Questão Ducentésima Trigésima Oitava.

Das coisas que se realizam dentro do tempo origina-se uma mesma dificuldade. Costuma-se questionar, de fato, por que Deus confere a graça mais a este do que àquele, se são indiferentes, e nenhum dos dois pode merecer a graça, sem a qual não é possível a salvação. Efetivamente, parece que se a graça não me foi concedida, não se deve imputar a mim se eu não faço o que sem a graça não posso fazer; parece que deveria mais ser imputado a quem não me concedeu a graça necessária, não o podendo sem o seu detrimento.

Solução.

Sobre a graça diversos pensam diversamente. Alguns dizem Deus não poder fazer senão aquilo que faz, o que, porém, consta com certeza não ser verdade.

Outros dizem que há nesta pessoa alguma virtude seminal, à qual chamam de raiz da caridade, pela qual este se torna apto para que, pela graça que lhe é concedida, mereça a vida eterna, e que aquele que não a possui não pode merecer nem a caridade nem a vida eterna. Esta posição, porém, é contrária a todo o ensinamento da Igreja, pelo que deve ser abandonada.

Outros dizem que Deus de modo comum propõe a sua graça a todos e que, aqueles que a apreendem, estes se salvam; os que, porém, não a apreendem, são condenados. Seria como se alguém tendo preparado em uma torre um bom alimento para ti e dissesse: "Sobe aqui para tomares alimento". Tu, porém, por não teres escada ou algum outro auxílio do gênero, não podes subir; e por isso estes dizem que deve haver o concurso de outra graça, para que possas subir àquela graça superior. Mas novamente, para apreender esta será necessária outra, e para apreender esta outra será necessária outra mais ainda, e assim até o infinito. Os que defendem esta posição atribuem tudo à graça, nada deixando ao mérito.

Há também outros que dizem que o homem deve inclinar-se para a graça posposta para que ele possa apreendê-la, sem cuja apreensão ele não poderá erguer-se. Seria como se a alguém que esteja em um poço se lhe estendesse uma corda, sem a qual não lhe seria possível sair do poço. Se este homem se inclinar em direção à corda e a segurar, será tirado do poço, de modo que nisto requereria-se algo por parte do homem, ainda que o mérito não pudesse ser sem a graça. Esta sentença, porém, divide entre o mérito e a graça, de tal modo que algo de bom haveria ali do homem, isto é, pelo menos que levantasse a mão e segurasse a corda, o que, (na realidade, até mesmo isto) não se pode fazer sem a graça. Por este motivo esta outra sentença também deve ser evitada, juntamente com as anteriores.

Pode-se, porém, dizer que a graça de Deus é proposta igualmente ao bom e ao mau, isto é, ao predestinado e ao réprobo, a qual, todavia, um não a apreende e o outro, trazendo-a, segue-a. Aquele, ao qual o raio da graça é infundido, fecha os olhos e, deste modo, se repele o raio pelo qual é tocado, merecidamente a graça lhe é subtraída, porque ele mesmo se subtrai. Ocorre, de fato, com a graça, algo como no raio do Sol quando penetra no olho. O olho exerce a visão quando é tocado pelo raio do Sol; o olho é de tal natureza que a visão é exercida por este raio se for por ele tocado, sem o que não há visão no olho. Se o olho não fosse de tal natureza, mesmo tocado pelo raio do Sol nada veria, como ocorre com as paredes ou as pedras que nada vêem mesmo que sejam copiosamente banhadas pelos raios do Sol. Assim também a alma possui uma potência natural para merecer, a qual, porém, não pode ser exercida se não for banhada pelo esplendor da graça. Tocada, porém, por ela, move-se e merece. De onde que tudo provém da graça, de tal modo, porém, que não se exclui o mérito. Seria como o caso de uma criança que ainda não pudendo caminhar fosse conduzida por alguém e efetivamente então caminhasse, o que, porém, não poderia fazê-lo por si mesma, nem também por meio de outro que a conduzisse, se não possuísse uma potência natural para o caminhar. Todavia, neste exemplo, se ela caminha, tudo é dito proceder do que a conduz. Assim, para que a alma possa merecer, duas coisas são exigidas, que são a graça e a potência natural; mas toda a autoridade de merecer é apenas da graça, porque a potência natural nada colocar sem a graça.



Questão Ducentésima Quadragésima Sexta.

Diz o Apóstolo:

"Que diremos, pois?
Que os gentios,
que não seguiam a justiça,
abraçaram a justiça,
a justiça, porém,
que procede da fé".

