QUARTA PARTE



DEVOÇÃO DE ANTÃO AOS MINISTROS DA IGREJA. EQÜANIMIDADE DE SEU CARÁTER.

67.

Era paciente por disposição e humilde de coração. Sendo homem de tanta fama, mostrava, no entanto, o mais profundo respeito aos ministros da Igreja, e exigia que a todo clérigo se desse maior honra do que a ele. Não se envergonhava de inclinar a cabeça diante de bispos e de sacerdotes. Se algum diácono chegava a ele pedindo-lhe ajuda, conversava com ele o que lhe fosse proveitoso, mas, chegando a oração, pedia-lhe que presidisse, não se envergonhando de aprender. De fato, muitas vezes propôs questões inquirindo os pontos de vista de seus companheiros, e se tirava proveito do que dizia o outro, mostrando-se grato.

Seu rosto tinha grande e indescritível encanto. E o Salvador lhe tinha dado por acréscimo este dom: se se achava presente numa reunião de monges e alguém a quem não conhecia desejava vê-lo, esse tal, ao chegar, passava por alto os demais, como que atraído por seus olhos. Não era nem sua estatura nem sua figura que o destacavam sobre os demais, mas seu caráter sossegado e a pureza de sua alma. Ela era imperturbável e assim sua aparência externa era tranqüila. O gozo de sua alma transparecia na alegria de seu rosto, e pela forma de expressão de seu corpo se sabia e conhecia a estabilidade de sua alma, como o diz a Escritura:

"O coração contente alegra o semblante, o coração triste deprime o espirito".

Pr. 15, 13

Também Jacó observou que Labão estava tramando algo contra ele e disse a suas mulheres:

"Vejo que o pai de vocês não me olha com bons olhos".

Gn. 31, 5

Também Samuel reconheceu Davi porque tinha olhos que irradiavam alegria e dentes brancos como leite (I Sm. 16, 12; Gn. 49, 12). Assim também era reconhecido Antão: nunca estava agitado, pois sua alma estava em paz; nunca estava triste porque havia alegria em sua alma.



POR LEALDADE À FÉ, ANTÃO INTERVÉM NA LUTA ANTI-ARIANA.

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Em assuntos de fé, sua devoção era sumamente admirável. Por exemplo, nunca se relacionou com os cismáticos melecianos, sabedor desde o começo de sua maldade e apostasia. Tampouco teve trato amistoso com os maniqueus, nem com outros hereges, à exceção unicamente das admoestações que lhes fazia para que voltassem à verdadeira fé. Pensava e ensinava que amizade e associação com eles prejudicavam e arruinavam a alma. Detestava também a heresia dos arianos, e exortava a todos a não se acercarem deles, nem compartilhar de sua perversa crença. Uma vez, quando alguns desses ímpios arianos chegaram a ele, interrogou-se detalhadamente; e ao aperceber-se de sua ímpia fé, expulsou-os da montanha, dizendo que suas palavras eram piores que veneno de serpentes.

69.

Quando numa ocasião os arianos espalharam a mentira de que partilhava de suas opiniões, demonstrou que estava enojado e irritado contra eles. Respondendo ao chamado dos bispos e de todos os irmãos, desceu a montanha e, entrando em Alexandria, denunciou os arianos. Dizia que sua heresia era pior de todas e precursora do anticristo. Ensinava ao povo que o Filho de Deus não é uma criatura nem veio "da não existência" ao ser, mas

"é Ele a eterna Palavra e Sabedoria da substância do Pai. Por isso é ímpio dizer: 'houve um tempo em que não existia', pois a Palavra foi sempre coexistente com o Pai.

Por isso, não se metam em nada com estes arianos sumamente ímpios; simplesmente

'não há comunidade entre a luz e as trevas'

II Cor. 6, 14

Vocês devem se lembrar de que são cristãos tementes a Deus, mas eles ao dizerem que o Filho e Palavra de Deus é uma criatura, não se diferenciam dos pagãos

'que adoram a criatura em lugar de Deus Criador'

Rm. 1, 25

E estejam seguros de que toda a criação está irritada contra eles, porque contam entre as coisas criadas o Criador e Senhor de tudo,

'pelo qual todas as coisas foram criadas'.

Gl. 1, 16"

70.

