Jerusalém, segundo o sentido histórico, é a cidade terrena; segundo o sentido alegórico, a santa Igreja; segundo o sentido moral, a vida espiritual; segundo o sentido anagógico, a pátria celeste. Deixando de lado os outros sentidos, exporemos a seguir o que diz respeito ao sentido moral, esforçando-nos para que, com sua descrição, possamos edificar os bons costumes. Assim como Babilônia, isto é, a vida mundana, tem as suas vias e as demais coisas que já descrevemos, assim também a santa Jerusalém, que é a vida espiritual, possui a disposição de sua edificação no bem. Possui, a saber, o seu muro, as suas vias, os seus edifícios, as suas portas. Um muro exterior circunda-a em toda a sua volta, pelo qual é protegida por uma rigorosa, contínua e perfeita disciplina de bons costumes. Em seu interior possui sete vias nas sete virtudes contrárias aos sete vícios que já descrevemos quando falamos de Babilônia. Na vida santa e espiritual encontramos, de fato, a humildade, que é contrária à soberba; a caridade, que é contrária à inveja; a paz, que é contrária à ira; a alegria espiritual, que é contrária à acédia; a liberalidade, que é contrária à avareza; a abstinência, que é contrária à gula; a continência, que é contrária à luxúria. Não será também inútil descrever as partes destas vias, tanto as que estão de um lado como as que estão de outro. Na primeira via da santa cidade, que dissemos ser a humildade, encontra-se de um lado aquela humildade que o homem possui e que exibe interiormente apenas a Deus em segredo, e de outro aquela humildade que o homem possui e exibe exteriormente e de modo manifesto ao próximo por causa de Deus. O Senhor nos mostra o bom fruto desta virtude ou via quando nos diz:
Quanto mais, de fato, alguém por causa de Deus se humilha no presente, tanto mais sublime será junto de Deus no futuro. A segunda via é a caridade, na qual de uma parte encontra-se o amor de Deus, e de outra o amor do próximo. De um lado, com efeito, é-nos preceituado que amemos a Deus com todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e com toda a memória; e de outro é-nos preceituado amar o próximo como a nós mesmos. O Senhor nos mostra por si mesmo qual e quão bom é o fruto da caridade, onde nos diz que
É daqui também que procede o que nos diz o Apóstolo:
A terceira via da Jerusalém espiritual é a paz. Num dos lados desta via encontra-se a concórdia interior com Deus, no outro a concórdia exterior com o próximo. O Senhor nos preceitua que habitemos em ambas e que esta via esteja no meio de nós quando nos diz:
Quão grande seja o seu fruto Ele também no-lo mostra em outro lugar, onde diz:
Grande é este fruto, um grande bem. Porque,
A quarta via espiritual desta cidade é a alegria, da qual em um lado encontra-se aquela exultação que somente é percebida interiormente pelo afeto, e em outro aquela que também se manifesta exteriormente aos sentidos. Às vezes, de fato, tanta alegria nos é infundida do céu na alma que não somente ela pode ser percebida interiormente, como também pode ser reconhecida exteriormente no semblante, na voz, nos gestos e nos movimentos, conforme nos diz o Salmista:
Se a Sagrada Escritura narra que a voz do povo de Deus, quando se alegrava e louvava ao Senhor, era ouvida ao longe, quem se admirará que quando aquele pai exultou interiormente de alegria pelo filho que retornava ao coração depois de haver prevaricado, o coro e a sinfonia de alegria eram ouvidos juntos do lado de fora (Luc. 15, 25)? Por isso é que também a mesma Escritura testemunha ser-nos proibida a tristeza nas solenidades dos dias sagrados, quando declara:
É pelo mesmo motivo que também o Salvador nos diz:
Esta alegria que é vivida ou exibida aos fiéis no comer e no vestir nas solenidades dos dias sagrados é boa para os que dela fazem bom uso, pois assim como é da casa de Deus que procede para eles, assim também é para a honra de Deus que é vivida por eles. Qual e quão grande seja a utilidade desta virtude no-lo é declarado pelo Apóstolo Paulo onde ele diz, escrevendo aos Coríntios sobre as coletas:
A quinta via da cidade santa é a liberalidade, constituída em um de seus lados pela justa aquisição e em outro pela distribuição feita com discernimento. A justa aquisição constitui um de seus lados porque a liberalidade religiosa e honesta despreza a viver ou dar a riqueza adquirida pelo saque, pela torpeza, pela fraude, pelo furto ou por qualquer outro modo injusto, assim como desprezado-se o sacrifício de louvor feito com pão fermentado. O outro lado desta via é construído pela distribuição feita com discernimento pois, de fato, se ela desse menos do que o justo, tornar-se-ia avareza; e se desse mais do que o justo, já não seria liberalidade, mas prodigalidade. Quão grande seja o fruto da liberalidade o Salvador no-lo mostra quando nos diz no Evangelho:
