01. |
Nas notas anteriores examinamos o surgimento da sofística entre os gregos, a qual, embora tivesse se iniciado já antes de Parmênides, tomou o seu grande impulso depois da visita que este filósofo e seu discípulo Zenão fizeram a Atenas. Tínhamos já visto a acolhida que Sócrates havia dado a Parmênides e a Zenão. Tivemos depois a oportunidade de examinar como foi a acolhida dada a estes por parte dos atenienses, e como os sofistas passaram a se valer das técnicas de argumentação destes filósofos italianos para desenvolverem suas próprias técnicas de argumentação e oratória com o fim de ensinar aos outros a arte de convencer as multidões. |
02. |
O encontro de Sócrates com Parmênides e Zenão é um dos primeiros fatos históricos que temos a respeito de sua vida. Entre este encontro e a época do fim da guerra do Peloponeso, um período de aproximadamente 50 anos, encontra-se a maior parte da vida ativa de Sócrates. |
03. |
Ao contrário dos filósofos pré-socráticos, que escreveram diversas obras, mas que se perderam, Sócrates não escreveu nada. O que sabemos sobre ele é fruto principalmente de dois dos seus principais discípulos, chamados Platão e Xenofonte. |
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Platão escreveu uma série de mais de duas dezenas de diálogos, dos quais existem ainda hoje todos eles.Chamam-se Diálogos porque neles Platão não expõe seus ensinamentos por meio de uma exposição direta, mas sim através do artifício em que é contada uma história na qual sempre se encontram diversas pessoas que iniciam um diálogo. A narrativa do diálogo passa a ser então a parte principal de cada uma das mais de duas dezenas destas obras de Platão; o diálogo é narrado em toda a vivacidade dos detalhes com que ocorreu, mas, se o leitor acompanhar atentamente o diálogo como se estivesse participando dele, passará, logo em seguida, a participar da discussão dos temas filosóficos nele propostos por Platão. Com a exceção do último diálogo, chamado As Leis, em todos os outros Sócrates é um dos personagens, e na maioria deles é o personagem principal. Existe uma controvérsia entre os estudiosos a respeito de quais são os diálogos em que Platão reproduz um diálogo realmente ocorrido em que Sócrates se aproveitou da ocasião para expor suas doutrinas e quais são os diálogos imaginados por Platão em que, apresentando Sócrates como um dos dialogantes, está na realidade contando uma situação fictícia e expondo não as doutrinas de Sócrates, mas as suas. De qualquer maneira, é evidente que muitos diálogos e muitas passagens dos Diálogos são relatos de fatos historicamente ocorridos e uma das principais fontes para o conhecimento da pessoa de Sócrates. |
05. |
Xenofonte escreveu sobre Sócrates um livro chamado "Ditos e feitos Memoráveis de Sócrates", o qual, embora muito menos profundo do que as obras de Platão, é a segunda fonte mais importante sobre a pessoa e o pensamento de Sócrates. |
06. |
Sócrates nasceu em Atenas na época do fim das guerras dos atenienses contra os persas, cerca de 470 AC, e morreu alguns anos após o fim da guerra do Peloponeso, em 399 AC.Era filho de um escultor e uma parteira. Durante algum tempo, parece ter ganho a vida como escultor, mas ao que tudo indica não seguiu a carreira. Provavelmente foi educado, quando criança, de acordo com o sistema escolar vigente em Atenas à sua época que já tivemos a oportunidade de descrever. No entanto, nos Ditos Memoráveis, Xenofonte relata Sócrates conhecer e conhecer bem diversos outros assuntos que não faziam parte das matérias usualmente ensinadas pelos professores de Atenas, embora ele próprio não desse muita importância a estes conhecimentos. Não está bem claro como Sócrates os tivesse aprendido, pois ele nunca se ausentou de Atenas, a não ser quando convocado para cumprir seus deveres militares, e não consta que ele tivesse tido maiores contatos com os filósofos do sul da Itália, nem com os da Ásia Menor, nem que tivesse viajado ao Egito ou à Pérsia. Alguns dos homens antigos que escreveram sobre Sócrates tentaram explicar este fato levantando a hipótese de que ele talvez tivesse sido discípulo de Anaxágoras na época em que este filósofo ainda vivia em Atenas, mas tal afirmação é uma coisa muito incerta. Mais provável é que tenha estudado com Arquelao, discípulo de Anaxágoras. |
07. |