Rom. 9, 30

Pergunta-se o que significa a justiça proceder da fé.

Solução.

Significa a justiça proceder da graça, porque não somente pela graça se alcança a fé, mas também após a fé a graça é necessária, para que a fé se cumpra pelas boas obras, cujo cumprimento é dito justiça.



Questão Ducentésima Quinquagésima Terceira.

Diz também o Apóstolo:

"Mas Israel,
que seguia a lei da justiça,
não chegou à lei da justiça.
Dou testemunho de que eles têm zelo,
ou emulação de Deus,
mas não segundo a ciência".

Rom. 9,31; 10,2

Pergunta-se se este zelo é bom, em que consiste, e qual é o seu efeito. Consta que seja bom porque o Apóstolo o menciona em recomendação dos judeus, e os chama também de emuladores, ou que implica no amor de Deus; mas se assim fosse, pareceria que eles teriam algo que seria digno da vida eterna. No entanto, não eram dignos de morte, por terem morto a Cristo? Como, portanto, poderiam possuir o zelo de Deus, isto é, o seu amor? Ademais, se este zelo fosse bom, teria um efeito bom; não foi, porém, efeito de seu zelo o que fizeram por causa deste zelo? Mas a perseguição dos mártires era pecado mortal, assim como também o foi a morte de Cristo. Como, portanto, o que era bom fazia o mal?

Solução.

Este zelo foi um bom afeto para com Deus, pelo qual estavam prontos a fazer aquilo que a sua consciência lhes ditava que deveria ser feito por causa de Deus. Todavia, não era tanto que os tornasse dignos da vida eterna, não devendo ser chamado de caridade nem de amor de Deus absolutamente entendido. Se, às vezes, é chamado de amor, isto é porque tratava-se de um zelo para com Deus, e o seu efeito não foi a perseguição dos mártires, nem a morte de Cristo, mas o evitar o desprezo de Deus. Estavam, de fato, colocados em uma situação difícil e apertada, e tanto se matassem ou se não matassem a Cristo pecariam mortalmente. Se não matassem a Cristo não pecariam por não te-lo morto, mas porque não o matando, desprezariam a Deus; sucede freqüentemente, de fato, que por um pecado evita-se outro.



Questão Ducentésima Quinquagésima Quarta.

À questão anterior pode-se, então, objetar que matando a Cristo não operavam contra a consciência. Ao contrário, faziam aquilo que criam dever ser feito por causa de Deus. Como, portanto, poderiam estar pecando?

Solução.

Ainda que não operassem contra a consciência, todavia pecavam mortalmente, porque estavam cegados; fizeram, de fato, aquilo que a sua consciência lhes deveria ter ditado que não deveriam fazer.



Questão Ducentésima Sexagésima Sexta.

Diz o Apóstolo:

"Também agora
aqueles que foram reservados
foram salvos
segundo a escolha da graça.
E se foi pela graça,
não foi pelas obras
de outra sorte a graça já não é graça".

Rom. 11, 5-6

Pergunta-se se tudo provém da graça, o que procede dos méritos? Ou se algo provém do mérito, como pode tudo ser proveniente da graça?

Solução.

Tudo procede da graça, embora algo proceda dos méritos, porque os próprios méritos são provenientes da graça.

Objeção à Solução da Questão
Ducentésima Sexagésima Sexta.

Parece, porém, que a justiça provenha de méritos precedentes, como pode ser visto no caso do centurião Cornélio, narrado no décimo de Atos. Suas orações obtiveram- lhe que pela pregação de Pedro se convertesse e recebesse a fé. Esta fé proveio da graça, mas a graça foi alcançada pelas obras.

Solução.

Não se pode dizer que a graça ou a justiça provenha das obras pois, se assim fosse, o homem poderia justificar-se pelas obras sem a graça, o que não pode ser. Ora, o fato de Cornélio ter orado para que recebesse a fé isto já sucedia por causa de uma graça precedente, pela qual lhe foi também concedida uma graça maior, que foi a graça justificante. Não foi, de fato, inteiramente sem a graça que ele creu em um só Deus e, como dizem os doutores, possuía fé na Encarnação, embora ainda não soubesse que o Verbo se tivesse encarnado, o que veio a saber depois pela pregação de Pedro.

Deve-se notar que uma é a compunção da inveja, pela qual alguém se compunge, se aflige e se consome por causa dos bens alheios; outra é a compunção da culpa pela qual alguém é atormentado na própria consciência, como Judas, que se enforcou no laço pelo seu crime. Outra, finalmente, é a compunção da graça, que ou é a dos principiantes, que se arrependem dos males para que deles se abstenham, ou é a dos perfeitos, que reverenciam a Deus por amor.



