SERMO LXXXVIII

Sobre o Mandamento do Amor




"Amarás o Senhor teu Deus
de todo o teu coração,
e de toda a tua alma,
e de toda a tua força".

Deut. 6, 5

Depois que o homem abandonou a caridade pela culpa primordial e decaíu para a miséria deste mundo sujeitou-se a muitos cuidados, ocupou-se com muitas ações e afadigou-se com muitos trabalhos. De tudo pelo que o homem se aflige debaixo do Sol, uma só é a melhor parte. Consiste em servir a Deus, a única coisa que permanece. Todas as demais são passageiras, e como são vãs!

Quem não serve a Deus, portanto, é vão, e sua vida deve ser estimada como nada. Melhor seria que ele não fosse do que fosse mau, e melhor seria que não tivesse vivido do que mal vivido. Se tal homem pudesse nesta vida ter a força de Sansão, a beleza de Absalão, a sabedoria de Salomão, a velocidade de Azael, as riquezas de Creso, a probidade de Alexandre, o poder de Otaviano, que tinha o mundo sob o seu poder, a longevidade de Enoc o qual, nascido no princípio do mundo, até o fim não morrerá, se tal homem pudesse possuir tantas e tais coisas no presente, tudo isto de nada lhe aproveitaria se não servisse a Deus. Quando, ao morrer, tudo enfim lhe for cobrado, a miserável carne será entregue aos vermes e o espírito aos demônios e aos tormentos infernais até que no dia da ressurreição toda a carne retorne à sua origem. Então, retomada a carne pela qual e na qual pecou, novamente receberá a eterna condenação. Melhor é, portanto, servir a Deus, e ainda que o homem em toda a sua vida estivesse destituído de auxílios temporais e corporais, se nela se tiver entregue ao serviço de Deus, passará da miséria da vida presente à eterna bem aventurança.

Entre todos os bens do mundo presente que o gênero humano busca ou alcança, o melhor e o único bem que permanece é servir a Deus. Devemos, portanto, buscar de todos os modos o que seja servir a Deus. Se, buscando-o, o encontrarmos, sem sombra alguma de desânimo deveremos nele perseverar, pois é somente ao que persevera que está prometida a bem aventurança.

Irmãos, podemos compreender e declarar o que seja servir a Deus com breves, doces e alegres palavras. Servir a Deus é amar a Deus. Quem não ama não serve, e quem ama serve. Quem pouco ama, pouco serve; quem muito ama, muito serve; e quem perfeitamente ama, perfeitamente serve.

Quem possuir coisas temporais, terras, vinhas, rebanhos, armamentos, vestes preciosas, casas, prata, ouro ou esposa, às quais tenha muito amor, se perceber que possui uma de todas estas coisas, ou mesmo todas elas simultaneamente, contra o amor de Deus, deve abandoná-las todas, pospor todas ao amor de Deus e a todas antepor este amor. Até mesmo a sua própria vida o homem deve entregar pelo amor de Deus se vier a acontecer que não possa conservá-la juntamente com ele. Assim o fêz Pedro, assim o fêz Paulo, assim o fizeram todos os demais apóstolos e mártires de Cristo, entregando por amor a Deus não somente as suas coisas, como também a si mesmos. Todos estes, homens como nós, nos legaram tais exemplos de como devemos agir.

Devemos, portanto, amar a Deus porque Ele nos amou primeiro, dando-nos e prometendo-nos a multidão de seus dons. Em todos estes Ele como que mereceu de nós que o amássemos. O menor de todos os dons que Deus deu ao homem para que fosse amado por ele é todo este mundo. Foi por causa do homem que Deus fêz o mundo, o céu, a terra, o mar, o sol, a lua, as estrelas, os pássaros, os peixes, os animais da terra, as plantas, as árvores, e todas as coisas que subsistem visivelmente. Ora, se entre todos os dons de Deus o menor é todo este mundo, quanto consideraremos que será o máximo?

O segundo dom que foi concedido por Deus ao homem foi tê-lo criado à sua imagem semelhança. Grande e admirável dom é certamente a criatura ser tornada semelhante e conforme ao Criador.

O terceiro dom é a graça, que nos foi concedida na Redenção. Deus, de fato, diz a Escritura,

"não poupou o seu próprio Filho,
mas o entregou por todos nós".

O quarto dom Deus no-lo conserva e no-lo promete. É o dom da glória futura, do qual se diz que

"nem o olho viu, nem o ouvido ouviu,
nem entrou no coração do homem
o que Deus preparou
para aqueles que o amam".

I Cor. 2, 9

Podemos dizer, portanto, que o primeiro dom é o bem da criatura, o segundo dom é o bem da natureza, o terceiro dom é o bem da graça e o quarto dom o bem da glória. Por todos estes devemos amar a Deus.

Mas quanto devemos amá-Lo?

"Com todo o coração,
com toda a alma,
com todas as forças,
com todo o entendimento".

Com todo o nosso coração, isto é, com sabedoria; com toda a alma, isto é, com doçura; com todas as forças, isto é, com fortaleza; com todo o entendimento, isto é, com toda a memória, e por quaisquer outros modos que puderem ser ditos, pois não se pode excessivamente dizer aquilo que não se pode excessivamente amar.

"E o teu próximo como a ti mesmo".

Mat. 22, 39

Devemos amar o próximo como a nós mesmos pelo benefício, pela palavra, pela intenção. No benefício temos a boa obra, na palavra o conselho sadio, na intenção a autenticidade do desejo. Em tudo isto amemos o próximo na via, do qual seremos consortes na pátria.

E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, nosso Senhor, que é Deus bendito, pelos séculos dos séculos.

Amén.