Irmãos caríssimos, o santo salmista inicia o salmo ao qual pertencem estas palavras convidando algumas criaturas celestes, como os anjos, o sol, a lua e as estrelas, ao louvor do Criador. Desce, em seguida, para convidar ao mesmo louvor as criaturas da terra que acabamos de ouvir. "Louvai o Senhor", diz o salmista,
Não são, porém, apenas as criaturas descritas neste salmo que louvam a Deus. Todos os seres corpóreos que subsistem, na medida em que possuem e têm o seu lugar no decoro de todo o universo, também louvam a Deus. Dentro deste decoro as coisas visíveis louvam a Deus de um modo contínuo e sublime quando, admiravelmente criados e convenientemente dispostos por Deus, jubilosamente nos estimulam e convidam pela sua contemplação a admirar e louvar o Criador. Temos, porém, que nos ocupar não tanto com o que a letra significa exteriormente, como com a doçura que sua inteligência espiritual contém interiormente. Passaremos a discutir, portanto, seu sentido moral, para considerar o que se esconde nas coisas aqui descritas que pertencem à edificação dos costumes.
Os dragões, conforme diz Santo Agostinho, não são os maiores animais que há sobre a terra. Embora sejam animais perniciosos, possuem todavia algo pelo qual podem ser colocados em boa significação, pois nenhuma das coisas existentes está inteiramente privada da participação do bem, já que a própria Escritura nos testemunha que
Todas as coisas, portanto, podem significar alguma coisa boa, mesmo as ínfimas e as mínimas, as quais, quando comparadas com as demais, parecem deformes. Os dragões, por conseguinte, pelo fato de superarem todas as demais criaturas pelo seu tamanho corporal, significam aqueles que pelo grande mérito da justiça, pela opinião do bom nome ou pela autoridade transcendem a todos os demais. É assim que admiramos e imitamos a Abraão entre os patriarcas, Isaías entre os profetas, João entre os evangelistas, Pedro entre os apóstolos, Estêvão entre os mártires, Nicolau entre os confessores, a bem aventurada Maria entre as virgens. Os abismos são de grande profundidade e não podem ser penetrados pela vista humana. Eles, portanto, significam corretamente aqueles que são repletos entre todos pela profundidade da sabedoria e da ciência celeste do oculto e do místico. O apóstolo Paulo, admirando-se desta profundidade, exclama dizendo:
E o salmista:
E Salomão:
Os abismos podem, portanto, expressar corretamente aqueles aos quais, entre todos, foi concedido conhecer as coisas que se ocultam nos mistérios ou investigar mais profundamente os segredos dos juízos divinos. O fogo sugere de modo especial aqueles cuja mente, acesa pela caridade, arde mais fervorosamente. A caridade, de fato, é
isto é, no segredo do coração humano. Este é o fogo do qual o próprio Senhor diz:
O granizo, ao cair, faz barulho, e por isto figura abertamente aqueles cuja palavra é severa e castiga asperamente os dissolutos e os irrequietos. A neve, sendo branca, é corretamente o tipo daqueles que são cândidos pela pureza. A água solidifica-se tornando-se gelo pela força do frio. São verdadeiramente gelo aqueles que pelo rigor de sua disciplina reprimem o fluxo da mente e da carne. O vento tempestuoso, isto é, o vento que ora produz, ora desfaz uma borrasca, significa o Espírito Santo, que ora eleva, ora humilha os pensamentos da mente humana. Não incorretamente podem ser ditos vento ou espírito aqueles que, pelo amor, se unem a Deus, que é espírito. De fato, diz o Apóstolo aos Coríntios:
Quem, porém, preferir julgar que as criaturas mencionadas neste salmo designam os maus, poderá entender pelos dragões os maliciosos, pelos abismos os astutos e os enganadores, pelo fogo os cobiçosos, pelo granizo os perseguidores, pela neve os hipócritas, pelo gelo os endurecidos, pelo vento tempestuoso os sediciosos e os amotinados. A todos estes o salmista chama ao louvor de Deus, na medida em que, com estas palavras, os convida com sutileza para que se convertam do mal ao bem. Parece, porém, melhor que pelos dragões e pelas outras criaturas que se lhes seguem se entenda significar-se os bons, por causa das palavras que se acrescentam:
pois os bons sem dúvida cumprem a palavra de Deus, na medida em que obedecem aos preceitos do Senhor. Segue-se:
Os montes designam os adiantados e perfeitos, enquanto que as colinas os principiantes e imperfeitos. O salmista, portanto, nos ensina que não são somente os montes os que louvam a Deus, mas que também as colinas são contadas entre aqueles que cantam o seu louvor. Não desanimem, por conseguinte, as colinas, isto é, aqueles que se iniciam no bem, muito embora não tenham alcançado ainda a perfeição. As árvores frutíferas são os que oferecem aos outros o fruto da doutrina da vida. Os cedros são aqueles que, desprezando as coisas terrenas, se elevam sublimemente à esperança das celestes. Pelas feras entendemos todos os animais silvestres e não domesticados, que vagueiam por locais solitários e fogem da presença dos homens. Pelos rebanhos entendemos os animais domésticos e mansos. As feras, portanto, significam corretamente aqueles que levam uma vida solitária; os rebanhos, aqueles que vivem socialmente com outros. As serpentes são prudentes e rastejam sobre a terra. As aves voam para o alto e se aproximam do céu. Pelas serpentes, portanto, podem designar-se convenientemente todos os que administram as coisas que pertencem à vida ativa; pelas aves, todos aqueles que se elevam, pelas penas das virtudes, à contemplação das coisas celestes. Segue-se:
Pelos reis entendemos todos os que presidem a outros com retidão. Pelos povos entendemos todos aqueles que humildemente obedecem aos seus prelados. Príncipes, na língua latina, soa como "primi incipientes", o que significa "os que começam primeiro". Os príncipes, portanto, significam corretamente os que, precedendo os demais pelo exemplo da boa obra, dão-lhes a forma para a justiça. Por isto é que do próprio Senhor está escrito:
e o bem aventurado apóstolo Pedro diz aos prelados:
Juízes são os que distingüem verazmente o verdadeiro do falso e o bem do mal. Já nos jovens observamos o vigor da fortaleza. Os jovens, portanto, designam corretamente aqueles que são fortes na guerra e vencem o maligno. E o bem aventurado João, falando com eles em sua epístola, lhes diz:
Entendemos por virgens todos os que possuem a integridade virginal do corpo, ou certamente aqueles que, possuindo a integridade da fé e da mente, e unindo-se a Cristo seu esposo, não consentem à corrupção do demônio. Pelos velhos, finalmente, podemos entender todos os que são maduros pela gravidade. Pelos moços, todos aqueles que estão sempre prontos pela velocidade da boa obra. Todos estes que foram mencionados, portanto, vivendo com justiça, cantam o louvor de Deus. Feliz daquele que se reconhecer verdadeiramente possuidor de algum destes bens que foram mencionados, e mísero e miserável o que se perceber vazio de todos. Agora, portanto, irmãos caríssimos, retornemos a nós mesmos e examinemos se por alguma graça estamos no número dos que descrevemos. Vejamos se somos dragões transcendendo pelo menos a alguns pela dimensão de alguma virtude ou opinião; se somos abismo, contendo, na medida em que o possa sofrer a nossa fragilidade, a sabedoria escondida e a profundidade da ciência divina. Estas coisas, entretanto, são muito grandes, e talvez excedam inteiramente a nossa pequenez; nem também são comuns a todos, sendo mais próprias de poucos. Se, portanto, não podemos ser dragões e abismos pela excelência, sejamos pelo menos fogo pelo fervor do espírito, granizo pela correção dos inquietos, neve pela brancura da pureza, gelo coibindo o que de mal flui em nós, vento unindo-nos pelo amor a Deus em espírito. Sejamos montes pela perfeição, ou pelo menos colinas como bons principiantes; árvores frutíferas oferecendo aos outros o fruto da doutrina; cedros, elevando-nos à sublimidade da esperança dos bens celestes. E se não pudermos ser feras conduzindo uma vida solitária, sejamos rebanhos convivendo na mansidão com os demais, serpentes tratando com prudência os negócios da vida ativa e aves voando para a contemplação das coisas celestes. Sejamos, se não do número dos reis, presidindo os outros, pelo menos do número do povo, obedecendo humildemente aos nossos prelados. Sejamos príncipes, oferecendo aos demais o exemplo da justiça. Sejamos juízes, pelo discernimento do que é reto. Sejamos jovens, vencendo o maligno; virgens, possuindo a integridade, se não do corpo, pelo menos da fé e da mente. Sejamos finalmente velhos pela maturidade da gravidade e moços pela velocidade da boa obra. Cada um louve o Senhor segundo o dom que lhe foi especialmente concedido. Não todos, na verdade, podem tudo. E já que em cada uma das noites do ano cantamos estas coisas, quando as pronunciarmos pela boca examinemos se as temos no coração. Louvar o Senhor, de fato, é o nosso especial ministério. Seu louvor será cantado aceitavelmente quando aquilo que for proferido pela boca for também a poesia do coração.
