QUINTA PARTE



ANTÃO, TAUMATURGO DE DEUS E MÉDICO DAS ALMAS.

83.

Tal é a história de Antão. Não deveríamos ser cépticos por se terem sucedido esses grandes milagres por intermédio de um homem, pois tal é a promessa do Salvador:

"Se tiverem fé, ainda que seja como um grão de mostarda, dirão a este monte:

'Passa-te daqui para lá',

e ele passará; nada lhes será impossível".

Mt. 17, 20

E também:

"Em verdade lhes digo: tudo o que pedirem ao Pai em meu Nome,
Ele lhes dará... Peçam e receberão".

Jo. 16, 23s

É Ele quem diz a seus discípulos e a todos os que Nele crêem:

"Curem os enfermos... lancem fora os demônios;
de graça o receberam, de graça devem dá-lo"

Mt. 10, 8

84.

Antão, pois, curava, não dando ordens, mas orando e invocando o nome de Cristo, de modo que para todos era claro que não era ele quem atuava, mas o Senhor, que mostrava seu amor pelos homens curando aos que sofriam, por intermédio de Antão. Este ocupava-se apenas da oração e da prática da ascese, e por esta razão levava sua vida na montanha, feliz na contemplação das coisas divinas, e pesaroso de que tantos o pertubassem e o forçassem a sair à Montanha Exterior.

Os juízes, por exemplo, rogavam-lhe que descesse da montanha já que para eles era impossível ir lá, devido ao grande número de gente envolta em pleitos. Pediram-lhe que fosse a eles para que pudessem vê-lo. Ele procurou livrar-se de viagens e rogou-lhes que o dispensassem de fazê-la. Eles no entanto insistiram, e mesmo mandaram-lhe réus com escolta de soldados, para que em consideração a eles se decidisse a descer. Sob tal pressão, e vendo-os lamentar-se, foi à Montanha Exterior. De novo, o incômodo que teve não foi em vão, pois ajudou a muitos e sua presença foi um verdadeiro benefício. Ajudou os juízes, aconselhando-os a que dessem à justiça precedência sobre tudo o mais, que temessem a Deus e que se recordassem de que

"seriam julgados com a mesma medida com que julgassem"

Mt. 7, 2

Amava, porém sua vida montanhesa acima de tudo.

85.

Uma vez importunado por pessoas que necessitavam de ajuda, e solicitado pelo comandante militar que enviou mensageiros a pedir-lhe que descesse, foi e falou algumas palavras acerca da salvação e a favor dos necessitados, e logo apressou-se a ir embora. Quando o duque, como o denominavam, rogou-lhe que ficasse, respondeu que não podia passar mais tempo com eles e o satisfez com esta bela comparação:

"Assim como um peixe morre quando fica algum tempo em terra seca,
assim também os monges se perdem
quando se tornam folgazões e passam muito tempo com vocês.
Por isso, temos que voltar à montanha, como um peixe à água.
De outro modo, se nos entretemos, podemos perder de vista a vida interior".

O comandante ao ouvir isto e muitas coisas mais, reconheceu admirado que era verdadeira mente servo de Deus, pois como poderia um homem ordinário ter uma inteligência tão extraordinária se não fosse amado por Deus?

86.

Havia uma vez um comandante, Balácio ora seu nome, que como partidário dos execráveis arianos perseguia duramente os cristãos. Em sua barbárie chegava até a espancar as virgens e desnudar e açoitar os monges. Antão enviou-lhe por isso uma carta dizendo-lhe o seguinte:

"Vejo que o juízo de Deus se aproxima de ti;
deixa pois de perseguir os cristãos, para que não te surpreenda o juízo;
agora está a ponto de cair sobre ti".

Balácio entretanto pôs-se a rir, jogou a carta no chão e nela cuspiu; maltratou os mensageiros e ordenou-lhes que levassem a Antão a seguinte mensagem:

"Vejo que estás preocupado pelos monges; virei também a ti".