Todo opovo se alegrava ao ouvir semelhante homem anatematizar a heresia que lutava contra Cristo. Toda a cidade corria para ver Antão. Também os pagãos, e inclusive seus assim chamados sacerdotes, iam à Igreja dizendo:

"Vamos ver o homem de Deus",

pois assim o chamavam todos. Além disso, também ali o Senhor operou por seu intermédio expulsões de demônios e curas de doenças mentais. Muitos pagãos queriam também tocar o ancião, confiando em que seriam auxiliados, e em verdade houve tantas conversões nesses poucos dias como não tinham sido vistas em todo um ano. Alguns pensaram que a multidão o incomodava e por isso trataram de afastar todos dele, mas ele, sem se molestar, disse:

"Toda essa gente não é mais numerosa do que os demônios
contra os quais temos que lutar na montanha".

71.

Quando se ia, e estávamos nos despedindo dele, ao chegar à porta, uma mulher atrás de nós gritava:

"Espera, homem de Deus,
minha filha está sendo terrivelmente atormentada por um demônio!
Espera, por favor, ou vou morrer, correndo!"

O ancião ouviu-a, rogamos-lhe que se detivesse e ele acedeu com gosto. Quando a mulher se aproximou, sua filha estava arrojada ao chão. Antão orou e invocou sobre ela o nome de Cristo. A moça levantou-se sã e o espirito impuro a deixou. A mãe louvou a Deus e todos renderam graças. E ele também contente partiu para a montanha, para o seu próprio lar.



A VERDADEIRA SABEDORIA.

72.

Tinha também um grau muito alto de sabedoria prática. O admirável era que, ainda que não tivesse educação formal, possuía no entanto engenho e compreensão despertos. Um exemplo: uma vez chegaram a ele dois filósofos gregos, pensando que podiam divertir-se com Antão. Quando ele, que nessa ocasião vivia na Montanha Exterior, catalogou os homens por sua aparência, dirigiu-se a eles e lhes disse por meio de um intérprete

"Por que, filósofos, se deram tanto trabalho vindo a um homem louco?"

Quando eles lhe contestaram que não era louco, mas muito sábio, ele lhes disse:

"Se vieram a um louco, seu incômodo não tem sentido;
mas se pensam que sou sábio, então façam-se o que sou, porque se deve imitar o bom.

Em verdade, se eu tivesse ido a vocês, te-los-ia imitado;
ao invés, agora que vieram a mim, convertam-se no que sou: eu sou cristão".

Eles se foram, admirados; viram que até os demônios temiam a Antão.

73.

Também outros da mesma classe foram a seu encontro na Montanha Exterior e pensaram que podiam zombar dele porque não tinha cultura. Antão lhes disse:

"Bem, que dizem vocês: que é primeiro, o sentido ou a letra?
E qual é a origem do outro: o sentido da letra ou a letra do sentido?"

Quando eles expressaram que o sentido é o primeiro e origem da letra, Antão disse:

"Por isso, quem tem mente sã não necessita das letras".

Isto os assombrou e a todos os circunstantes. Foram-se admirados de ver tal sabedoria num homem iletrado, que não tinha as maneiras grosseiras de quem viveu e envelheceu na montanha, mas era um homem simpático e cortês. Seu falar era sazonado com a sabedoria divina (Cl. 4, 6), de modo que ninguém lhe tinha má vontade, mas todos se alegravam de haver ido em sua procura.

74.

E por certo, depois destes vieram outros. Eram daqueles que entre os pagãos tem reputação de sábios. Pediram-lhe que suscitasse uma controvérsia sobre nossa fé em Cristo. Quando procuravam arguir com sofismas a partir da pregação da divina cruz, a fim de zombar, Antão guardou silêncio por um momento e, compadecendo-se primeiro da ignorância deles, disse logo por um intérprete que fazia excelente tradução de suas palavras:

"Que é melhor: confessar a Cruz, ou atribuir adultérios e pederastias aos assim chamados deuses? Pois manter o que mantemos é sinal de espirito viril e denota desprezo da morte, enquanto que o que vocês pretendem só fala de paixões desenfreadas.

Outra vez, que é melhor: dizer que a Palavra de Deus é imutável, permaneceu a mesma ao tomar corpo humano, para salvação e bem da humanidade, de modo que, ao compartilhar o nascimento humano, pôde fazer os homens participantes da natureza divina e espiritual (II Pd. 1, 4), ou colocar o divino num mesmo nível que os seres insensíveis, e adorar por isso a bestas e répteis e imagens de homens?