A sexta via de Jerusalém é a abstinência, na qual de um lado encontra-se a parcimônia e, de outro, a sobriedade. A parcimônia é contrária à glutonaria, e a sobriedade à embriaguez. Nas Escrituras encontram-se muitos exemplos de jejuns e abstinências, dos quais os principais são os jejuns de Moisés, Elias, e de Nosso Senhor e Salvador. Resplandece nos ninivitas quão grande é o fruto do jejum e da abstinência, os quais, por uma abstinência de três dias, aplacaram a ira divina e no lugar da destruição com que haviam sido ameaçados, mereceram o perdão (Jon. 3). A sétima via da santa cidade é a continência ou castidade. Esta de um lado tem a pureza do coração, e de outro a pureza do corpo; ou também, de uma parte a pureza do pensamento e de outra a pureza da ação. Resplandece nas viúvas e nas virgens quão grande é o fruto e o bem desta virtude, da qual as viúvas possuem o sexagésimo e as virgens o centésimo fruto. Denominamos, caríssimos, corretamente estas virtudes de vias ou, para sermos mais precisos, de `plateas' na língua latina, isto é, caminhos largos, adequados para a habitação, próprios para a caminhada e a corrida espiritual, assim como também para todo negócio espiritual, pois todo caminho que conduz à vida, ainda que para os principiantes ou mesmo para os aproveitados pareça estreito e árduo, para os adiantados e perfeitos é comprovadamente largo e plano. É por isto que diz o Salmista:
E também:
De fato, quem quer que possua a perfeita caridade, a qual "lança fora o temor" (I Jo. 4,18), considera doce toda a tentação ou adversidade que lhe possa ocorrer , e pode dizer ainda com o Apóstolo:
Eis o motivo pelo qual sobre a caridade está escrito no Cântico dos Cânticos que
Na cidade espiritual há também uma torre fortíssima, da qual está escrito:
Sabei, caríssimos, que quaisquer homens que defendam sua cidade não têm tanta confiança nos cavalos, nas armas, nas portas, nos muros, ou também em suas forças quanto a têm na torre de sua cidade. Ao fugirem e procurarem abrigo é a torre o seu único refúgio e a sua única segurança. Assim também, para os fiéis que pelejam contra os inimigos espirituais, a única esperança e a única segurança não somente na adversidade como também na prosperidade é a invocação do nome divino. De fato, não ignoram que
Daqui procede igualmente que a santa Igreja universal tenha em suas instituições invocar em primeiro lugar o nome do Senhor ao iniciar as preces divinas, proclamando com fé e confiança:
Jerusalém espiritual tem também duas portas, das quais a primeira e inferior é a fé católica. A segunda e superior é a contemplação divina. Destas duas portas está escrito:
Na primeira porta encontraremos a pastagem da graça, na segunda encontraremos a pastagem da glória. É possível entender-se, ademais, de diversas passagens da Escritura, assim como de declarações de outros escritores e viajantes, que a própria Jerusalém terrestre, segundo a sua antiga localização, estava assentada sobre um declive. Assim como esta, porém, também aquela cidade que é a vida espiritual está assentada sobre um declive e possui seus degraus de uma porta a outra, degraus pelos quais subimos das coisas inferiores às superiores, de modo que, subindo por cada um destes nos afastamos das coisas terrenas e nos aproximamos das celestes. Os que querem viver santamente, portanto, deverão primeiro entrar pela fé. Depois, pelo crescimento da justiça, deverão subir até à contemplação das coisas celestes. O primeiro degrau, portanto, está na primeira porta, ou melhor, esta mesma porta é o primeiro degrau ou a primeira escada da subida. Elevados, assim, do que é terreno, devemos em primeiro lugar por o pé na primeira escada, que é a fé. Em segundo, devemos subir da fé à esperança. Em terceiro, subir da esperança à caridade. Em quarto, subir da caridade ao exercício das demais virtudes, principalmente ao do setenário das principais virtudes, as que nos são descritas naquele lugar do Evangelho onde se diz:
Em quinto devemos subir do setenário das principais virtudes ao senário das boas obras, aquele que nos é descrito no lugar do Evangelho onde Cristo nos diz:
Em sexto devemos subir do senário das boas obras ao ensino. A justiça e a idoneidade se comprova no homem quando quem faz o bem também o ensina aos outros. Deste modo ele se torna imitador do Salvador, do qual está escrito:
O ensino, porém, realiza-se algumas vezes de dois modos, a saber, pelas palavras e pelos milagres. Por isso é que dos primeiros e dos maiores pregadores está escrito:
Em sétimo lugar devemos subir do ensino à contemplação. Destas escadas ou destes degraus de subida está escrito:
E também, em outro lugar:
Quem tiver subido por estes degraus até à porta da contemplação, que está colocada na parte mais alta e como que na saída da cidade, sairá ele próprio espiritualmente, e sobressairá, para que de Jacó se transforme em Israel, de Lia em Raquel, de Fenena em Ana, e de Marta em Maria, e aqueles que tiverem praticado as boas obras possam transformar-se nos que contemplam a divindade. Por isto é que diz o profeta Jeremias:
Por isto também é que se encontra escrito no Cântico dos Cânticos:
Daqui vem igualmente que diga o Salmista:
Apressemo-nos, portanto, irmãos caríssimos, para que depois do trabalho da obra possamos sair para o repouso e a liberdade da contemplação, para que possamos admirar, ainda que de longe, o rei em seu esplendor e a nossa pátria. Subamos de virtude em virtude conforme convém à salvação, para que pelo setenário da subida que descrevemos, possamos chegar ao octonário das bem aventuranças. E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, Nosso Senhor, que é, acima de todos, o Deus bendito, pelos séculos dos séculos. Amén. |