X.3.

A virtude da fé.

Consideremos, primeiramente, o que seja a fé, aquela virtude sem a qual, dizem as Sagradas Escrituras, "é impossível agradar a Deus" (Heb. 11, 6).

As Sagradas Escrituras dão a entender que a fé é um modo de conhecimento. De fato, na Epístola aos Hebreus pode-se ler que

"pela fé conhecemos
que o Universo recebeu a sua ordem
de uma palavra de Deus,
de modo que as coisas visíveis
não provieram das coisas sensíveis".

Heb.11,3

A mesma coisa também afirma S. Tomás de Aquino:

"Pela fé se inicia em nós a vida eterna,
pois a vida eterna nada mais é
do que conhecer a Deus.
De fato, diz o Senhor
no Evangelho de S. João:

`Esta é a vida eterna,
que te conheçam a Ti,
único Deus verdadeiro'.

Ora, este conhecimento de Deus
se inicia em nós pela fé"
(5).

De onde se deduz que, segundo o modo de falar das Sagradas Escrituras e o pensamento de S. Tomás de Aquino, a fé é um modo de conhecimento.

Dizemos, porém, que a fé é um modo de conhecimento para diferenciá-la de outros modos possíveis de conhecimento que não são fé. De fato, continua Tomás de Aquino, a fé importa num assentimento do intelecto àquilo que se crê (6). Mas há duas maneiras do intelecto assentir a algo:

"De um primeiro modo,
o intelecto pode assentir a algo
sendo movido pelo próprio objeto conhecido,
ou porque ele é conhecido por si mesmo,
como no caso do intelecto
dos primeiros princípios das demonstrações,
ou por meio de outro conhecimento,
como ocorre no conhecimento das conclusões,
conhecidas a partir dos princípios
de que foram demonstradas,
que é o que ocorre nas ciências.

Há, porém, outro modo pelo qual o intelecto
pode assentir a algo,
que é por uma eleição voluntária,
declinando-o a uma parte
mais do que a outra.
Se isto for feito mantendo todavia a dúvida
e a possibilidade de que a outra parte esteja correta,
teremos a opinião;
se, porém, se faz de modo certo
e sem receio de erro,
teremos a fé"
(7).

Deduz-se, destas palavras, que a fé é de fato um conhecimento, mas que difere dos demais conhecimentos porque não é alcançado através da evidência da própria coisa conhecida, mas por um assentimento movido pela vontade que aceita algo ser verdade porque Deus assim o revela (8). Aos demais conhecimentos somos movidos pela própria inteligência, por alguma evidência intelectiva imediata ou por redução a elas através do raciocínio; o conhecimento da fé, porém, difere de todos estes por não ser alcançado por uma evidência da própria inteligência, mas por um movimento da vontade.

É muito importante ressaltar este ponto, porque ainda há outros elementos pelos quais a fé, como conhecimento, difere dos demais conhecimentos, e que têm grande relevância para o tema que estamos abordando da contemplação.

Todos aqueles que têm fé conhecem como que naturalmente esta primeira diferença de que estamos falando, ainda que não a tenham estudado. Quando alguém se refere à posse de outros conhecimentos que não o da fé, sempre se referirá a eles utilizando expressões tais como "sei" ou "entendo tal ou qual coisa". Quando se trata, porém, de algo conhecido pela fé, não dizemos mais "eu sei", mas sim "eu creio", embora sejam tanto em um caso como em outro modos de conhecimento; ainda que quem assim se expresse possa não tê-lo percebido, a escolha diversa de expressão se dá porque quando alguém diz "eu creio" está incluindo na significado desta expressão, além do próprio conhecimento, um ato da vontade. É por isto que não conseguimos nos utilizar daquelas outras expressões como "eu sei" quando queremos descrever o conhecimento da fé; a expressão "eu sei" descreve uma forma de conhecimento que não implica em ato algum da vontade.

Desta maneira, da fé participam tanto a inteligência quanto a vontade. Sendo um conhecimento, porém, embora para que se realize tenha que haver uma participação da vontade, a fé pertence de modo próprio à inteligência. Crer é, de modo imediato, diz Tomás de Aquino na Summa Theologiae, um ato da inteligência, porque o objeto de seu ato é a verdade, que é algo que pertence de modo próprio ao intelecto, e não à vontade (9).

A fé enquanto conhecimento tem como objeto a Deus e as coisas que se ordenam a Deus, assim como o objeto do conhecimento que é a Medicina é a saúde e as coisas que se ordenam à saúde (10).

Diz também Hugo de São Vítor que

"As duas coisas em que maximamente
consiste a fé
são o mistério de Deus
e do Verbo Encarnado"
(11).

porque pela fé se inicia no homem a vida eterna, e, conforme a palavra de Cristo no Evangelho de São João,

"Nisto consiste a vida eterna,
que te conheçam a ti,
único Deus verdadeiro,
e aquele que enviaste,
Jesus Cristo".

Jo.17,3



Referências

(5) Expositio super Symbolum Apostolorum, Proêmio.
(6) Summa Theologiae, IIa IIae, Q.1 a.4.
(7) Idem, loc. cit..
(8) Idem, IIa IIae, Q.1 a.1.
(9) Idem, IIa IIae, Q.4 a.2.
(10) Idem, IIa IIae, Q.1 a.1.
(11) Hugo S. Vitor: Summa Sententiarum; L. I, c. 4; PL 176, 47.