Precisamente esses são os objetivos adorados por seus homens sábios.

Com que direito vêm rebeixar-nos porque afirmamos que Cristo apareceu como homem, sendo que vocês fazem provir a alma do céu, dizendo que se extraviou e caiu da abóbada do céu ao corpo?

E oxalá fosse só o corpo humano, e não que se mudasse e emigrasse no de bestas e serpentes.

Nossa fé declara que Cristo veio para a Salvação das almas, e vocês erroneamente teorizam a cerca de uma Alma incriada.

Cremos no poder da Providência e em seu amor pelos homens, e em que essa vinda não era, portanto, impossível para Deus; mas vocês, chamando à alma imagem da Inteligência, imputam-lhe quedas e fabricam mitos sobre sua possibilidade de mudança .

Como conseqüência fazem mutável a mesma inteligência por causa da alma; pois enquanto imagem deve ser aquilo de que é imagem.

Se vocês, entretanto, pensam semelhantes coisas acerca da Inteligência, recordem-se de que blasfemam do Pai da Inteligência".

75.

"Em referência à cruz, que dizem vocês ser o melhor: suportar a Cruz, quando homens malvados lançam mão da traição, e não vacilar ante a morte de maneira ou forma alguma, ou fabricar fábulas sobre as andanças de Ísis e Osíris, as conspirações de Tifon, a expulsão de Cronos, com seus filhos devorados e seus parricídios? Sim, aqui temos sua sabedoria!

E por que enquanto se riem da Cruz, não se maravilham da Ressurreição? Pois os mesmos que nos transmitiram um acontecimento escreveram também sobre o outro.

Ou por que, enquanto se lembram da Cruz, nada têm que dizer sobre os mortos devolvidos à vida, os cegos que recuperaram a vista, os paralíticos que foram curados e os leprosos que foram limpos, o caminhar sobre as águas, e os outros sinais e milagres que mostram Cristo não como homem mas como Deus? Em todo caso, perece- me que vocês se enganam a si mesmos e que não têm nenhuma familiaridade real com nossas Escrituras. Leiam-nas, porém, e vejam que tudo quanto Cristo fez prova que era Deus que habitava conosco para a salvação dos homens".

76.

"Mas falem-nos também vocês sobre seus próprios ensinamentos. Que podem, porém, agora acerca de coisas insensíveis, senão insensatezes e barbaridades? Se entretanto, como ouço, querem dizer que entre vocês tais coisas falam em sentido figurado, e assim convertem o rapto de Coré em alegoria da terra; a cólera de Hefestos, do sol; a Hera, do ar; a Apolo, do sol; a Artemísia, da lua, e a Poseidon, do mar, ainda, ainda assim vocês não adoram o próprio Deus, mas servem à criatura em lugar de Deus que tudo criou. Se vocês compuserem tais histórias porque a criação é bela não deveriam ter ido além de admirá-la, e não fazer das criaturas deuses para não dar às coisas criadas a honra do Criador. Nesse caso já seria tempo de darem à casa construída a honra devida ao arquiteto, ou a honra devida ao general, aos soldados. Agora, que têm que dizer a tudo isto? Assim saberemos se a Cruz tem algo que sirva para escarnecer-se dela".

77.

Eles estavam desconcertados e davam voltas ao assunto de uma e de outra forma. Antão sorriu e disse, de novo através de um intérprete:

"Só ao ver as coisas já se tem a prova de tudo o que eu disse. Dado, porém, que vocês, supõe-se, confiam absolutamente nas demonstrações, e isto é uma parte em que vocês são mestres, e já que exigem de nós não adorar a Deus sem argumentos demonstrativos, digam-me isto primeiro: como se origina o conhecimento preciso das coisas, em especial o conhecimento de Deus? É uma demonstração verbal ou um ato de fé? E que vem primeiro: o ato de fé ou a demonstração verbal?"

Quando replicaram que o ato de fé precede e que isto constitui um conhecimento exato, disse Antão:

"Bem respondido: A fé surge da disposição da alma, enquanto a dialética vem da habilidade dos que a idealizam. De acordo com isto, os que possuem uma fé ativa não necessitam de argumentos de palavras e provavelmente os reputam supérfluos; pois o que aprendemos pela fé, vocês cuidam construí-lo com argumentações e amiúde nem sequer podem exprimir o que nós percebemos. A conclusão é que uma fé ativa é melhor e mais forte do que seus argumentos sofísticos".

