SERMO XXXIX

Sobre a Cidade Santa de
Jerusalém, segundo
o sentido moral.




"Jerusalém, cidade santa,
e cidade do Santo".

Apoc.21,2 / Is.52,1

Jerusalém, segundo o sentido histórico, é a cidade terrena; segundo o sentido alegórico, a santa Igreja; segundo o sentido moral, a vida espiritual; segundo o sentido anagógico, a pátria celeste. Deixando de lado os outros sentidos, exporemos a seguir o que diz respeito ao sentido moral, esforçando-nos para que, com sua descrição, possamos edificar os bons costumes.

Assim como Babilônia, isto é, a vida mundana, tem as suas vias e as demais coisas que já descrevemos, assim também a santa Jerusalém, que é a vida espiritual, possui a disposição de sua edificação no bem. Possui, a saber, o seu muro, as suas vias, os seus edifícios, as suas portas. Um muro exterior circunda-a em toda a sua volta, pelo qual é protegida por uma rigorosa, contínua e perfeita disciplina de bons costumes. Em seu interior possui sete vias nas sete virtudes contrárias aos sete vícios que já descrevemos quando falamos de Babilônia. Na vida santa e espiritual encontramos, de fato, a humildade, que é contrária à soberba; a caridade, que é contrária à inveja; a paz, que é contrária à ira; a alegria espiritual, que é contrária à acédia; a liberalidade, que é contrária à avareza; a abstinência, que é contrária à gula; a continência, que é contrária à luxúria. Não será também inútil descrever as partes destas vias, tanto as que estão de um lado como as que estão de outro.

Na primeira via da santa cidade, que dissemos ser a humildade, encontra-se de um lado aquela humildade que o homem possui e que exibe interiormente apenas a Deus em segredo, e de outro aquela humildade que o homem possui e exibe exteriormente e de modo manifesto ao próximo por causa de Deus. O Senhor nos mostra o bom fruto desta virtude ou via quando nos diz:

"Todo aquele que se humilha
será exaltado".

Luc. 14, 11

Quanto mais, de fato, alguém por causa de Deus se humilha no presente, tanto mais sublime será junto de Deus no futuro.

A segunda via é a caridade, na qual de uma parte encontra-se o amor de Deus, e de outra o amor do próximo. De um lado, com efeito, é-nos preceituado que amemos a Deus com todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e com toda a memória; e de outro é-nos preceituado amar o próximo como a nós mesmos. O Senhor nos mostra por si mesmo qual e quão bom é o fruto da caridade, onde nos diz que

"Destes dois mandamentos
depende toda a Lei e os profetas".

Mat. 22, 40

É daqui também que procede o que nos diz o Apóstolo:

"A plenitude da Lei é o amor".

Rom. 13, 10

A terceira via da Jerusalém espiritual é a paz. Num dos lados desta via encontra-se a concórdia interior com Deus, no outro a concórdia exterior com o próximo. O Senhor nos preceitua que habitemos em ambas e que esta via esteja no meio de nós quando nos diz:

"Tende sal em vós,
e tende paz uns com os outros".

Mc. 9, 50

Quão grande seja o seu fruto Ele também no-lo mostra em outro lugar, onde diz:

"Bem aventurados os pacíficos,
porque serão chamados filhos de Deus".

Mat. 5, 9

Grande é este fruto, um grande bem. Porque,

"Se somos filhos, também somos herdeiros:
herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo".

Rom. 8, 17

A quarta via espiritual desta cidade é a alegria, da qual em um lado encontra-se aquela exultação que somente é percebida interiormente pelo afeto, e em outro aquela que também se manifesta exteriormente aos sentidos. Às vezes, de fato, tanta alegria nos é infundida do céu na alma que não somente ela pode ser percebida interiormente, como também pode ser reconhecida exteriormente no semblante, na voz, nos gestos e nos movimentos, conforme nos diz o Salmista:

"Meu coração e minha carne
exultaram no Deus vivo".

Salmo 83, 3

Se a Sagrada Escritura narra que a voz do povo de Deus, quando se alegrava e louvava ao Senhor, era ouvida ao longe, quem se admirará que quando aquele pai exultou interiormente de alegria pelo filho que retornava ao coração depois de haver prevaricado, o coro e a sinfonia de alegria eram ouvidos juntos do lado de fora (Luc. 15, 25)? Por isso é que também a mesma Escritura testemunha ser-nos proibida a tristeza nas solenidades dos dias sagrados, quando declara:

"Este dia é santificado ao Senhor vosso Deus.
Não estejais tristes, nem queirais chorar.
Ide, e comei carnes gordas
e bebei vinho misturado com mel,
e mandai quinhões
aos que não têm nada preparado para si,
porque este é um dia santo do Senhor.
Não estejais tristes,
porque a alegria do Senhor
é a nossa fortaleza".

2 Esd. 8, 9-10

É pelo mesmo motivo que também o Salvador nos diz:

"Porventura podem os amigos do esposo jejuar,
enquanto o esposo está com eles?"