Questão Ducentésima Octogésima.

Diz o Apóstolo:

"Porque dEle, e por Ele,
e nEle são todas as coisas,
a Ele a glória pelos séculos".

Rom. 11, 36

Pergunta-se se os pecados, na medida em que são, procedem de Deus. Se, de fato, "dEle, por Ele e nEle são todas as coisas", também os pecados o serão, ou então os pecados não pertencem ao número de todas as coisas.

Solução.

Alguns dizem que os pecados, na medida em que são, possuem seu ser procedente de Deus. Mas Santo Agostinho diz sobre a natureza do bem que quando se diz que todas as coisas procedem de Deus deve-se por isto entender somente as coisas que são por modo de natureza, e não os pecados, que corrompem a natureza. Os pecados, portanto, de nenhum modo são procedentes de Deus.



Questão Ducentésima Octogésima Primeira.

Pergunta-se se todas as coisas que possuem ser procedente de Deus devem ser ditas ser de Deus.

Solução.

Somente as coisas que possuem ser da substância divina devem ser ditas de Deus, como o Filho e o Espírito Santo são assim de Deus Pai, pois são dele, porque são de sua essência e consubstanciais a Ele. As criaturas, porém, que procedem de Deus, não são da substância divina, mas do nada.

Note-se que, na questão anterior, ao se dizer "dEle, por Ele e nEle", as preposições "de", "por" e "em", em Latim "ex", "per" e "in", insinuam a trindade das pessoas, enquanto que pelo mesmo pronome "Ele" significa-se a identidade da natureza, que está inteiramente presente em cada uma das pessoas singulares. Dizendo-se, de fato, "de quem" ou "ex quo", entende-se o Pai; "por quem" ou "per quem", entende-se o Filho; e "em quem" ou "in quo", entende-se o Espírito Santo.



Questão Ducentésima Octogésima Segunda.

Pergunta-se como, ao se dizer que "dEle são todas as coisas", entende-se (a pessoa) do Pai, se assim como do Pai são todas as coisas, assim também do Filho e do Espírito Santo?

Solução.

Por causa da autoridade do princípio, porque assim como todas as coisas possuem ser do Pai, o qual não o possui de outro, o Filho, porém, e o Espírito Santo, ainda que sejam um só princípio de todas as criaturas, possuem, todavia, como princípio ou autor o próprio Pai, "a quo", isto é, "procedente do qual", possuem ser, e o próprio serem princípio de tudo o possuem "a Patre", isto é, "procedente do Pai", assim como todas as demais coisas que possuem.

O Comentador diz que na Trindade encontra-se a suma origem de todas as coisas, a perfeitíssima beleza, a beatíssima deleitação, referindo a origem ao Pai, a beleza ao Filho e a deleitação ao Espírito Santo. Deste modo estas três coisas, a origem, a beleza e a deleitação são determinadas porque cada uma se refere determinadamente a cada uma das pessoas, conforme já foi dito. Mas porque toda a Trindade, por sua vez, é a suma origem de todas as coisas, perfeitíssima beleza e beatíssima deleitação, estas mesmas três são ditas infinitas. E isto é o que significa, conforme penso, o que se diz quando se afirma que estas três coisas são mutuamente determinadas entre si e infinitas em si.



Questão Ducentésima Octogésima Sexta.

Pergunta-se, ademais, como o Espírito Santo seja o amor pelo qual o Pai ama o Filho, e o Filho ama o Pai. Porventura não é o mesmo para o Pai amar e ser e aquilo pelo qual possui o ser e o amar? Se, portanto, o Pai ama pelo Espírito Santo, como não se poderá dizer que o Pai possui o ser procedente do Espírito Santo?

Solução.

Não se diz que o Pai ama pelo Espírito Santo, mas que o Espírito Santo é o amor pelo qual o Pai ama o Filho; porque o Espírito Santo é pela natureza divina, e o Pai ama pela natureza divina. Se, portanto, este termo, o amor pelo qual o Pai ama o Filho, significa um idioma pessoal, (isto é, algo próprio da Pessoa), não é verdade que o Espírito Santo é o amor pelo qual o Pai ama, assim como o Espírito Santo não é o Pai.



Questão Tricentésima Segunda.

Diz o Apóstolo:

"Aquele que ama o próximo,
cumpriu a Lei".