Assim como somente Ele é, por ser verdadeiramente e ser imutavelmente, assim também verdadeiramente somente o seu nome é excelso. E ainda que a criatura tenha o seu ser e um ser elevadíssimo, todavia sua existência não tem nenhuma comparação com a essência do Criador, nem sua elevação com a sua excelência. Porque
E também:
Por isso é que todos os santos, quando progridem na contemplação de Deus, quanto mais admiram o interior da divindade, tanto mais reconhecem nada serem. Nunca, de fato, se leu que Abraão tenha confessado ser cinza, senão quando mereceu conversar com o Senhor (Gen. 18, 27). De fato, talvez acreditasse ser algo, se não se apercebesse da verdadeira essência que estava acima dele. Mas, depois de ter sido elevado em rapto à contemplação do que é imutável, pleno pela potência de tal contemplação, vendo-se a si mesmo viu também nada ser senão pó. Somente Deus é verdadeiramente, porque somente Ele permanece incomutavelmente. Tudo o que agora é de um modo para depois ser de outro já é alguma coisa próxima do não ser; não pode permanecer no seu estado e de algum modo se dirige ao não ser, na medida em que é conduzido a outro pela força do tempo. E o bem aventurado Dionísio Areopagita atesta que nenhuma essência, luz ou vida pode ter comparação alguma com a incompreensível infinitude da divindade, dizendo:
E embora a razão, a inteligência, a luz e as demais coisas visíveis pelas quais algumas vezes são entendidas as coisas invisíveis de Deus, superem e pareçam mais elevadas do que as outras que designam a divindade, mesmo estas, todavia, são semelhanças deficientes da verdade divina. Ela está, de fato, acima de toda a essência, acima de todo o caminho, indistingüível por nenhuma luz, incomparavelmente distante de toda a semelhança de qualquer razão e entendimento. Já que, portanto, somente Deus é verdadeiramente, por ser imutavelmente, corretamente só o seu nome é excelso, e só Ele deve ser exaltado. E principalmente nesta sagrada solenidade em que o unigênito Filho de Deus, coeterno ao Pai eterno, subiu aos céus na substância de nossa carne e sentou- se nas alturas à destra de sua majestade, hoje seu nome é singular e solenemente excelso e exaltado, pois hoje
Hoje aquele
entrou glorioso no Reino dos Céus quando os príncipes do céu levantaram os portões eternos e abriram as portas que haviam fechado durante longo tempo à natureza humana, conforme no-lo declara o salmista, dizendo:
Hoje também
Hoje, igualmente,
E agora, irmãos caríssimos, iniciamos esta palavra pelo que é terreno; elevemo-nos, porém, também por ela ao interior dos céus. E que assim como nos elevamos pela palavra, assim também nos elevemos pela alma, e como nos elevarmos falando, assim nos elevemos dignamente louvando. Louvemos, portanto, o Senhor de coração. Louvemo- Lo pela boca no tempo, para que mereçamos louvá-Lo na eternidade. E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, Nosso Senhor, que é Deus, bendito pelos séculos. Amén. |