Luc. 5, 34

Esta alegria que é vivida ou exibida aos fiéis no comer e no vestir nas solenidades dos dias sagrados é boa para os que dela fazem bom uso, pois assim como é da casa de Deus que procede para eles, assim também é para a honra de Deus que é vivida por eles. Qual e quão grande seja a utilidade desta virtude no-lo é declarado pelo Apóstolo Paulo onde ele diz, escrevendo aos Coríntios sobre as coletas:

"Cada um (doe) conforme
propôs no seu coração,
não com tristeza, nem constrangido,
porque Deus ama o que dá com alegria".

2 Cor. 9, 7

A quinta via da cidade santa é a liberalidade, constituída em um de seus lados pela justa aquisição e em outro pela distribuição feita com discernimento. A justa aquisição constitui um de seus lados porque a liberalidade religiosa e honesta despreza a viver ou dar a riqueza adquirida pelo saque, pela torpeza, pela fraude, pelo furto ou por qualquer outro modo injusto, assim como desprezado-se o sacrifício de louvor feito com pão fermentado. O outro lado desta via é construído pela distribuição feita com discernimento pois, de fato, se ela desse menos do que o justo, tornar-se-ia avareza; e se desse mais do que o justo, já não seria liberalidade, mas prodigalidade. Quão grande seja o fruto da liberalidade o Salvador no-lo mostra quando nos diz no Evangelho:

"Dai, e dar-se-vos-á.
Uma medida boa,
cheia, recalcada e acogulada,
vos será lançada no seio".

Luc. 6, 38

A sexta via de Jerusalém é a abstinência, na qual de um lado encontra-se a parcimônia e, de outro, a sobriedade. A parcimônia é contrária à glutonaria, e a sobriedade à embriaguez. Nas Escrituras encontram-se muitos exemplos de jejuns e abstinências, dos quais os principais são os jejuns de Moisés, Elias, e de Nosso Senhor e Salvador. Resplandece nos ninivitas quão grande é o fruto do jejum e da abstinência, os quais, por uma abstinência de três dias, aplacaram a ira divina e no lugar da destruição com que haviam sido ameaçados, mereceram o perdão (Jon. 3).

A sétima via da santa cidade é a continência ou castidade. Esta de um lado tem a pureza do coração, e de outro a pureza do corpo; ou também, de uma parte a pureza do pensamento e de outra a pureza da ação. Resplandece nas viúvas e nas virgens quão grande é o fruto e o bem desta virtude, da qual as viúvas possuem o sexagésimo e as virgens o centésimo fruto.

Denominamos, caríssimos, corretamente estas virtudes de vias ou, para sermos mais precisos, de `plateas' na língua latina, isto é, caminhos largos, adequados para a habitação, próprios para a caminhada e a corrida espiritual, assim como também para todo negócio espiritual, pois todo caminho que conduz à vida, ainda que para os principiantes ou mesmo para os aproveitados pareça estreito e árduo, para os adiantados e perfeitos é comprovadamente largo e plano. É por isto que diz o Salmista:

"Corri pelo caminho
dos teus mandamentos,
pois dilataste o meu coração".

Salmo 118, 32

E também:

"De toda a perfeição vi o fim;
teu mandamento, porém,
é imensamente amplo".

Salmo 118, 96

De fato, quem quer que possua a perfeita caridade, a qual "lança fora o temor" (I Jo. 4,18), considera doce toda a tentação ou adversidade que lhe possa ocorrer , e pode dizer ainda com o Apóstolo:

"Os sofrimentos do tempo presente
não têm proporção com a glória vindoura
que se manifestará em nós".

Rom. 8, 18

Eis o motivo pelo qual sobre a caridade está escrito no Cântico dos Cânticos que

"O amor é mais forte do que a morte,
o zelo do amor é tenaz como o inferno,
suas lâmpadas são lâmpadas de fogo e de chamas.

As muitas águas não puderam extinguir a caridade,
nem os rios terão força para a submergir.

Ainda que o homem dê
todas as riquezas de sua casa pelo amor,
ele as desprezará como um nada".

Cant. 8, 6-7

Na cidade espiritual há também uma torre fortíssima, da qual está escrito:

"O nome do Senhor é uma torre fortíssima,
a ele se acolhe o justo,
e encontra um refúgio elevado".

Prov. 18, 10

Sabei, caríssimos, que quaisquer homens que defendam sua cidade não têm tanta confiança nos cavalos, nas armas, nas portas, nos muros, ou também em suas forças quanto a têm na torre de sua cidade. Ao fugirem e procurarem abrigo é a torre o seu único refúgio e a sua única segurança. Assim também, para os fiéis que pelejam contra os inimigos espirituais, a única esperança e a única segurança não somente na adversidade como também na prosperidade é a invocação do nome divino. De fato, não ignoram que

"Aquele que invocar
o nome do Senhor
será salvo".

Joel 2, 32

Daqui procede igualmente que a santa Igreja universal tenha em suas instituições invocar em primeiro lugar o nome do Senhor ao iniciar as preces divinas, proclamando com fé e confiança:

"Deus, vinde em meu auxílio".

Salmo 69, 2

Jerusalém espiritual tem também duas portas, das quais a primeira e inferior é a fé católica. A segunda e superior é a contemplação divina. Destas duas portas está escrito:

"Entrará e sairá,
e encontrará pastagem".

