Santo Tomás de Aquino


COMENTÁRIO AO
IIIº LIVRO DAS SENTENÇAS
DE PEDRO LOMBARDO


- Distinção XXV, Q. I, A. 2 -


Se a vida contemplativa
consiste somente
em um ato do entendimento.




PRIMEIRA QUESTÃO



EM PRIMEIRO LUGAR, parece que a vida contemplativa consiste somente em um ato do entendimento, já que o objetivo desta vida está em alcançar a verdade. Ora, a verdade pertence somente ao entendimento, de modo que se segue que a vida contemplativa consiste somente em um ato do entendimento.

Ademais, a vida contemplativa tem sido chamada, pelos homens santos, de um estado de lazer. Aristóteles também a descreveu como um feriado. Ora, o lazer e a isenção do trabalho são opostos à ação, a qual deriva da vontade. De um modo semelhante, portanto, a vida contemplativa parece ser oposta à ação procedente da vontade, e consiste somente no entendimento.

Ademais, há qualidades tais como a sabedoria e o entendimento, que conduzem a vida contemplativa à maturidade, e estas pertencem ao domínio do conhecimento. Por causa disto parece seguir-se que a contemplação em si mesmo consiste somente no entendimento, porque sempre existe uma proporção entre as operações e os seus hábitos.

Porém, contra estas razões, Santo Isidoro escreve que

"a vida contemplativa é aquela
que é desimpedida de todo negócio humano,
e se delicia somente no amor de Deus".

Se isto é assim, a vida contemplativa não consiste apenas no conhecimento, porque o amor está relacionado com os afetos.

E ademais, assim como a vista está para o entendimento, assim o sabor pertence ao apetite. São Gregório, porém, escreve que

"a vida contemplativa
confere um sabor interior
da felicidade futura".

Portanto, a vida contemplativa não consiste somente no entendimento.




SEGUNDA QUESTÃO



PARECE, ENTRETANTO, que a vida contemplativa consiste em uma operação da razão, porque a vida contemplativa é uma vida humana, e assim deve ser conduzida de um modo humano. Ora, pertence ao modo dos homens agirem segundo a razão, como animais racionais, e portanto a vida contemplativa consiste principalmente no raciocínio.

Ademais, a vida contemplativa consiste principalmente no conhecimento das coisas divinas. Mas as coisas invisíveis de Deus

"são claramente vistas,
compreendidas a partir das coisas
que foram feitas",

conforme diz o Apóstolo na carta aos Romanos. Mas pertence ao trabalho da razão deduzir deste modo conclusões a partir dos dados que lhe são oferecidos.

Mais ainda, Ricardo de São Vítor escreve que

"o vôo de nosso espírito
na contemplação
varia de muitos modos.

Ora eleva-se das coisas inferiores
para as superiores;
ora desce das superiores
para as inferiores;
ora procede da parte para o todo,
ora do todo para a parte;
ora argumenta a partir
de uma verdade maior,
ora a partir de uma menor".

A vida contemplativa, portanto, parece consistir primariamente em um ato da razão, porque este movimento da mente exige o uso da razão.

Porém, ao contrário, São Bernardo sustenta que

"a consideração difere do exame
na medida em que o último
refere-se mais à inquisição,
enquanto que a primeira
é a verdadeira e certa visão da mente".

Ora, tal visão pertence à inteligência, enquanto que a inquisição, por outro lado, pertence à razão. Segundo os ensinamentos de São Bernardo, portanto, a vida contemplativa consiste não em um ato da razão, mas em um ato da inteligência.

Ademais, Aristóteles sustenta, em sua Ética, que

"pela contemplação
assemelhamo-nos a Deus".

Fazemos isto, porém, mais pela visão da inteligência do que pela investigação do raciocínio, de onde que a vida contemplativa consiste apenas em um ato da inteligência.




TERCEIRA QUESTÃO



FINALMENTE, PARECE QUE todo ato da inteligência pertence à vida contemplativa. Pois, assim como há uma proporção entre a vida ativa e as coisas a serem feitas, há também uma relação entre a vida contemplativa e as verdades a serem conhecidas. Todos os atos, porém, que dizem respeito à primeira pertencem à vida ativa, de onde que também todos os atos da última pertencem à vida contemplativa.

Ademais, a vida contemplativa, de acordo com Aristóteles na Ética,

"consiste na consideração
da Filosofia".
Ora, a faculdade que contempla a realidade, o domínio específico da Filosofia, é a inteligência, de onde que a contemplação consistirá nas operações da inteligência.

