LIVRO QUINTO

1.

Esclareci suficientemente a vasta experiência de que necessita educador em suas lutas pela verdade. Conseqüentemente deverei falar ainda de outra questão que também é fonte de inumeráveis perigos. Melhor, não é bem a ela que se deve dar a culpa, mas aos que não sabem servir-se dela. Em si ela traz muitas bênçãos e benefícios quando os homens, que dela fazem uso, forem diligentes e estudiosos. Mas, finalmente, de que se trata?

Trata-se do grande esforço a ser empregado nas pregações públicas ao povo. Logo de início surge um problema: a maioria dos súditos não quer reconhecer o pregador como mestre, mas, desprezando os ensinamentos, comporta-se como espectadores nos jogos profanos. Como lá, a multidão se divide: uns torcendo por este, outros por aquele. O mesmo acontece por ocasião dessas pregações. Uns preferem a este, outros àquele, ouvindo as pregações com simpatia ou com antipatia.

Esse não é o único problema. Acrescem outros não menos importantes. Acontecendo que o pregador intercale em suas palavras algum trecho de outro escritor, expõe-se a insultos maiores do que os próprios ladrões. Muitas vezes, na realidade, não citou coisa nenhuma; apenas caiu na suspeita, tendo que sofrer como se fosse um plagiário. Afinal, por que ocupar-me com citações de trabalhos alheios? Nem sempre o pregador consegue apresentar uma elaboração própria com a devida eficiência. Pois a maioria dos ouvintes não costuma escutá-lo para tirar algum proveito, mas como passatempo, como se estivesse julgando autores de tragédias ou tocadores de citaras. Desta forma, o desejo da multidão espera justamente aquela espécie de eloqüência por mim condenada, apegando-se a ela mais do que os sofistas em suas discussões públicas.

2.

Portanto, torna-se necessário mostrar extraordinária coragem que supere minha insignificância, a fim de conseguir as vontades desordenadas e perniciosas da massa, impelindo-a a escutar as pregações em seu proveito. O povo é que deve seguir o pregador, e não este, os desejos da grande massa. Ele somente o conseguirá por meio de duas qualidades, a saber: o desprezo de quaisquer elogios e a força da própria eloqüência.

Se faltar um desses postulados, também o outro cairá por terra. Mesmo que o pregador despreze elogios e encômios, se não apresentar uma pregação condimentada com graça e sal, facilmente será menosprezado pela massa, que não há de tirar proveito algum de seus esforços empregados. Caso souber apresentar um discurso excelente quanto à forma e ao conteúdo, mas se mostrar suscetível a aplausos, novamente seu esforço será prejudicial, tanto para ele como para os ouvintes, pois na avidez por aplausos procura mais agradar do que ser útil. Assim como quem despreza aplausos, sem saber falar, não conseguirá resultado pelo fato de contrariar os desejos da multidão; quem se deixa levar pelo desejo de aplausos, mesmo dispondo de qualidades de bom orador, não procurará o bem do povo, mas apresenta o que possa agradá-lo e servir-lhe de passatempo com a única finalidade de alcançar aplausos mais estrondosos.

3.

Um superior perfeito deve, portanto, ser competente em ambos os sentidos, a fim de que não aconteça que uma das qualidades se torne ineficiente pela falta da outra. Se ao apresentar-se em público para pronunciar algo capaz de sacudir os indiferentes titubear e gaguejar, não pode esperar resultado. Os censurados, irritados com suas palavras, começam por escarnecê-lo devido à falta de habilidade, acreditando poder assim encobrir a própria vergonha.

Por isso, a exemplo de um corredor na arena, ele deverá esforçar-se por adquirir a perfeição nos dois postulados, para que possa movimentarse em ambos sempre de acordo com as exigências do momento. Somente, não oferecendo motivo de censura, ele poderá fazer uso de seu direito de censurar e castigar, de impor penitência e de perdoar. Não sendo assim, ser-lhe-á muito difícil esta atividade. O bom senso exige, portanto, que não se restrinja ao desprezo de quaisquer aplausos, mas procure aperfeiçoar-se na eloqüência, a fim de que tenha resultados bons e eficientes.