Jo. 10, 9

Na primeira porta encontraremos a pastagem da graça, na segunda encontraremos a pastagem da glória.

É possível entender-se, ademais, de diversas passagens da Escritura, assim como de declarações de outros escritores e viajantes, que a própria Jerusalém terrestre, segundo a sua antiga localização, estava assentada sobre um declive. Assim como esta, porém, também aquela cidade que é a vida espiritual está assentada sobre um declive e possui seus degraus de uma porta a outra, degraus pelos quais subimos das coisas inferiores às superiores, de modo que, subindo por cada um destes nos afastamos das coisas terrenas e nos aproximamos das celestes.

Os que querem viver santamente, portanto, deverão primeiro entrar pela fé. Depois, pelo crescimento da justiça, deverão subir até à contemplação das coisas celestes. O primeiro degrau, portanto, está na primeira porta, ou melhor, esta mesma porta é o primeiro degrau ou a primeira escada da subida. Elevados, assim, do que é terreno, devemos em primeiro lugar por o pé na primeira escada, que é a fé. Em segundo, devemos subir da fé à esperança. Em terceiro, subir da esperança à caridade. Em quarto, subir da caridade ao exercício das demais virtudes, principalmente ao do setenário das principais virtudes, as que nos são descritas naquele lugar do Evangelho onde se diz:

"Bem aventurados os pobres de espírito,
porque deles é o Reino dos Céus.

Bem aventurados os mansos,
porque possuirão a terra.

Bem aventurados os que choram,
porque serão consolados.

Bem aventurados os que tem fome
e sede de justiça,
porque serão saciados.

Bem aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.

Bem aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus.

Bem aventurados os pacíficos,
porque serão chamados filhos de Deus".

Mt. 5, 1-9

Em quinto devemos subir do setenário das principais virtudes ao senário das boas obras, aquele que nos é descrito no lugar do Evangelho onde Cristo nos diz:

"Tive fome,
e me destes de comer;

tive sede,
e me destes de beber;

era peregrino,
e me recolhestes;

estava nú,
e me vestistes;

enfermo,
e me visitastes;

no cárcere,
e me fostes visitar".

Mt. 25, 35-36

Em sexto devemos subir do senário das boas obras ao ensino. A justiça e a idoneidade se comprova no homem quando quem faz o bem também o ensina aos outros. Deste modo ele se torna imitador do Salvador, do qual está escrito:

"Falei de todas as coisas
que Jesus começou a fazer e a ensinar".

Atos 1, 1

O ensino, porém, realiza-se algumas vezes de dois modos, a saber, pelas palavras e pelos milagres. Por isso é que dos primeiros e dos maiores pregadores está escrito:

"Eles, tendo partido,
pregaram por toda a parte,
cooperando com eles o Senhor,
e confirmando a sua pregação
com os milagres que a acompanhavam".

Mc. 16, 20

Em sétimo lugar devemos subir do ensino à contemplação. Destas escadas ou destes degraus de subida está escrito:

"Para lá subiram as tribos,
as tribos do Senhor,
testemunhas de Israel,
para confessarem o nome do Senhor".

Salmo 121, 4

E também, em outro lugar:

"Bem aventurado o homem
cujo auxílio vem de ti,
as subidas dispôs em seu coração.

No vale das lágrimas,
no lugar onde o Legislador o tiver colocado,
Ele lhe dará a bênção.

Caminharão de virtude em virtude,
e verão o Deus dos deuses em Sião".

Salmo 83, 6-8

Quem tiver subido por estes degraus até à porta da contemplação, que está colocada na parte mais alta e como que na saída da cidade, sairá ele próprio espiritualmente, e sobressairá, para que de Jacó se transforme em Israel, de Lia em Raquel, de Fenena em Ana, e de Marta em Maria, e aqueles que tiverem praticado as boas obras possam transformar-se nos que contemplam a divindade. Por isto é que diz o profeta Jeremias:

"É bom para o homem
ter levado o jugo desde a sua mocidade;
sentar-se-á sozinho,
pois se levantará sobre si mesmo".

Lam. 3, 27-8

Por isto também é que se encontra escrito no Cântico dos Cânticos:

"Saí, filhas de Sião,
e vêde o Rei Salomão,
com o diadema com o qual
sua mãe o coroou
no dia de seu casamento,
e na alegria de seu coração".

Cant. 3, 11

Daqui vem igualmente que diga o Salmista:

"Ali está o jovem Benjamim,
em grande elevação de mente".

Salmo 67, 28

Apressemo-nos, portanto, irmãos caríssimos, para que depois do trabalho da obra possamos sair para o repouso e a liberdade da contemplação, para que possamos admirar, ainda que de longe, o rei em seu esplendor e a nossa pátria. Subamos de virtude em virtude conforme convém à salvação, para que pelo setenário da subida que descrevemos, possamos chegar ao octonário das bem aventuranças.

E que para tanto se digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, Nosso Senhor, que é, acima de todos, o Deus bendito, pelos séculos dos séculos.

Amén.