxílio exclusivo da inteligência,
o que é o bem em si,
então chegamos
às próprias fronteiras do inteligível,
assim como aquele que chegou ao limite do visível"
(47).

"Mas teremos que escolher (novamente)
aqueles a quem haveremos de ensinar
estas coisas
e de que maneira.
O erro que se comete agora
é o de ser estudada a filosofia
por indivíduos que não são dignos dela.

Por conseguinte,
a Matemática, a Geometria,
e toda a instrução que constitui
o preparo para a filosofia
devem ser ministrados na infância;
não, porém,
com a idéia de impor pela força
o nosso sistema de educação.
Um homem livre
não deve ser escravizado
na aquisição de qualquer espécie
de conhecimento.
Os exercícios corporais,
quando compulsórios,
não fazem dano ao corpo;
mas o conhecimento
que penetra na alma pela força
não cria raízes nela.
Que não se empregue,
portanto,
a força para instruir as crianças;
que aprendam brincando,
e assim poderemos conhecer melhor
o pendor natural de cada uma.
E os que neles demonstrarem
sempre maior agilidade
passarão a formar um grupo seleto"
(48).

"A partir de então,
com os que forem escolhidos
entre a classe dos 20 anos,
reuniremos os conhecimentos
que adquiriram separadamente
durante a educação infantil
num quadro geral das relações
que existem entre as diferentes disciplinas
e entre cada uma delas e a natureza do ser.
Este é, ademais,
o melhor critério
para aquilatar as naturezas filosóficas,
pois aquele que tem visão de conjunto
é filósofo;
o que não a tem,
esse não o é"
(49).

"Estes são os pontos
que deverão ser considerados;
aqueles que,
além de se avantajarem aos outros nestas coisas,
se mostrarem mais firmes e constantes
na aprendizagem,
na guerra e nas demais atividades,
logo que tenham alcançado a idade dos 30 anos
tornarão a ser separados
entre os já escolhidos para investigar,
com a ajuda da Dialética,
quais deles serão capazes de renunciar
ao uso da vista e dos sentidos e,
em companhia da verdade,
atingir o ser absoluto.
Mas aqui será necessário
ter muita cautela"
(50).

"Há grande perigo
em que tomem gosto
pela filosofia
quando ainda são jovens;
servir-se-ão dela como de um jogo,
empregando-a para contradizer os outros
e depois de terem conquistado muitas vitórias
e sofrido também muitas derrotas,
cairão rapidamente na incredulidade
a respeito de tudo quanto antes acreditavam"
(51).

Mas, a partir dos 30 anos,

"durante cinco anos se dedicarão
à filosofia.
Depois serão obrigados novamente
a exercer os cargos atinentes à guerra"

e ao bem público.

"Também nestes cargos
serão postos à prova,
para ver se se manterão firmes
ou fraquejarão
em face das tentações
que procurarão arrastá-los
em todos os sentidos.
Esta nova fase de suas vidas
durará quinze anos.
Quando chegarem aos 50,
os que se tiverem distinguido
em todos os atos de sua vida
e em todos os ramos do conhecimento
serão levados à consumação final,
pois será preciso obrigá-los
a elevar os olhos da alma
e contemplar de frente
o que proporciona luz a todos;
e quando tiverem visto o bem em si,
o adotarão como modelo
durante o resto de sua existência,
em que governarão cada qual por seu turno,
tanto à cidade e aos particulares
como a si mesmos"
(52).



Referências

(29) Platão: A República, L. II.
(30) Ibidem, L. III. (31) Ibidem, L. III. (32) Ibidem, L. VI. (33) Ibidem, L. III. (34) Ibidem, L. III. (35) Ibidem, L.VI. (36) Ibidem, L.VI. (37) Ibidem, L.VI. (38) Ibidem, L.VI. (39) Ibidem, L.VI. (40) Ibidem, L.VI. (41) Ibidem, L.VI. (42) Ibidem, L.VI. (43) Ibidem, L.VI. (44) Ibidem, L.VI. (45) Ibidem, L.VII. (46) Ibidem, L.VII. (47) Ibidem, L. VII. (48) Ibidem, L. VII. (49) Ibidem, L. VII. (50) Ibidem, L. VII. (51) Ibidem, L. VII. (52) Ibidem, L. VII.