Embora seja comum muitas pessoas terem ouvido falar alguma coisa a respeito de Sócrates, poucos conhecem o que realmente testemunnharam dele os seus contemporâneos. A maioria das pessoas que ouviram falar alguma coisa de Sócrates fazem dele uma imagem como de um velhinho falador mas infinitamente paciente.Entretanto, o primeiro testemunho que seus contemporâneos dão dele é o de um soldado de uma imensa superioridade técnica e moral em campo de batalha, um homem de coragem, inspirador de respeito tanto pela sua bravura como pelos princípios em que baseia sua conduta em meio às situações mais difíceis, em que uma outra pessoa qualquer perderia sua dignidade diante do medo. |
08. |
Assim é que, um ano antes do início da guerra do Peloponeso a cidade de Potidéia rebelou-se contra Atenas e ambas entrarram em guerra. Na expedição militar organizada pelos atenienses contra Potidéia estavam juntos como soldados Sócrates e Alcebíades, sobrinho de Péricles.Péricles já sabemos quem foi. Quando iniciou-se no ano seguinte a Guerra do Peloponeso era ele a principal figura de Atenas. Foi Péricles quem coordenou o início da guerra contra os espartanos, mas antes que se iniciassem as principais ofensivas, Péricles morreu vítima de uma peste que assolou a cidade de Atenas vinda da Etiópia e do Egito. Seu sobrinho Alcebíades passou a ser, depois disso, o homem chave dos atenienses na condução da guerra do Peloponeso durante os seus primeiros anos e um dos principais durante boa parte do restante da guerra. Ora, este Alcebíades teria morrido bem antes disso, na campanha contra Potidéia, se não tivesse sido salvo por Sócrates. Assim narra Plutarco o feito, ao contar a vida de Alcebíades:
Ora, continua Plutarco,
Sócrates, por outro lado, mostrou não ser ambicioso das honras e não ter desejado mais do que cumprir bem o seu dever. Diz então Plutarco que, em vez de protestar e querer para si as honras de herói, Sócrates ao contrário,
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09. |
Platão conta, em um dos seus Diálogos denominado O Banquete, como o próprio Alcebíades, anos depois do término da campanha de Potidéia, deu pessoalmente o seu testemunho a favor de Sócrates.Estavam conversando, na casa de um certo Agatão, Sócrates e mais seis pessoas, dentre os quuais Aristófanes, o escritor de peças de teatro que mencionamos nas notas precedentes, o autor da comédia As Nuvens, em que Sócrates é ridicularizado sendo tomado como um sofista. Quando ocorreu este diálogo, Aristófanes já havia escrito e apresentado As Nuvens em público, pois um dos interlocutores do diálogo dirige a palavra a Aristófanes citando, na presença de Sócrates, um trecho da comédia em que Aristófanes satiriza a Sócrates. É então que repentinamente entra na casa de Agatão e interrompe a conversa destes homens nada menos do que Alcebíades, fazendo os maiores elogios de Sócrates. Vejamos o que Alcebíades tinha a dizer:
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Que outras coisas são estas a que Alcebíades se refere?Conta a história que, durante a Guerra do Peloponeso, travou-se uma batalha em Délio. Dela participaram novamente Alcebíades e Sócrates. Conta o fato assim Plutarco:
Mas no Banquete de Platão, o próprio Alcebíades dá uma versão mais completa do ocorrido. Ouçamos o que ele tem a nos dizer:
E quem era Laques, que Sócrates amparava? Este companheiro Laques, de que fala Alcebíades, não é outro senão Xenofonte, o discípulo de Sócrates, também soldado naquela batalha, pois nós lemos em Diógenes Laércio, na sua biografia de Sócrates, o relato deste mesmo caso, em que se conta que o colega que Sócrates amparava era na realidade Xenofonte, que havia caído de seu cavalo, quando Sócrates, parou, voltou atrás e o amparou em uma retirada a pé. |
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Alcebíades é também testemunha da capacidade incomum de concentração de Sócrates, mesmo nas condições mais adversas. Ele nos conta como Sócrates ficou imóóvel, meditando, à procura de uma idéia, durante vinte e quatro horas seguidas, e isto não no aconchego do lar, nem no silêncio de uma casa de campo, mas na guerra, entre uma batalha e outra em que todos poderiam perder a vida a qualquer momento.Ouçamos o próprio Alcebíades falar:
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Mas a coragem e a honestidade de Sócrates não eram apenas em tempo de guerra. Seus contemporâneos relatam que ele não abandonava seu ideal de justiça por qualquer que fosse o motivo, mesmo que isto lhe custasse a própria vida.Perto do fim da Guerra do Peloponeso, Alcebíades tinha sido expulso do comando da frota ateniense. Ocorreu então o episódio da chamada Batalha das Ilhas Arginusas. Este episódio é assim narrado pelo historiador M. Rostofzeff:
Estes generais, 10 ao todo, foram chamados de volta a Atenas para enfrentar um julgamento. Já vimos como eram os tribunais em que se faziam os julgamentos da Justiça Ateniense: quinhentos juízes, escolhidos entre um número de 6000 cidadãos escolhidos por sorteio, que votavam o veredito por maioria simples, após defesa pessoal dos acusados, com um magistrado coordenando a seqüência das acusações, defesas e votações. Só que neste julgamento, que ficou na história, tratava-se de uma questão de guerra e os juízes seriam todos os cidadãos presentes à Assembléia Popular, qualquer que fosse o seu número. Coube a Sócrates, por sorteio, desempenhar o papel do Magistrado que iria coordenar o julgamento dos 10 generais. Logo que se iniciou o julgamento, Sócrates percebeu sua irregularidade. A Assembléia queria julgar os dez generais e, ao que tudo indicava, condená-los à morte, em um só bloco. Segundo as leis atenienses, porém, cada general deveria ser julgado em separado e haver tantos julgamentos quantos fossem os réus. Enfrentando a ira popular, o que naquelas circunstâncias poderia vir a custar-lhe a vida, Sócrates conseguiu se impor e obter o julgamento individual de cada um dos acusados. No Quarto Livro dos Ditos Memoráveis de Sócrates, Xenofonte se refere a este fato desta maneira:
Findo cada julgamento, Sócrates ainda teve a coragem, conforme diz Diógenes Laércio, de ter sido o único cidadão a votar, e públicamente, pela absolvição dos generais.
diz Diógenes Laércio, comentando o fato. |
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Finda a Guerra do Peloponeso, e derrotados os atenienses, o general espartano Lisandro impôs em Atenas um regime ditatorial em que trinta homens teriam inteira autoridade sobre a vida dos cidadãos. Eram todos atenienses, mas eram pessoas tidas como iníquas pelos seus concidadãos, por terem traído a causa pátria pela dos espartanos. Este regime ficou sendo conhecido como o regime dos Trinta Tiranos, que durou oito meses, até que Trasíbulo restaurasse novamente a democracia em Atenas.Curiosamente, o principal homem dos trinta tiranos era Crítias, um ex-discípulo de Sócrates, mas que em nada se comportava segundo o exemplo do mestre. Começaram então os desterros e as mortes, e os Tiranos frequentemente davam ordens a cidadãos honestos que eles próprios prendessem seus condidadãos para serem levados ao suplício. Alguns testemunhos da época, embora talvez exagerados, dizem que nestes oito meses em que durou o regime dos Trinta Tiranos morreu mais gente em Atenas do que nos 28 anos da Guerra do Peloponeso. Na História Universal de Cesare Cantú, este historiador diz que Sócrates,
Os Trinta lhe ordenaram que guardasse silêncio e não conversasse com cidadão algum menor de trinta anos; porém nem por isso ele deixava de falar com a mesma liberdade; e quando lhe perguntavam se não receava que a franqueza dos seus discursos lhe atraísse a desgraça, respondia:
embora, rigorosamente falando, não seria uma injustiça calar onde não se espera fruto algum das próprias palavras. Em outra ocasião, os Trinta Tiranos exigiram de Sócrates que os ajudasse a prender um tal de Leon de Salamina, e sequestrar todos os seus bens. Mesmo sabendo o que poderia vir a lhe acontecer, Sócrates recusou, alegando não uma desculpa qualquer, mas declarando que não o faria porque tratar-se-ia de uma injustiça. Diz do fato Xenofonte:
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Revela mais ainda o caráter de Sócrates o fato segundo o qual um certo dia surgiu em Atenas um homem que dizia possuir os conhecimentos necessários para descrever o caráter de um homem apenas pela observação de sua fisionomia. Levaram então o homem até Sócrates, que estava dialogando com vários outros. Fez-se silêncio entre todos, para que o homem examinasse os traços da fisionomia de Sócrates. Terminado o exame, disse o homem:
A afirmação, tão abrupta, fêz cair a todos na gargalhada, tal a diferença evidente entre este julgamento e a realidade. Mas houve alguém que não riu, e este foi o próprio Sócrates. Ao contrário, pareceu como que apanhado em flagrante, e, para não maior supresa dos presentes, dirigiu-lhes estas palavras:
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Notável também foi o modo como ele conheceu os seus principais discípulos. Diógenes Laércio narra o primeiro encontro entre Sócrates e Xenofonte, que começou a segui-lo antes de Platão. Ao narrar a vida de Xenofonte, assim se expressa Diógenes Laércio:
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Muito tempo depois, Sócrates encontrou-se com Platão, evento narrado também por Diógenes Laércio ao contar a vida de Platão.Diz este antigo historiador que, sem que Platão e Sócrates ainda se conhecessem, o primeiro, Platão, vinha se interessando há algum tempo pelo estudo da Filosofia, e costumava ler os escritos de Heráclito, filósofo que já mencionamos sem termos tido, porém, a oportunidade de desenvolver o seu pensamento. Certo dia Platão, cujo verdadeiro nome era Arístocles, resolveu inscrever-se em um concurso de composição de peças de teatro. Contava então com 20 anos. Na véspera do dia em que a obra iria ser entregue, ocorreu que Sócrates sonhou que havia um filhote de cisne em seus joelhos, o qual se revestiu repentinamente de uma vistosa plumagem para logo em seguida levantar vôo depois de emitir em voz bem alta uma doce nota musical. No dia seguinte Platão se dirigiu ao teatro de Dionísio para entregar uma cópia de sua peça, quando ouviu Sócrates conversando junto à porta do mesmo. Ficou tão impressionado com o modo de falar de Sócrates que jogou seu manuscrito às chamas e pediu para ser apresentado àquele homem. Assim que Sócrates viu o moço, disse aos circunstantes:
A partir daí iniciou-se entre os dois uma amizade que a história não mais apagaria. |
17. |
Mas o que fazia Sócrates como filósofo?Vimos como Sócrates tinha altíssimos padrões de conduta moral, os quais foram analisados até aqui apenas do ponto de vista exterior, isto é, tal como eles se manifestaram muitas vezes nos fatos da vida real. Eles, porém, se fundamentavam em pressupostos bem mais elevados que só mais adiante poderemos examinar. Ao contrário dos demais filósofos pré socráticos, que se dedicavam à contemplação da natureza, a atividade principal de Sócrates era conversar, e conversar justamente sobre o conhecimento do homem sobre si mesmo, e sobre as virtudes, tais como a sabedoria e a justiça. Este seu interesse pelas virtudes, entretanto, conforme veremos mais adiante, não é de natureza diversa do que o interesse dos outros pré socráticos pela contemplação do mundo à nossa volta. É verdade que a maioria dos historiadores contemporâneos apresentam Sócrates como inaugurando uma nova orientação na filosofia, em que o filósofo se preocupa com os problemas morais em vez do estudo da natureza. Na realidade, porém, não há fundamentalmente uma nova orientação; trata-se da mesma orientação, mas isto só ficará claro mais adiante. Tanto os filósofos pré socráticos, com a contemplação da natureza, como Sócrates, com a sua preocupação pelas virtudes, analisados mais de perto, estão realizando a mesma coisa. Mas para perceber isto será preciso primeiro compreendê-los mais a fundo. |
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Pelo menos, porém, para um observador exterior, à primeira vista parece haver uma diferença.Os pré socráticos se afastavam do convívio intenso com as multidões. Sócrates, ao contrário, procurava o convívio com as pessoas para poder conversar com elas. Ele frequentava as festas e os banquetes, e onde houvesse uma oportunidade de conversar com quem quisesse dialogar com ele, lá estava presente. O tema favorito dos pré socráticos, pelo menos na impressão que os historiadores modernos gostam de transmitir deles, era a natureza. O tema favorito de Sócrates eram as virtudes. Pelo menos exteriormente, assim parece haver uma diferença. |
19. |
Quando Sócrates conversava, ele não ensinava nenhuma doutrina pré estabelecida. Ao contrário dos pré socráticos, que ofereciam uma doutrina positiva, ele dizia que nada tinha a ensinar. Sócrates apenas perguntava. E assim se iniciava um diálogo. Sócrates costumava procurar para conversar as pessoas que diziam que tinham algum tipo de conhecimento para ensinar, e então começava a lhe fazer perguntas. Muitos dos que ele procurava eram os filósofos sofistas que visitavam constantemente a cidade de Atenas em busca de alunos, os quais se gabavam de serem capazes de ensinar qualquer assunto e responder a qualquer pergunta a quem quer que fosse. Embora anunciassem tais pretensões, quando os sofistas começavam a dialogar com Sócrates, não era preciso esperar muito para que eles próprios percebessem que sua idéias eram contraditórias e que suas afirmações eram simples opiniões improvisadas para fazerem efeito diante dos ouvintes, mas que não eram capazes de suportar a análise