78.

"Os cristãos, por isso, possuímos o mistério, não baseando-nos na razão da sabedoria grega (I Cor. 1, 17), mas fundados no poder de uma fé que Deus nos garantiu por meio de Jesus Cristo. Pelo que toca à verdade da explicação dada, notem como nós, iletrados, cremos em Deus, reconhecendo sua Providência a partir de suas obras. E quanto a ser nossa fé algo efetivo, notem que nos apoiamos em nossa fé em Cristo, enquanto vocês a baseiam em disputas ou palavras sofísticas; seus ídolos fantasmas estão passando de moda, mas nossa fé se difunde em toda parte. Com todos seus silogísmos e sofismas, vocês não convertem ninguém do cristianismo ao paganismo, mas nós, ensinando a fé em Cristo, estamos despojando os deuses do medo que inspiravam, de modo que todos reconhecem Cristo como Deus e Filho de Deus. Com toda sua elegante retórica, vocês não impedem o ensinamento de Cristo, mas nós, à simples menção do nome de Cristo crucificado, expulsamos os demônios que vocês veneram como deuses. Onde aparece o sinal da Cruz, ali a magia e a feitiçaria são impotentes e sem efeito".

79.

"Em verdade, digam-nos, onde ficaram seus oráculos? Onde os encantamentos dos egípcios? Onde estão suas ilusões e os fantasmas dos mangos? Quando terminaram estas coisas e perderam seu significado? Não foi acaso quando chegou a Cristo de Cristo? Por isso, será ela que merece desprezo e não, antes, o que ela deitou abaixo demonstrando sua importância? Também é notável o fato de que jamais a religião de vocês foi perseguida; ao contrário, em todas as partes goza de honra entre os homens. Mas os seguidores de Cristo são perseguidos, e sem embargo é a nossa causa que floresce e prevalece e não a sua. Com toda a tranquilidade e proteção de que goza, sua religião está morrendo, enquanto a fé e o ensinamento de Cristo, desprezados por vocês e frequentemente perseguidos pelos governantes, encheram o mundo. Em que tempo resplandeceu tão brilhantemente o conhecimento de Deus? Ou em que tempo apareceram a continência e a verdade da virgindade? Ou quando foi tão desprezada a morte como quando chegou a Cruz de Cristo? E ninguém duvida disto ao ver os mártires que desprezam a morte por causa de Cristo, ou ao ver as virgens da Igreja que por causa de Cristo guardam seus corpos puros e sem mancha".

80.

"Estas provas bastam para demonstrar que a fé é a única religião verdadeira. Aqui porém estão vocês, que buscam conclusões baseadas no raciocínio, vocês que não tem fé. Nós não buscamos provas, como diz nosso mestre,

'com palavras persuasivas de sabedoria humana',

I Cor. 2, 4

mas persuadimos os homens pela fé que tangivelmente precede todo raciocínio baseado em argumentos. Vejam, aqui há alguns que são atormentados pelos demônios".

Estes eram gente que tinha vindo para vê-lo e sofriam por causa dos demônios; fazendo-os adiantar-se, disse:

"Pois bem, curem-nos com seus silogismos ou com qualquer magia que desejem, invocando a seus ídolos; ou então, se não podem, deixem de lutar contra nós e vejam o poder da Cruz de Cristo".

Dito isto, invocou a Cristo e fez sobre os enfermos o sinal da Cruz, repetindo a ação por segunda e terceira vez. Imediatamente as pessoas se levantaram completamente sãs, tendo-lhes voltado o uso da razão e dando graças ao Senhor. Os assim chamados filósofos estavam assombrados e realmente atônitos pela sagacidade do homem e pelo milagre realizado. Disse-lhes, porém, Antão:

"Por que se maravilham com isto? Não somos nós, mas Cristo quem age através dos que nEle crêem. Creiam vocês também e verão que não é palavreado e sim fé que pela caridade opera para Cristo (Gl. 5, 6); se vocês também abraçam isto, não necessitarão andar buscando argumentos da razão, mas verão que a fé em Cristo é suficiente".

Assim falou Antão. Quando partiram, admiraram-no, abraçaram-no e reconheceram que os havia ajudado.



OS IMPERADORES ESCREVEM A ANTÃO.

81.