Mais ainda, Ricardo de São Vítor fala de seis gêneros de contemplação. O primeiro é alcançado quando, refletindo sobre a beleza das coisas materiais, admiramo-nos com a sabedoria divina. Quando buscamos suas causas, temos o segundo gênero. O terceiro é encontrado quando nos elevamos das coisas visíveis às invisíveis. E quando abandonamos a imaginação e nos ocupamos somente com verdades puramente inteligíveis, temos o quarto gênero. Subimos um degrau a mais quando meditamos no que sabemos não a partir da razão humana, mas a partir da revelação divina. O mais alto grau da contemplação é alcançado quando consideramos as maiores verdades que parecem inclusive contradizer a razão humana. Ora, nestes gêneros de contemplação estão incluídos todos os atos de nossa inteligência, de onde que cada ato desta última deve pertencer à vida contemplativa.

Porém, ao contrário, Santo Isidoro diz que

"a vida contemplativa,
renunciando ao mundo,
deleita-se de viver
somente em Deus".

Ora, viver somente para Deus exige a contemplação somente de Deus. Portanto, não é toda operação da inteligência que pertence à vida contemplativa.

Ademais, a vida contemplativa e a felicidade contemplativa parecem dizer respeito ao mesmo objeto. Ora, a felicidade contemplativa consiste apenas na consideração do ser mais nobre e inteligível, que é Deus, conforme afirma Aristóteles na Ética.




PRIMEIRA SOLUÇÃO



RESPONDO À PRIMEIRA QUESTÃO dizendo que a vida sobre a qual estamos agora falando consiste naquela operação para a qual o homem é principalmente destinado, para alcançar a qual ele remove todos os impedimentos e busca e persegue todas as coisas que favorecerão o seu adiantamento. Esta faculdade deve ser a vontade, cuja função é aceitar um curso de ação humano em vez de outro, qualquer que seja esta ação. Ora, como a vontade é o motor das demais faculdades da alma, deve possuir uma relação para com o objeto e para com os atos das demais faculdades somente na medida em que eles possuem uma bondade por si mesmos, pois cada ato próprio de uma faculdade é o seu bem. Deste modo, a vida contemplativa consiste em um ato do entendimento precedido de algum modo pelo desejo.

Como, porém, uma operação é, de algum modo, um intermediário entre a pessoa que age e o objeto, como perfeição do cognoscente e ela mesma aperfeiçoada pelo objeto que a especifica, assim a contemplação pode ser desejada de dois modos.

De um primeiro modo, é desejada como perfeição do cognoscente, procedendo deste modo do amor de si mesmo, como foi o caso da vida contemplativa dos filósofos. De um segundo modo, é desejada por ser atraída pelo objeto e tal desejo da contemplação se origina no amor do objeto, porque para onde se dirigem os afetos, para lá se voltam os olhos, conforme diz a Escritura:

"Onde estiver o teu tesouro,
ali também estará o teu coração".

Mt. 6, 21

Deste modo, a vida contemplativa dos santos, sobre a qual estamos considerando, faz uso da vontade.

No entanto, apesar disto, a contemplação consiste essencialmente em um ato do entendimento; pressupõe a caridade, porém, pelo motivo explicado. É assim que encontramos São Gregório dizendo que

"a vida contemplativa preserva o amor de Deus
e o amor do próximo com toda a nossa força,
e repousa da atividade exterior de tal modo que agora,
não mais agradando-lhe a atividade exterior,
e tendo desprezado os cuidados terrenos,
a alma é consumida pelo desejo
de ver a face de seu Criador".

Como resposta à primeira objeção, respondemos que o propósito da contemplação, estritamente considerado, é apenas a verdade. Mas na medida em que a contemplação é considerada como um modo de vida, torna-se algo desejável e um certo bem, conforme foi dito acima.

Respondemos à segunda objeção dizendo que a vontade não é somente uma força motiva para os movimentos exteriores que são repugnantes ao estado de lazer, mas também é uma força motiva para os movimentos internos, até para o próprio movimento da inteligência. Aristóteles afirma, no terceiro do De Anima, que

"estes são movimentos
equivocamente falando,
porque são atos perfeitos e,
portanto,
assemelham-se mais a algo em repouso
do que a algo em movimento".

Por conseguinte, aquele que se entrega à busca intelectual é dito desistir da ação externa, conforme é claro pela autoridade mencionada.

Como resposta à terceira objeção dizemos que embora os hábitos da vida contemplativa sejam intelectuais, suas ações podem ser preceituadas ou aprovadas pela vontade. Deste modo a contemplação consiste também nelas.