4.

Que mais deverá ser objeto de seu desprezo? As críticas e os apoucamentos da parte da multidão. Tratando-se de críticas injustificadas - os superiores não escaparão a censuras injustas - será conveniente não deixar-se amedrontar e irritar por elas, nem desprezálas simplesmente. Deve procurar suprimi-Ias o mais depressa possível, mesmo as levantadas por gente simples. Pois não existe nada tão capaz de aumentar ou diminuir uma boa fama como a loquacidade da massa. Ela costuma escutar sem critério e propalar o que ouviu; gosta de tagarelar sobre tudo sem preocupar-se com a verdade. Contudo, por causa disso não deverá desprezar a multidão, mas convencer os acusadores, e remover, logo de início, qualquer suspeita que possa surgir. Se, porém, apesar de todos os esforços, os acusadores não se deixarem convencer, ainda haverá tempo e motivo para entregá-los ao desprezo geral. Caso um superior desanimar em tais circunstâncias, acho que também não seria capaz de produzir algo de prestável e excelente. Desânimo e preocupações debilitam a força da alma, deixando-a em extrema fraqueza.

Portanto, o sacerdote deve mostrar o mesmo comportamento para com seus súditos como um pai para com seus filhos menores. Como o pai se mostra indiferente se fazem travessuras, brigam ou choram, não fica vaidoso se riem ou se mostram satisfeitos de alguma outra forma, não devemos orgulhar-nos dos encômios da grande massa, nem desanimar por causa de suas criticas. Isso é difícil caro amigo, e chego a achá-lo quase impossível! Não ficar satisfeito ao ser louvado, não sei se algum homem já o conseguiu. É claro que, sentindo satisfação nisso, também procure consegui-la. E procurá-la sem a conseguir é natural que leve ao desânimo e à tristeza. Tal como com aqueles que procuram toda sua felicidade na riqueza se sentem oprimidos ao caírem em pobreza e os que estão acostumados a uma vida opulenta já não suportam a vida simples, acontece com os que ambicionam louvores e aplausos. Sucumbem espiritualmente como quem sofre fome, não só ao serem censurados sem motivo, mas principalmente quando, acostumados a receber aplausos, não os recebem, ou ouvem que outros são louvados. E o que achas? Quantas dificuldades, quantas derrotas deverá enfrentar quem ousa querer ensinar incumbido de tal ambição? Jamais encontrarás o mar sem ondas; tampouco tua alma estará sem problemas e cuidados.

5.

O fato de o pregador possuir grande poder de eloqüência - parece-me que são muito poucos - não o dispensa de um trabalho contínuo e sério. Visto a eloqüência não ser dom natural, mas resultado de contínua aplicação e estudo, ela abandona até mesmo a quem conseguiu a maior perfeição, se não se aplicar em constantes exercícios. Por isso, o mais eloqüente deve empregar maiores esforços do que o menos dotado. Caso ambos se mostrarem negligentes, o prejuízo causado não será o mesmo. Para o primeiro será tanto maior, quanto for a diferença entre ambos. Ao menos eloqüente dificilmente alguém criticará, caso não consiga apresentar algo de notável. O perito em eloqüência, porém, se não apresentar algo cada vez melhor do que se espera, estará sujeito às críticas mais amargas provindas de todos os lados.

