XII

A Controvérsia entre o Papa
e o Bispo de Alexandria.




1.

Introdução.

Após quase 30 anos de ensino na escola catequética de Alexandria, Orígenes transferiu-se para Cesaréia da Palestina, passando à frente da escola o sacerdote Héraclas, seu antigo auxiliar. No ano seguinte Héraclas tornou-se bispo de Alexandria e na direção da escola de Alexandria sucedeu-o Dionísio, antigo discípulo de Orígenes. Dezesseis anos depois Dionísio também acabou sucedendo a Héraclas como bispo da cidade, a segunda em importância no Império Romano.

Por volta da segunda metade do século III Dionísio de Alexandria foi obrigado pelas circunstâncias a defender a ortodoxia da fé diante de um surto de heresia Sabeliana nas cidades do leste do Egito. Não fora de propósito, já que seu objetivo era o de refutar o monarquianismo, ,ele trouxe à tona a questão da distinção pessoal entre o Pai e o Filho.

Em relação a isto, os Sabelianos escreveram uma queixa formal ao Papa em Roma, que também chamava-se Dionísio, fazendo diversas acusações ao bispo de Alexandria.

2.

As acusações dos Sabelianos contra o bispo de Alexandria.

Em sua carta ao papa S. Dionísio, os sabelianistas acusaram o bispo de Alexandria dos seguintes pontos:

  • De colocar uma divisão nítida, implicando em uma separação, entre o Pai e o Filho;

  • de negar a eternidade do Filho, afirmando que o Pai nem sempre foi Pai e que o "Filho não existia antes que Ele viesse à existência";

  • de nomear o Pai sem o Filho e o Filho sem o Pai, como se eles não fossem inseparáveis em seus próprios seres;

  • de não descrever o Filho como `homoousios', (isto é, de mesma essência ou substância) com o Pai;

  • de afirmar que o Filho seria uma criatura, tão diferente do Pai em substância como a vinha do agricultor.

Referências:
S. Atanásio : De Sent. Dion. 4; 14; 16; 18.

3.

A reação do Papa.

Em resposta, o Papa elaborou um breve no qual, sem mencionar o nome do bispo de Alexandria, foi na verdade uma dura crítica ao mesmo.

Não há dúvida que Dionísio de Alexandria, em seu zelo anti-sabeliano, usou de uma linguagem infeliz ao se expressar; embora no século seguinte Santo Atanásio tenha tentado desculpá-lo, mais tarde São Basílio, comentando o episódio, colocou que em seu zelo, Dionísio de Alexandria tinha se deixado levar ao extremo oposto.

Por outro lado, porém, é possível que alguns desentendimentos quanto à terminologia tenham contribuído para a tomada de posição do Papa. Este, por exemplo, ficou claramente chocado com a doutrina, inspirada em Orígenes, das três hipóstases, que para ele parecia negar a unidade divina, chegando a afirmar que os teólogos de Alexandria que defendiam a posição eram, virtualmente, triteístas. Ora, conforme vimos ao tratarmos de Orígenes, - e não nos devemos esquecer de que Dionísio de Alexandria havia sido seu discípulo -, `hipóstase' em grego é sinônimo de `ousia', e significa `essência'; Orígenes, entretanto, costuma empregar este termo no sentido de substância individual. Assim, embora a tradução literal de `hipóstase' para o latim fosse `essência', ou `substância', considerando-se o contexto origenista do termo, a tradução não literal pela palavra latina `persona' lhe corresponderia mais fielmente. Não é impossível, pois, que o Papa, baseando-se em um significado etimologicamente correto, julgasse que `hipóstase' fosse o equivalente grego para `substância'.

Afirmando, pois, que a colocação de três hipóstases na divindade por parte dos teólogos alexandrinos fosse um triteísmo virtual, S. Dionísio de Roma em resposta declara que o Verbo e o Espírito Santo devem, ao contrário, ser vistos como inseparáveis do Deus do Universo, o qual nunca pode ter existido sem seu verbo e seu Espírito, já que eles pertencem ao seu próprio ser.

Da mesma forma, é uma blasfêmia falar do verbo como de uma criatura; sua origem não é um ato de criação, mas

"uma geração divina inefável",

conforme a Escritura a qual, na Versão dos Setenta, dela afirma que

"Antes da aurora,
de meio seio te gerei".

Salmo 109, 3

Referências:
S. Atanásio : De Decret. 26;
Idem : De Sent. Dion. 4;
S. Basílio : Epistola 9, 2.

4.

A resposta de Dionísio de Alexandria.

Dionísio de Alexandria, embora sem renunciar a nenhuma de suas posições essenciais, reconheceu a impropriedade de algumas de suas expressões e analogias, e adotou a linguagem do papa ao reformular a sua doutrina.

Dionísio nega que separasse o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Os três são obviamente inseparáveis, como seus próprio títulos o demonstram, pois um Pai implica num Filho, e um Filho implica num Pai, e o Espírito implica tanto na fonte da qual procede como no meio pelo qual ele procede.

Sobre a eternidade do Filho, Dionísio afirmou sem ambigüidade que o Filho é eterno.

A respeito dele não ter usado o termo `homoousios', Dionísio respondeu que não o havia feito pois esta palavra não é usada nas Sagradas Escrituras. Apesar disso, ele aceita o seu significado, como o demonstram outras expressões de que ele se utiliza.

Referências:
S. Atanásio : De Sent. Dion. 14; 18; 17;
S. Basílio :De Spirit. Sanct. 72.

5.

Conclusão.

A resposta de Dionísio de Alexandria ao Papa fêz com que os estudiosos freqüentemente explicassem a controvérsia como um resultado de desentendimento quanto à terminologia. Até um certo ponto realmente foi isso. Já comentamos como o papa pode ter inferido que `hipóstase' fosse o equivalente grego para o termo latino `substância'; daí a sua reação ao supor que a doutrina dos alexandrinos fosse o equivalente do triteísmo.

Mas a verdade é que havia algo mais profundo do que as palavras por detrás da controvérsia. O trinitarianismo ocidental, conforme vimos, foi marcado por uma tendência monarquianista e, com isso, o que era luminosamente claro para os teólogos ocidentais era a unidade divina. Embora eles estivessem realmente convencidos das distinções que existiam nesta unidade, julgavam-nas tão misteriosas que apenas timidamente estavam iniciando a pensar nelas como `Pessoas'. No Oriente, onde o clima intelectual estava impregnado com idéias provenientes do platonismo sobre a hierarquia do ser, tinha-se estabelecido uma abordagem diferente e abertamente pluralística.