Rom. 13, 8

Pergunta-se se o amor do próximo e o amor de Deus são o mesmo.

Se não são o mesmo, como o amor do próximo é a plenitude da Lei? Como toda a lei é restaurada no amor do próximo? Como os três preceitos da primeira tábua, que dizem respeito a Deus, se cumprem no amor do próximo?

Por outro lado, se um e outro são o mesmo, por que foram dados separadamente um preceito do amor a Deus e outro preceito do amor ao próximo?

Solução.

O amor é nome de uma virtude e assim pode ser dito que o mesmo é o amor pelo qual amamos a Deus e ao próximo. É também nome de um movimento da mente, e neste sentido um é o amor de Deus e outro é o amor do próximo, e o amor de Deus é maior do que o amor do próximo, porque o amor de Deus está contido no amor do próximo. Quem, de fato, ama a Deus, por conseqüência ama ao próximo e inversamente; por conseguinte, coloca-se um movimento pelo outro. O amor do próximo, de fato, é um movimento da mente ao próximo por causa de Deus; como, portanto, pode haver amor ao próximo sem amor de Deus? O amor do próximo é, de fato, uma certa matéria na qual se exerce o amor de Deus, o qual é mais escondido e cujo afeto se manifesta mais abertamente no amor do próximo. O amor de Deus é um movimento da mente para Deus por causa dEle mesmo.



Questão Tricentésima Terceira.

Mas, se o amor de Deus é mais digno do que o amor do próximo, por que o Apóstolo recordou preferencialmente o amor do próximo em vez do amor de Deus, dizendo que aquele é o cumprimento da Lei?

Solução.

Porque o amor do próximo é mais manifesto na vida quotidiana e nos costumes.



Questão Tricentésima Quarta.

Pergunta-se se o amor do próximo possa ser sem o amor de Deus. Pois parece que pode, porque alguém pode amar o próximo não por causa de Deus, mas por causa de alguma outra coisa.

Solução.

Não se deve conceder que alguém ame o próximo, a não ser que o ame por causa de Deus. Amar diversamente não é amar, antes, é mais propriamente odiar, porque, conforme diz o Salmista,

"Quem ama a iniqüidade,
odeia a sua alma".

Salmo 10, 5

Deste modo, não pode amar o seu semelhante quem a si mesmo odeia.



Questão Tricentésima Quinta.

Pergunta-se, ademais, se devemos amar-nos mutuamente por causa da vida eterna. Se o concedemos, porém, parece que o fazemos por causa de nossa comodidade e, deste modo, somos mercenários. Diz, de fato, Santo Ambrósio, que aquele que serve pela esperança e pelo desejo da pátria celeste é mercenário.

Solução.

O próximo deve ser amado por causa da vida eterna e não é por isso que antepomos algo a Deus, porque Deus mesmo é a própria vida eterna, e nEle não há algo fora dEle além dEle mesmo. Por este motivo, não convém ampliar o sentido das mencionadas palavras de Santo Ambrósio fora de seu contexto, pois passam a soar de modo diverso do uso da Igreja. Santo Ambrósio, ao contrário, parece sugerir que se alguém julgasse que a vida eterna fosse algo distinto e além do próprio Deus e fizesse o bem visando apenas a sua própria comodidade, não porque Deus assim desejasse que seja feito, este alguém deveria ser chamado de mercenário.



Questão Tricentésima Sétima.

Pergunta-se em que lugar foi-nos preceituado como o homem deve amar a si mesmo.

Solução.

Quando se ensina ao homem como se deve amar a Deus, nisto mesmo lhe é ensinado como o homem deve amar a si mesmo.

O que é, de fato, amar a si mesmo, senão amar o seu próprio bem?

Qual é, porém, o bem do homem, senão Deus?

Quem, portanto, ama a Deus, nisto mesmo ama a si próprio. E o quanto amar a Deus, tanto amará a si mesmo.



Questão Tricentésima Oitava.

Pergunta-se se o homem deve somente amar o próximo como a si mesmo. Pois, de fato, está escrito:

"Amarás o teu próximo
como a ti mesmo".

Mt. 22, 39

Solução.

Assim como a semelhança designa, segundo alguns, não a quantidade, quando se diz

"Ama ao próximo
como a ti mesmo",

isto significa "ao mesmo que para ti desejas", ou seja, para que ele venha a possuir a Deus, e entrega-te o quanto possas à obra para que ele possa fazer o que é preciso para que se salve. Não será necessário repetir o que já dissemos acima sobre a caridade. Não todas as coisas podem ou devem ser ditas em todo lugar.