Os menos eloqüentes costumam ser louvados pelo pouco que apresentam, enquanto as pregações dos mais eloqüentes serão objeto de desprezo e escárnio, se não apresentarem algo de especial e digno de admiração. Os ouvintes, como bem sabes, não julgam apenas conteúdo e forma da pregação, mas, sobretudo, a pessoa do pregador. Quem portanto se distingue dos demais por sua eloqüência, deverá também empregar esforços que se distingam dos de todos os outros. Nem a circunstância de a natureza humana ser frágil e imperfeita servir-lhe-á de eventual desculpa. Caso a pregação não for condizente com a fama de que goza, sua apresentação será motivo de censura e escárnio da parte da multidão. E ninguém toma em consideração que eventualmente desânimo e medo lhe possam ter turvado a clareza do raciocínio, que uma excitação provocada por algum problema lhe possa ter impedido o perfeito desenvolvimento dos pensamentos, ou, finalmente, que a um homem mortal é simplesmente impossível apresentar-se sempre o mesmo, acertando constantemente em cheio quando, pelo contrário, é perfeitamente natural enganar-se alguma vez e produzir menos do que se poderia esperar de sua capacidade. Não querem admitir nada de tudo isto; ao contrário, como se tivessem um anjo para ser julgado, acumulam as mais desencontradas acusações. Aliás, por natureza o homem costuma não enxergar as boas qualidades do próximo, mesmo que sejam as mais extraordinárias; tão logo apareça um erro, mesmo o mais insignificante e muito raro, é imediatamente anotado, criticado acerbamente e jamais esquecido. Assim já aconteceu muitas vezes que uma coisa insignificante e desprezível diminuísse a fama e a honra de homens dignos e estimados.

6.

Vês, caro amigo, que é justamente o orador mais eloqüente que mais esforços deve empregar. Além de grande diligência deverá dispor ainda de longanimidade que todos os outros podem dispensar. Pois haverá quem continuamente o ataque, mesmo injustamente e sem razão; ainda que não achem outra acusação a não ser o fato de estar gozando de grande estima, com ódio o perseguem. É mister que suporte essa inveja amarga com nobre indiferença. Como os acusadores não conseguem esconder esse seu ódio condenável, injustificadamente acumulado, falam mal dele, caluniam-no maliciosamente e praticam outras injúrias. Uma alma sensível a isso sofreria e pereceria amargurada. Estes homens ainda vão mais longe. Não procuram vingar-se apenas por si mesmos. Tentam consegui-lo também através de outros. Não raro cumulam qualquer pregador insignificante com as maiores honrarias e encômios. Há os que agem dessa forma por ignorância; outros, por ignorância combinada com inveja. Por conseguinte nunca o fazem para encorajar um orador imperito, mas, ostensivamente, para humilhar o bom orador.

O orador eloqüente tem que enfrentar não só um por um esses adversários, mas, muitas vezes, também a malícia de todo o povo. É impossível que os participantes de uma ação litúrgica sejam todos formados; pelo contrário, a maioria costuma compor-se de nãoformados. É verdade que também entre estes existem alguns mais competentes. Mas distam dos realmente capazes de julgar uma pregação tanto quanto eles mesmos do resto da multidão. Por conseguinte, como entre os ouvintes em geral se encontra apenas um ou outro capaz de julgar, acontece que justamente o melhor orador receba menos aplausos, ficando, muitas vezes, até sem qualquer louvor. Para tais situações deverá possuir extraordinária generosidade, perdoando os ignorantes e compadecendo-se dos infelizes que assim se comportam por pura inveja. Nunca deverá chegar à conclusão de que seu talento de orador tenha sido diminuído. Assim também um mestre de pintura não deverá desanimar e considerar má sua pintura, somente porque imperitos na arte zombem dela e a ridicularizem. O contrário também não deverá acontecer. Uma pintura que realmente nada vale não lhe deverá ser sobremaneira cara só porque alguns imperitos a tenham admirado!

7.

Um artista talentoso deve também olhar as suas obras de arte com crítica. Pode achá-las boas ou medianas conforme o julgar sua razão mais ou menos esclarecida. Nunca, porém, tomará em conta a opinião de imperitos que de arte nada entendem. Da mesma forma, quem se apresentar perante o público como pregador, deverá ficar insensível aos encômios dos outros e jamais desanimar devido às suas críticas; em suas pregações procure apenas agradar a Deus. Só Deus deverá servir-lhe de orientador e fim ao preparar suas práticas; jamais os louvores e aplausos da multidão. Caso receba aplausos, não os rejeite; caso não os receba, não os procure e jamais se deixe desanimar! Grande consolo lhe será sempre a consciência de ter procurado apenas a benevolência de Deus.

8.