Não haviam cinco dias passado quando o juízo de Deus caiu sobre ele. Balácio e Nestório, prefeito do Egito, haviam saído pela primeira estação fora de Alexandria, chamada Chereu; ambos iam a cavalo. Os cavalos pertenciam a Balácio, e eram os mais mansos que ele tinha. Ainda não haviam chegado, quando os cavalos, como costumam fazer, começaram a retouçar um contra o outro, e de repente o mais manso dos dois, cavalgado por Nestório, mordeu Balácio, lançou-o por terra e o atacou. Rasgou-lhe de tal forma o músculo com seus dentes, que tiveram de levá-lo de volta à cidade, onde morreu depois de três dias. Todos se admiraram de que se cumprisse tão rapidamente o que Antão predissera.

87.

Assim se encarmentaram os duros. Quanto aos demais que recorriam a ele, suas íntimas e cordiais conversações faziam-nos esquecer imediatamente os litígios e os levavam a considerar felizes os que abandonavam a vida do mundo. De tal modo lutava pela causa dos ofendidos que se podia pensar ser ele mesmo e não outros a parte agravada. Tinha além disso tal dom para ajudar a todos, que muitos militares e homens de grande influência abandonavam sua vida onerosa e faziam-se monges. Numa palavra, era como se Deus houvesse dado um médico ao Egito. Quem recorreu a ele na dor sem voltar com alegria? Quem chegou chorando por seus mortos e não se libertou imediatamente de seu pesar? Houve alguém que chegasse com ira e não a transformasse em amizade? Quem pobre arruinado foi a ele, e ao vê-lo e ouvi-lo não desprezou a riqueza, sentindo-se consolado em sua pobreza? Que monge negligente não ganhou novo fervor ao visitá-lo? Que jovem, chegando à montanha e vendo Antão, não renunciou logo ao prazer, começando a amar a castidade? Quem se lhe acercou atormentado por um demônio e não foi liberto? Quem chegou com a alma atormentada e não encontrou a paz do coração?

88.

Era algo único, na prática ascética de Antão, ter ele, como já foi dito, o dom do discernimento dos espíritos. Reconhecia seus movimentos e sabia muito bem em que direção seu esforço e ataque levava cada um deles. Não só ele próprio não foi enganado, mas alentando a outros que eram fustigados em seus pensamentos, ensinou-lhes como resguardar-se de seus desígnios, descrevendo a debilidade e os ardis dos espíritos que praticavam a possessão. Assim cada um se ia como que ungido por ele e cheio de confiança para a luta contra os desígnios do diabo e de seus demônios.

E quantas jovens, que tinham pretendentes, mas que viram Antão só de longe, e permaneceram virgens por Cristo. Muita gente chegava a ele de terras estranhas, e também eles recebiam ajuda como os demais, voltando como enviados em seu caminho por um pai. E em verdade, agora que já se foi, todos, como órfãos de pai, se consolam e se confortam só com sua recordação, guardando ao mesmo tempo com carinho suas palavras de admoestação e de conselho.



MORTE DE ANTÃO.

89.

Este é o lugar para que eu lhes conte e vocês ouçam, já que desejosos disto, como foi o fim de sua vida, pois também nisto foi modelo digno de imitação.

Segundo seu costume, visitava os monges na Montanha Exterior. Recebendo, da Providência, uma premonição de sua morte, falou aos irmãos:

"Esta é a última visita que lhes faço e me admiraria se nos voltássemos a ver nesta vida.
Já é tempo de morrer, pois tenho quase cento e cinco anos".

Ao ouvir isto, puseram-se a chorar, abraçando e beijando o ancião. Ele porém, como se tivesse de partir de uma cidade estranha à sua própria, continuou falando alegremente. Exortava-os a

"não se relaxarem em seus esforços,
nem a se desalentarem na prática da vida ascética,
mas a viver como se tivessem de morrer a cada dia"

e, como disse antes,

"a trabalhar duramente
a fim de guardar a alma limpa de pensamentos impuros,
e a imitar os homens santos".