A fama de Antão chegou aos imperadores. Quando Constantino Augusto e seus filhos Constâncio Augusto e Constante Augusto ouviram estas coisas, escreviam-lhe como a um pai, rogando-lhe que lhe respondesse. Ele, no entanto, não deu muita importância aos documentos, nem se alegrou pelas cartas; continuou o mesmo que antes de lhe escrever o imperador. Quando lhe levaram os documentos, chamou-os e disse:

"Não se devem surpreender se um imperador nos escreve, porque é homem;
deveriam surpreender-se de que Deus haja escrito a lei para a humanidade
e nos tenha falado por meio de seu próprio Filho".

Em verdade, nem queria receber as cartas, dizendo que não sabia que responder. Os monges, porém, persuadiram-no manifestando-lhe que os imperadores eram cristãos e que se ofenderiam de ser ignorados; então acedeu a que lhas lessem. E respondeu, recomendando-lhes que prestassem culto a Cristo e dando-lhes o saudável conselho de não apreciar demasiado as coisas deste mundo, mas antes recordando o juízo futuro, e saber que só Cristo é o Rei verdadeiro e eterno. Rogava-lhes que fossem humanos e atendessem à justiça e aos pobres. E eles ficaram felizes ao receber sua resposta. Por isso era amado por todos, e todos desejavam tê-lo como pai.



ANTÃO PREDIZ OS ESTRAGOS DA HERESIA ARIANA.

82.

Argumentando assim de si mesmo, e contestando assim aos que o buscam, voltou à Montanha Interior. Continuou observando suas costumadas práticas ascéticas, é muitas vezes, quando estava sentado ou caminhando com visitantes, quedava-se mudo, como está escrito no livro de Daniel (4, 16). Depois de algum tempo, retomava o que estivera dizendo aos irmãos que o acompanhavam e os presentes apercebiam-se de que havia tido uma visão; pois amiúde quando estava na Montanha via coisas que aconteciam até no Egito, como o confessou ao bispo Serapião, quando este se encontrava na Montanha Interior e viu Antão em transe de visão.

Numa ocasião, por exemplo, enquanto estava sentado trabalhando, tomou a aparência de alguém que estivesse em êxtase e se lamentava continuamente pelo que via. Depois de algum tempo voltou a si, lamentando-se e tremendo, e se pôs a orar prostrado, ficando longo tempo nessa posição. E quando se endireitou, o ancião estava chorando. Agitaram-se então os que estavam com ele, alarmaram-se muitíssimo, e lhe perguntaram o que se passava; urgiram-no por tanto tempo que o obrigaram a falar. Suspirando profundamente, disse:

"Ó filhos meus, seria melhor morrer antes que se sucedam as coisas que vi".

Fazendo-lhes mais perguntas, disse entre lágrimas:

"A ira está a ponto de golpear a Igreja,
e ela está a ponto de ser entregue a homens que são como bestas insensíveis.
Vi a mesa da casa do Senhor e havia mulas em torno,
rodeando-a por todas as partes e dando coices com seus cascos em tudo o que havia nela,
tal como o escoicear de uma tropa que golpeia desenfreada.
Vocês ouviram seguramente como eu me lamentava; é que ouvi uma voz que dizia:

'Meu altar será profanado'".

Assim falou o Ancião. E dois anos depois chegou o atual assalto dos arianos e o saque das igrejas, quando à força se apoderaram dos vasos e os fizeram levar pelos pagãos; quando também forçaram os pagãos de suas tendas para irem a suas reuniões, e em sua presença fizeram o que lhes aprouve sobre a sagrada mesa. Todos então nos apercebemos que o escoicear de mulas, predito por Antão, era o que os arianos estão fazendo como bestas brutas.

Quando teve essa visão, consolou a seus companheiros:

"Não percam a coragem, meus filhos,
pois ainda que o Senhor esteja irritado, nos restabelecerá depois.
E a Igreja recobrará rapidamente a beleza que lhe é própria
e resplandecerá com seu costumado esplendor.
Verão restabelecidos os que foram perseguidos,
e a irreligião retirando-se de novo a suas próprias guaridas,
e a verdadeira fé afirmando-se em toda parte, em liberdade completa.
Tenham porém cuidado em não se deixarem manchar com os arianos.
Seu ensinamento não é dos Apóstolos,
mas dos demônios e de seu pai, o diabo.
É estéril e irracional, e falta-lhe inteligência,
tal como às mulas lhes falta o entendimento".