Caso o pregador se deixar levar pela ambição de aplausos baratos, nem seus esforços, nem sua eloqüência lhe serão vantajosos. Quem não puder suportar crítica, mesmo injustificada, da parte da multidão, automaticamente relaxa em seus esforços, deixando de aplicar-se na preparação das práticas. Por isso é necessário que um bom pregador, antes de tudo, saiba desprezar os aplausos da massa. Toda a sua eloqüência de nada vale, se apenas procurar aplausos. Num exame mais profundo chega-se à conclusão de que também o menos perito em eloqüência deverá desprezar os aplausos da multidão, não menos do que o bom orador. Procurando a admiração da massa, estará sujeito a muitos erros. Não sendo capaz de igualar-se aos bons oradores, distinguindose na eloqüência, procurará persegui-los insidiosamente com inveja e críticas ridículas, para não mencionar coisas piores. Esforçar-se-á até, pelo preço de sua vida, por diminuir a glória deles, colocando-a abaixo de sua própria insignificância. Além de tudo sentirá, por ocasião de suas pregações, uma espécie de paralisia espiritual que não o deixa nem raciocinar com lógica.

E o resultado? Sempre menos aplausos! Assim, para quem não consegue desprezar encômios e louvores, já o fato de os aplausos diminuírem é suficiente para desencorajá-lo e tirar-lhe toda a vontade de trabalhar.

Também o agricultor, obrigado a lavrar a terra pedregosa sem resultado compensador, perderá a vontade de trabalhar, se não estiver sob a ameaça da fome iminente.

Ora, se quem dispuser do poder da palavra já necessita de contínuos exercícios para conservar suas qualidades retóricas, o que direi de quem só a custo consegue juntar algo de aproveitável? Caso alguém dos súditos conseguir superá-lo na arte de falar, ele necessitará de uma alma quase divina para não ser comida totalmente pela inveja e para não perder-se inexoravelmente. Para que alguém de dignidade mais elevada seja superado por alguém de dignidade inferior de tal modo que este o tolere generosamente, não basta, na verdade, uma alma comum como a minha. Para isso se precisa de uma alma diamantina. Se aquele que o superar em glória for compreensivo e modesto, a desgraça não será de todo insuportável. Se ele, porém, se apresentar orgulhoso, presunçoso e cheio de ambição, levá-lo-á ao ponto de desejar todos os dias a morte. Há de amargurar a sua vida insultando-o em público, ridicularizando-o às escondidas, usurpando grande parte de sua autoridade, e apresentando-se como chefe. Em tudo isso ele se apresenta com a máxima segurança, pois considera-se dono da palavra e, com isso, da estima da multidão.

Ou porventura não sabes como, nos dias de hoje, a arte de falar é superestimada e como rapidamente se torna ídolo da multidão quem dela souber fazer uso? Isso não vale só entre os pagãos. Também dentro das nossas comunidades de fé.

Então pergunto: Como é que alguém suportará a vergonha de ver, enquanto ele mesmo estiver falando, como todos se recolhem num silêncio sepulcral, como se mostram vexados e ansiosos que termine a prática como pelo término de um trabalho insano? Ao mesmo tempo que ele observa como todos se mantêm atentos às palavras do outro; mesmo depois de longo discurso não se mostram entediados, ficando até descontentes ao notarem o orador finalizar e irritados caso não queira falar! Talvez em tua experiência aches tratarse de coisas ridículas e desprezíveis; no entanto, creias, são suficientes para paralisar a força espiritual de quem não conseguiu desprender-se totalmente das paixões humanas, revestindo-se da espiritualidade daqueles seres incorpóreos que não conhecem inveja, nem ambição, nem outra paixão qualquer.

Se existir um homem capaz de vencer esta fera, tão difícil de ser caçada, isto é, a opinião da multidão, se conseguir desprezá-la, cortar-lhe as numerosas cabeças, ou antes, nem sequer deixar que elas cresçam, esse sim com toda facilidade rejeitará também qualquer outra crítica, podendo repousar no porto seguro. No entanto, não tendo conseguido desprender-se dela, terá que enfrentar as lutas mais diversas, como inquietação contínua, insegurança e todo esse exército de coisas desagradáveis que lhe invadirão a alma. Para que, enfim, enumerar ainda todos os outros aborrecimentos, que não poderá descrever nem compreender quem já não tiver ocupado tal cargo?