"Não se aproximem dos cismáticos melecianos, pois já conhecem seu ensinamento ímpio e perserso. Não se metam para nada com os arianos, pois sua irreligião é clara para vocês. E se vêem que os juízes os apoiam, não se deixem confundir: isto se acabará, é um fenômeno mortal, destinado a seu fim em pouco tempo. Por isso, mantenham-se limpos de tudo isto e observem a tradição dos Padres e, sobretudo, a fé ortodoxa em Nosso Senhor Jesus Cristo, como aprenderam das Escrituras e eu tão frequentemente o recordei".

90.

Quando os irmãos instaram para que ficasse com eles, até morrer, ali, recusou-se a isto por muitas razões, segundo disse, embora sem indicar nenhuma. Especialmente era por isto: os egípcios têm o costume de honrar com ritos funerários e envolver em sudários de linho os corpos dos homens santos e particularmente dos santos mártires, mas não os enterram: colocam-nos sobre divãs e os guardam em suas casas, pensando honrar o defunto deste modo. Antão pediu muitas vezes, inclusive aos bispos, que dessem instruções ao povo sobre este assunto. Ao mesmo tempo envergonhou os leigos e reprovou as mulheres, dizendo que

"isto não era correto nem reverente, em absoluto.
Os corpos dos patriarcas e dos profetas se guardam em túmulos até estes dias;
e o corpo do Senhor também foi depositado num túmulo
e puseram uma pedra sobre ele (Mt. 27, 60),
até que ressuscitou ao terceiro dia".

Ao expor assim as coisas, demonstrava que cometia erro o que não dava sepultura aos corpos dos defuntos, por santos que fossem. E em verdade, quem maior ou mais santo que o corpo do Senhor? Como resultado, muitos que o ouviram começaram desde então a sepultar seus mortos, e deram graças ao Senhor pelo bom ensinamento recebido.

91.

Sabendo disto, Antão teve modo de que fizessem o mesmo com seu próprio corpo. Por isso, despedindo-se dos monges da Montanha Exterior, apressou-se para a Montanha Interior, onde costumava viver. Depois de poucos meses, caiu doente. Chamou os que o acompanhavam, havia dois que levavam vida ascética havia quinze anos e se preocupavam com ele devido à sua idade avançada, e lhes disse:

"Vou-me pelo caminho de meus pais, como diz a Escritura (I Rs. 2, 2; Jos. 23, 14), pois me vejo chamado pelo Senhor. Quanto a vocês, estejam vigilantes e não façam tábula rasa da vida ascética que tanto tempo praticaram. Esforcem-se por manter seu entusiasmo como se estivessem começando agora. Já conhecem os demônios e seus desígnios; conhecem também sua fúria e também sua incapacidade. Assim, pois, não os temam; deixem antes que Cristo seja o alento de sua vida e ponham nele sua confiança.

Vivam como se cada dia tivessem de morrer, fazendo atenção a si mesmos e recordando tudo o que ouviram de mim. Não tenham nenhuma comunhão com os cismáticos e absolutamente nada com os hereges arianos. Sabem como eu mesmo me guardei deles devido à sua pertinaz heresia contra Cristo. Sejam ansiosos em manifestar sua lealdade, primeiro a Cristo e depois a seus santos, para que depois de sua morte eles os recebam nas moradas eternas (Lc. 16, 9), como a amigos familiares. Gravem este pensamento, tenham-no como propósito.

Se vocês realmente se preocupam comigo e me consideram como pai, não permitam que ninguém leve meu corpo para o Egito; não aconteça que me guardem em suas casas. Foi esta razão que trouxe para cá, à montanha. Sabem como sempre confundi os que fazem isto e os intimei a deixar tal costume. Por isso, façam-me vocês mesmos os funerais e sepultem meu corpo na terra, e respeitem de tal modo o que lhes disse, que ninguém senão vocês saibam o lugar. Na ressurreição dos mortos, o Salvador me devolverá incorruptível.