SEGUNDA SOLUÇÃO



À SEGUNDA QUESTÃO devemos responder que a vida contemplativa consiste na operação que o homem escolhe de preferência às demais. Trata-se, portanto, de um certo fim em relação a outras operações humanas, já que estas são feitas por causa daquela.

Ora, assim como a investigação da razão procede de uma intuição da inteligência, já que no homem a investigação parte de princípios apreendidos pela inteligência, assim também ela termina com uma certeza da inteligência, quando as conclusões a que ela chega são reduzidas aos princípios sobre os quais repousa a sua certeza. A vida contemplativa, portanto, consiste principalmente no ato da inteligência, o que é implicado pela própria palavra contemplação, palavra que significa visão. O contemplativo, entretanto, se utiliza da razão discursiva para chegar àquela visão da contemplação que é o seu principal objetivo, e é este raciocínio que São Bernardo chama de inquisição.

Respondemos, portanto, à primeira objeção dizendo que assim como os animais alcançam o limite da natureza humana pela sua faculdade instintiva, a mais elevada faculdade do mundo animal, pela qual os animais agem de um modo semelhante aos homens, assim também, na medida em que o homem é um contemplativo, torna-se mais do que um homem. A razão é que na operação do entendimento que advém com a simples visão, o homem alcança o limite daqueles seres superiores a si mesmo que são chamados anjos e puras inteligências.

À segunda objeção devemos responder dizendo que embora as coisas visíveis sejam meios para a contemplação das verdades divinas, ainda assim a contemplação não consiste principalmente nesta vida, mas na vida que há de vir.

À terceira objeção respondemos que Ricardo de São Vitor não quis dizer que a vida contemplativa consiste principalmente nestes vários movimentos da mente, mas que ela os move como meios que se ordenam a um fim.




TERCEIRA SOLUÇÃO



EM RESPOSTA À TERCEIRA QUESTÃO, devemos dizer que a vida contemplativa dos homens santos pressupõe o amor do objeto contemplado do qual ela surge. Segue-se daqui que, como a vida contemplativa consiste na operação que é mais intencionada, deve ser também acerca do objeto mais amado, que é Deus. De onde que a vida contemplativa consiste principalmente em uma operação da inteligência acerca de Deus. Lemos, de fato em São Gregório que

"a vida contemplativa
suspira ver apenas o seu Criador,
a saber, Deus".

No entanto, na medida em que se ordenam a Deus, o contemplativo considera também outras coisas. Considera as criaturas, admirando nelas a majestade, a sabedoria e a bondade divinas, a partir de cujas reflexões cresce em seu amor a Deus. Considera também seus próprios pecados, dos quais sua alma purificou-se para poder ver a Deus.

A própria palavra contemplação significa aquele ato principal pelo qual o homem contempla a Deus em si mesmo, enquanto que especulação designa melhor o ato pelo qual alguém vê a Deus, como em um espelho, nas coisas criadas. Do mesmo modo, a felicidade do contemplativo de que os filósofos falam também consiste na contemplação de Deus. De fato, conforme diz Aristóteles em sua Ética,

"A contemplação consiste
no ato da mais elevada faculdade
que há em nós,
isto é,
a inteligência;
e também no mais nobre objeto,
que é Deus".

Este é o motivo pelo qual os filósofos reservavam a última parte de suas vidas para a contemplação das coisas divinas, enquanto que no tempo precedente dedicavam-se ao estudo das demais ciências de modo que, partindo destas especulações, pudessem estar melhor capacitados para o estudo da divina.

Quanto à primeira objeção, deve-se dizer que não há nenhuma ordem natural entre os atos da vida ativa como há entre os atos da vida contemplativa. Portanto, não se pode dizer com rigor que a vida ativa consiste principalmente em algum ato único. Em relação a um homem individual, porém, a vida ativa consistirá principalmente no ato que ele mais freqüentemente pratica, na medida em que alguns dão maior atenção às obras de justiça, outros às de auto domínio, e assim sucessivamente.

À segunda objeção respondemos que Aristóteles, na autoridade mencionada, refere-se à Filosofia estritamente considerada, isto é, o conhecimento das coisas divinas, que é chamada pelo nome especial de Filosofia Primeira.

Nossa resposta à terceira objeção é que embora o contemplativo ocasionalmente considere aqueles gêneros de contemplação que Ricardo de São Vítor enumera, a vida contemplativa, no entanto, não consiste principalmente neles.