TEXTO V

Carta de São Cipriano, bispo de Cartago,
e de outros 66 bispos do norte da África,
dirigida ao presbítero Fido, no ano 253 da Era Cristã


Explicação Introdutória.

Este é um texto muito importante, pois data de bem antes do Edito de Constantino, que em 313 aboliu as perseguições aos cristãos. São Cipriano era bispo de uma das cidades mais importantes do norte da África, e foi alguém que teve a oportunidade de testemunhar heroicamente sua fé em Cristo. Condenado à morte por se confessar cristão, pouco antes de morrer agradeceu ao carrasco que iria degolá-lo presenteando-o com o dinheiro que trazia consigo pela oportunidade que este lhe oferecia de colher a palma do martírio.

Consta que no ano de 253 Cipriano recebeu a notícia de que um presbítero chamado Fido, lendo que a Lei de Moisés preceituava que as crianças judias fossem circuncidadas no oitavo dia após o nascimento, começou também a batizar as crianças recém nascidas no oitavo dia após o nascimento. O fato era uma novidade na Igreja e, por isso, Cipriano, em uma reunião que houve entre os bispos do norte da África, dos quais ele era o principal, colocou a estranha prática em discussão.

Para apreciar a importância da decisão que então foi tomada, deve-se lembrar que aqueles eram ainda os tempos dos primórdios heróicos da Igreja em que, a exemplo de Cipriano, muitos cristãos não temiam senão a Deus e se ofereciam alegremente para dar a vida em testemunho da fé cristã, pessoas dispostas a qualquer sacrifício para obedecer às suas consciências e ao que Deus lhes pedisse. Aquela era ademais uma época em que a lembrança dos tempos apostólicos estava bem viva na Igreja e na qual ainda havia muitas pessoas que conheciam fatos ocorridos no tempo dos apóstolos não por tê-las lido, mas por terem passado de boca em boca desde as primeiras testemunhas oculares.

É portanto significativo, nestas circunstâncias, que nenhum dos sessenta seis bispos presentes, ao ouvir a prática do presbítero Fido de batizar as crianças no oitavo dia, tivesse afirmado, indignado, que jamais se tivesse ouvido na Igreja que se devessem batizar as crianças ou que esta fosse uma prática que devesse ser condenada. Nenhum deles também fêz qualquer afirmação no sentido de que na época dos apóstolos houvesse alguma ordem pela qual somente os adultos devessem ser batizados. Ao contrário, os bispos responderam unanimemente ao presbítero Fido que ele não inventasse novos costumes e que batizasse as crianças assim que tivessem nascido, pois elas corriam o risco de falecer antes do oitavo dia e o batismo lhes era necessário para a sua salvação.

Igualmente significativo foi que esta decisão dos bispos africanos depois circulou livremente em toda a Igreja e não consta que alguém a tivesse condenado sob a alegação de que na época dos apóstolos não se batizavam as crianças e a que decisão dos bispos africanos fosse um desvio da doutrina original.

Esta carta do concílio dos bispos africanos do terceiro século, é, portanto, um testemunho eloqüente de que sempre e em todo o lugar, desde os primórdios da Igreja, batizaram-se as crianças, sem que tivesse havido protestos de que esta prática pudesse ser contrária aos ensinamentos dos apóstolos.



Texto da Carta de Cipriano e outros sessenta e seis bispos ao
presbítero Fido, conforme se acha na Patrologia Latina de Migne.

"Cipriano e os demais colegas, que em número de sessenta e seis se reuniram em concílio, desejam saúde ao irmão Fido.

Lemos a tua carta, irmão caríssimo. Quanto ao que diz respeito ao caso das crianças, das quais disseste que não devem ser batizadas no segundo ou terceiro dia após o nascimento, devendo-se considerar a lei antiga da circuncisão, de tal modo que não julgas dever ser batizada e santificada antes do oitavo dia aquele que nasceu, muito diversamente pareceu isto a todos os reunidos em nosso concílio. Nisto que tu pensas que se deve fazer ninguém concordou; ao contrário, todos nós julgamos que a nenhum homem nascido deve ser negada a misericórdia da graça de Deus.

Pois como o Senhor no seu Evangelho diz:

"O Filho do Homem não veio perder as almas dos homens, mas salvá-las",

o quanto está em nós, se puder ser feito, nenhuma alma deve ser perdida.

Por causa disso julgamos que ninguém deve ser impedido de alcançar a graça por aquela lei outrora estabelecida [por Moisés de circuncidar as crianças só no oitavo dia], nem a circuncisão espiritual deve ser impedida pela circuncisão carnal, mas todo homem deve ser admitido à graça de Cristo, conforme Pedro nos diz nos Atos dos Apóstolos:

"O Senhor me revelou que nenhum homem deve ser considerado impuro".

Ademais, se algo pudesse impedir os homens de alcançarem a graça, os pecados mais graves poderiam impedir os mais adultos e desenvolvidos. Ao contrário, porém, se mesmo aos mais graves e delinqüentes, e aqueles que muito pecaram diante de Deus, vindo posteriormente a acreditar, se lhes oferece a remissão dos pecados e a nenhum deles se lhe proíbe a graça do batismo, quanto mais não se o deve proibir à criança, que, ainda recém nascida, em nada pecou, a não ser na medida em que, nascida de Adão segundo a carne, contraíu o contágio da morte antiga pelo primeiro nascimento, e que por isso mesmo mais facilmente se aproxima da remissão dos pecados porque lhe são perdoados não os pecados próprios, mas os alheios.

E, portanto, irmão caríssimo, esta foi a nossa sentença neste concílio, que ninguém deve ser proibido do batismo e da graça de Deus, o qual é misericordioso, benigno e piedoso para com todos. Coisa que, devendo ser observada a guardada para com todos, mais ainda julgamos que o deve ser para com as próprias crianças e os recém nascidos, que mais o merecem de nossas obras e da misericórdia divina, os quais desde o primeiro momento de seu nascimento gritando e chorando nada mais fazem do que o rogar.

Desejamos a ti, irmão caríssimo, que sempre passes bem".