Distribuam minha roupa. Ao bispo Atanásio dêem uma túnica e o manto em que estou, e que ele mesmo me deu, mas que se gastou em meu poder; ao bispo Serapião dêem a outra túnica, e vocês podem ficar com a camisa de pelo. E agora meus filhos, Deus os abençoe. Antão parte e não está mais com vocês".

92.

Depois de dizer isto e de que eles o houvessem beijado, estendeu os pés, seu rosto estava transfigurado de alegria e seus olhos brilhavam de regozijo como se visse amigos vindos a seu encontro; e assim faleceu e foi reunir-se a seus pais. Eles então, seguindo as ordens que lhes havia dado, prepararam e envolveram o corpo e o sepultaram aí na terra. E até o dia de hoje ninguém, exceto esses dois, sabe onde está sepultado. Quanto aos que receberam as túnicas e o manto usados pelo bem-aventurado Antão, cada um guarda seu presente como grande tesouro. Olhá-los é ver Antão e pô-los é como revestir-se de suas exortações com alegria.

93.

Este foi o fim da vida de Antão no corpo, como antes tivemos o começo de sua vida ascética. E ainda que seja um pobre relato comparado com a virtude do homem, recebam-no, entretanto, e reflitam que classe de homem foi Antão: o varão de Deus. Desde sua juventude até uma idade tão avançada conservou uma devoção inalterável à vida ascética. Nunca tomou a velhice como desculpa para ceder ao desejo de abundante alimentação, nem mudou sua forma de vestir, pela debilidade de seu corpo, nem tampouco lavou seus pés com água. E, no entanto, sua saúde se manteve totalmente sem prejuízo. Por exemplo, mesmo seus olhos eram perfeitamente normais, de modo que sua vista era excelente; não havia perdido nem um só dente; só se haviam gasto as gengivas pela grande idade do ancião. Manteve mãos e pés sãs, e em tudo aparecia com melhores cores e mais fortes do que os que têm uma dieta diversificada, banhos e variedade de roupas.

O fato de chegar a ser famoso em todas as partes, de ter encontrado admiração universal e de que sua perda foi sentida por pessoas que nunca o viram, sublinha sua virtude e o amor que Deus lhe tinha. Antão ganhou renome, não por seus escritos nem por sabedoria de palavras, nem por nenhuma outra coisa, senão só por seu serviço a Deus.

E ninguém pode negar que isto é um dom de Deus. Como explicar, efetivamente, que este homem, que viveu escondido em uma montanha, fosse conhecido em Espanha e Gália, em Roma e África, senão por Deus, que em toda parte faz conhecidos seus, que, mais ainda, o havia dito a Antão em seus começos? Pois ainda que façam suas obras em segredo e desejem permanecer na obscuridade, o Senhor os mostra publicamente como lâmpadas a todos os homens (Mt. 5, 16), e assim, os que ouvem falar deles podem aperceber-se de que os mandamentos levam à perfeição, e então se encorajam pela senda que conduz à virtude.



EPÍLOGO.

94.

Agora, pois, leiam isto aos demais irmãos, para que também eles aprendam como deve ser a vida dos monges, e se convençam de que nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo glorifica aos que o glorificam. Ele não só conduz ao reino dos Céus os que o servem até o fim, mas, ainda que se escondam e façam o possível por viver fora do mundo, faz com que em toda parte sejam conhecidas e se fale deles, por sua própria santidade e pela ajuda que dão a outros. Se a ocasião se apresenta, leiam-no também aos pagãos, para que ao menos deste modo possam aprender que Nosso Senhor Jesus Cristo é Deus e filho de Deus, e que os cristãos, que o servem fielmente e mantém sua fé ortodoxa nele, demonstram que os demônios, considerados deuses pelos pagãos, não o são, mas antes os calquem aos pés e afungentem pelo que são: enganadores e corruptores de homens.

Por Nosso Senhor Jesus Cristo, a quem seja dada a glória pelos séculos. Amém.