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O sentido alegórico e moral, a inteligência mística,
somente pode ser apreendido a partir daquilo que o sentido
literal propõe em primeiro lugar. Causa-nos, portanto, não pouca
admiração e perplexidade como possa haver algumas pessoas que se
gabam de serem doutos na alegoria ignorando, entretanto, a
primeira significação da letra. Nós, dizem eles, ensinamos as
Escrituras, não, porém, a letra; não cuidamos da letra, porque
nos ocupamos apenas da alegoria.
Mas, pergunto, como é possível ensinar a Escritura, se
não se lê a letra? De fato, se tirarmos a letra, o que será da
Escritura?
Dizem eles que a letra significa uma coisa segundo a
história, e outra segundo a alegoria. A palavra leão, por
exemplo, segundo o sentido literal significa o animal, mas
segundo o sentido alegórico significa o Cristo, porque o leão
dorme de olhos abertos.
Esta afirmação, porém, tal como está apresentada, não
pode ser sustentada. Deve-se mudar a frase proposta, ou modificar
a causa apontada. De fato, não é a palavra leão que dorme de
olhos abertos, mas o animal que a palavra significa. Entenda-se
que quando se diz que o leão significa o Cristo, não é o nome do
animal que significa o Cristo, mas o próprio animal. É o animal
que dorme de olhos abertos que, segundo uma determinada
semelhança, representa o Cristo, porque nos dias em que estava
sepultado, enquanto sua humanidade dormia o sono da morte, o
Cristo mantinha os olhos abertos por causa da sua divindade que
velava. Não se pode pretender, portanto, ter compreendido as
Sagradas Escrituras se se ignorar o sentido literal. Ignorar a
letra é ignorar aquilo que a letra significa; ora, a coisa que a
letra significa é, por sua vez, um sinal de algo que deverá ser
entendido espiritualmente. Como, porém, este entendimento
espiritual poderá ser apreendido pelos que lêem, se o seu sinal
não lhes tiver sido significado?
Aquele, portanto, que busca o entendimento das
Sagradas Escrituras deve em primeiro lugar aplicar-se à
compreensão daquelas coisas que as palavras sagradas propõem de
modo imediato; só depois que as tiver bem conhecido é que deve
passar às demais significações, meditando e reunindo, através das
semelhanças, aquilo que diz respeito à edificação da fé e à
formação dos bons costumes. Deve-se, pois, compreender primeiro o
que a letra significa para depois vir a se entender aquilo que é
significado pela coisa significada pela letra.
Quisemos advertir bem o leitor a este respeito para
que não aconteça que venha a desprezar os primeiros rudimentos
deste ensinamento. Não pense que deva ser desprezado o
conhecimento daquilo que as Sagradas Escrituras nos propõem
através da primeira significação da letra, porque são estas
coisas que o Espírito Santo mostra aos sentidos carnais a nós,
que não podemos apreender as coisas invisíveis senão através das
visíveis, como simulacros de entendimentos mais elevados,
levantando nossa alma à compreensão do que é espiritual através
destas semelhanças que nos são propostas.
Se, como alguns dizem, fosse possível passar da letra
diretamente àquilo que deve ser entendido espiritualmente, em vão
teriam sido interpostas nas Sagradas Escrituras as figuras e as
semelhanças das coisas pelas quais a alma é ensinada acerca do
que pertence ao espírito. Não se deve, portanto, na palavra de
Deus desprezar a humildade, porque é pela humildade que somos
iluminados para a divindade. Este sentido exterior da palavra de
Deus pode parecer lodo para ser talvez pisado pelos pés, mas é
este lodo que nossos pés pisam que foi usado pelo Cristo ao curar
o cego de nascença para iluminar-lhe a vista (Jo. 9).
Leiamos, pois, as Sagradas Escrituras, e aprendamos
diligentemente em primeiro lugar aquilo que ela narra
materialmente. Se imprimirmos cuidadosamente em nossa alma a
forma destas coisas segundo a seqüência da narrativa, depois,
através da meditação, colheremos como de um favo a doçura da
inteligência espiritual (6).
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