de alguém que buscasse sinceramente compreender as verdades últimas a respeito do homem e da vida humana.Quando o sofista, conversando com Sócrates, chegava a se dar conta deste fato, em vez de aceitar a verdade, o mais comumente se revoltava contra o favor que Sócrates lhe havia prestado e começava a falar mal daquele homem para tantas pessoas quantas pudesse. Mas se ele era suficientemente honesto para aceitar a verdade, Sócrates então o convidava a juntar-se a ele para buscarem um verdadeiro conhecimento da natureza humana. Sócrates comparava esta técnica do diálogo ao trabalho de sua mãe que havia sido parteira. O interlocutor podia ser tanto o sofista profissional como ou qualquer outra pessoa que fosse, pois na verdade todos nós somos sofistas por adotarmos sem refletir uma conduta em nossa vida que é baseada em concepções sobre o que é o homem, sobre o que é a vida humana e quais os seus objetivos que não suportariam uma análise sincera por quem quer que busque a verdade sem que caiam em contradição. Sócrates então comparava este interlocutor a uma gestante em trabalho de parto. Ele próprio, Sócrates, era a parteira, que, dialogando, nos faria entrar em contradição flagrante a respeito das concepções sobre as quais, consciente ou inconscientemente, fundamentamos nossas vidas. O momento em que o interlocutor percebesse a série de ilusões fundamentais em que sua vida normalmente se baseia, este Sócrates o comparava ao nascimento. Daí para a frente ele poderia ser ajudado a crescer como um novo homem. |
20. |
A técnica obstétrica de Sócrates foi imortalizada por Platão, o qual transcreveu uma multidão de diálogos que ele presenciou pessoalmente ou que ele reconstituiu baseado no testemunho de outros que haviam conhecido a Sócrates antes que ele próprio.Sócrates procurou uma quantidade infindável de pessoas para simplesmente conversar com elas e ajudá-las a realizar o parto de suas almas. Isto lhe granjeou a estima e a gratidão de muitos, mas também a inveja e o ódio de outros tantos. |
21. |
Esta atividade de Sócrates de procurar as pessoas para conversar com elas iniciou-se, ao que parece, de um modo que tem o encanto da inocência das crianças.Um amigo seu de infância, chamado Querofonte, impressionado com a conduta e os modos exemplares de Sócrates, resolveu dirigir-se ao oráculo do Templo de Delfos. Ali arriscou uma consulta, e perguntou se havia algum homem mais sábio do que Sócrates. A resposta foi afirmativa:
disse o oráculo, segundo Diógenes Laércio. Querofonte correu para dar a boa notícia a Sócrates. Quando Sócrates a ouviu, custou a acreditar. Não podia ser verdade. Talvez houvesse algum sentido oculto no oráculo. Ao pé da letra, não podia ser verdade, e ele poderia prová-lo. Ele sabia que era um homem bom e justo, mas daí a supor que fosse o homem mais sábio de todos ia uma distância enorme. Ao contrário, ele tinha uma firme impressão de não ser um homem que soubesse muito.
dizia Sócrates.
continuou Sócrates.
Foi assim que Sócrates começou a procurar as primeiras pessoas para conversar com elas e fazer-lhe perguntas. Com isto porém, tal como uma criança inocente, ele desejava simplesmente entender o oráculo de Delfos a seu respeito. Para sua surpresa, não conseguiu encontrar nenhum sábio, mesmo entre aqueles que ostentavam sê-lo. Ao contrário, descobriu as profundas ilusões a respeito da vida e do homem sobre as quais se baseiam as vidas da maioria de todos nós. Foi a partir desta descoberta que Sócrates iniciou o seu magistério e teve que reconhecer que, afinal de contas, o oráculo tinha razão, pois ele não era um sábio, mas pelo menos estava consciente da extensão de sua ignorância, enquanto os demais nem isto sabiam. |
22. |
Muitos anos depois, já passada a Guerra do Peloponeso e o Governo dos Trinta Tiranos, algumas pessoas que se sentiram ofendidas pelo magistério de Sócrates inventaram uma queixa caluniosa contra ele no tribunal de Atenas.Sócrates se dizia inocente. O magistrado, porém, diante da multidão dos quinhentos juízes, perguntou:
Sócrates, então, com suas próprias palavras, contou a sua história:
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23. |
Terminada a defesa, e passado o caso à votação dos juízes, Sócrates foi condenado à morte por pequena margem, conforme já sabemos. Mesmo assim, ao receber a sentença, comportou-se com a dignidade que tinha sido a sua característica em vida.Aos que o condenaram dirigiu estas palavras:
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