LIVRO SEGUNDO

1.

Poderia ainda estender-me mais intensamente sobre a questão, se é lícito usar da astúcia dolosa para uma finalidade boa; mais ainda, que tais artimanhas nem deveriam ser chamadas dolo ou logro, mas, muito antes, ser consideradas cálculo digno de admiração. Mas o que foi dito já deve ser o suficiente para minha justificação; pois tornarse-ia enfadonho e fastidioso delongar-me demasiadamente. De resto, agora, deve ser tua vez de provar que a astúcia em questão não tenha sido usada em tua vantagem.

Basílio respondeu: Sim, concordo; qual, porém, é a vantagem que tirei destas tuas artimanhas, desta tua prudência, ou como queiras chamar este teu comportamento? Qual a vantagem, pois, que me possa convencer de não ter sido iludido?

Porventura, retruquei, poderia haver vantagem maior do que ser posto numa atividade que o próprio Cristo declarou prova de amor por Ele? Pois são suas as palavras dirigidas ao príncipe dos apóstolos:

"Pedro, amas-me"?

e depois da afirmação deste, acrescenta:

"Se me amas, apascenta os meus cordeiros".
Jo. 21, 15-17

Aqui o Mestre pergunta ao discípulo "amas-me", não para ser ensinado; pois, como seria isto possível para quem perscruta todos os corações? Pergunta para demonstrar quanto o preocupa o pastoreio de seus rebanhos. Se isto é tão evidente, é claro também que foi preparado um prêmio grandioso e indizível para quem se ocupa com o que o próprio Cristo tanto estima. Vendo como alguns dentre nós cuidam de seus criados e até de seus rebanhos de gado, costumamos taxar este seu zelo de expressão de amor, mesmo que todos estes bens possam ser comprados a dinheiro. Quanto mais rico prêmio pagará ao pastor de seu rebanho aquele que adquiriu a sua grei não a dinheiro, ou outro preço material, mas por sua própria morte, pagando com seu Sangue o preço real pelos seus? Quando, em seguida, o discípulo respondeu: "Senhor, tu sabes que te amo", tomando como testemunha o próprio Amado, o Salvador, não se contentando com isto, acrescentou ainda outra prova de seu amor. Não queria submeter à prova o amor de Pedro, o que já se tinha evidenciado por uma série de fatos, mas intencionava mostrar a Pedro e a todos nós quanto ele próprio amava sua Igreja, a fim de que nós desenvolvêssemos todo o nosso zelo ao entrarmos no seu serviço. Porque Deus não poupou o próprio Filho, o único, mas entregou-o por todos nós. Fê-lo a fim de reconciliar os seus inimigos e conseguir para si um povo exclusivamente seu. E por que derramou o seu Sangue? Para arrebanhar a sua grei que Ele confiou a Pedro e seus sucessores. Com toda razão Cristo disse:

"Quem é pois o servidor fiel e prudente
que o patrão encarregou de cuidar de sua casa"?
Mt. 24, 45

Novamente esta pergunta é como a palavra de um homem que se sente constrangido. Quem, porém, a apresentou, não o fez por constrangimento. Mas, como na interrogação feita a Pedro - se este o amava -, não pergunta porque tivesse necessidade de ser instruído sobre o amor do discípulo, mas para mostrar a nós o excesso de seu amor, assim também agora, ao perguntar "quem é o servidor fiel", não o faz, como se não conhecesse o servidor fiel e prudente, mas para demonstrar-nos a raridade desta fidelidade e prudência, a dignidade e a importância do cargo. Veja também o alto prêmio:

"Ele o estabelecerá sobre todos os seus bens".
Mt. 24, 47

2.

Ainda queres discutir comigo, como se não tivesse usado de astúcia em boa intenção? Pois serás estabelecido sobre todos os bens de Deus, administrando o mesmo cargo que Pedro, de quem o próprio Senhor afirmou que superaria a todos os outros apóstolos. A Pedro Ele disse:

"Amas-me mais do que estes outros?
Apascenta o meu rebanho".

Poderia ter dito:

"se me amas,
então exerce-te no jejum, dorme no chão,
faze vigílias rigorosas, cuida dos oprimidos,
sê pai para os órfãos
e sê como um marido para a mãe deles".

Deixando tudo isto de lado, o que diz?

"Apascenta minhas ovelhas".

Todas estas tarefas enumeradas facilmente poderiam ser empreendidas por súditos não só homens, mas também mulheres. Se, porém, se tratar de ser chefe de uma Igreja, de assumir a incumbência de cuidar de tantas almas, de tão grande missão deverão ser excluídas as mulheres todas e não poucos dos homens. Devem ser escolhidos somente aqueles que se sobressaem de maneira excepcional, que, em nobreza espiritual, superam a todos ainda mais do que Saul superava todo o povo hebraico em altura corporal. Porque aqui não se deve olhar apenas a altura dos ombros, mas, quanta a diferença entre as criaturas racionais e irracionais, tanto o pastor deve sobressair do rebanho que lhe for confiado, para não dizer mais. Pois aqui se trata de bens muito mais preciosos. Quem perdeu algumas ovelhas - seja que lobos as dilaceraram, ladrões as levaram, uma epidemia ou um desastre as dizimou - com certeza conseguirá perdão da parte do dono do rebanho; e, caso lhe for exigida substituição do perdido, esta exigência poderia ser satisfeita com indenização pecuniária. A quem, porém, forem confiados homens racionais - o rebanho de Cristo - a este não se impõe pena pecuniária, caso perder suas ovelhas, mas ele perderá a sua própria alma.

Portanto, a luta que ele tem que enfrentar será mais renhida e difícil. Não precisa lutar contra lobos, não precisa temer ladrões, também não precisa manter afastadas epidemias e doenças; - mas: deve fazer guerra! Contra quem? Com quem deve lutar? - Escuta as palavras de Paulo:

"Não temos que lutar contra carne e sangue,
mas contra as chefias, os poderes,
os dominadores deste mundo das trevas
e os espíritos malignos dos ares".
Ef. 6, 12

Vês a grande multidão dos inimigos e suas terríveis linhas de batalha, não blindadas com ferro, mas armadas com sua própria natureza? Ainda queres ver outro exército, rude e indômito, que persegue este rebanho? Poderás vê-lo do mesmo ponto de observação, pois o mesmo apóstolo que enumerou aqueles outros adversários, também os descreveu, dizendo mais ou menos o seguinte:

"São bem conhecidas as obras da carne:
prostituição, impureza, libertinagem, idolatria,
feitiçaria, inimizades, brigas, ambições, ira,
cobiça, dissensões, divisões, invejas,
bebedeiras, rancores, intrigas, arrogâncias,
orgias e coisas semelhantes".
Gl. 5, 19-20; II Cor. 12, 20

Não enumerou a todos os inimigos, mas deixou ao nosso critério encontrar outros, em conseqüência dos citados.

Podemos observar, no caso do pastor de animais irracionais, que os que querem destruir o rebanho, vendo fugir o pastor, abandonam a perseguição da mesma, satisfazendose com o roubo dos animais. Aqui, porém, mesmo depois de se terem apoderado do rebanho total, não deixam o pastor, mas, pelo contrário, investem mais furiosos e com mais coragem, não descansando até destruí-lo totalmente, ou até eles próprios serem derrotados.

Acresce ainda que os sofrimentos dos animais - provenientes de fome ou epidemia, de ferimento ou de outro mal - são facilmente conhecidos e curados. Existem muitos meios de curar eis sofrimentos dos animais. Os pastores têm o poder perfeito de obrigar os animais a aceitar os medicamentos, caso não os queiram; se necessário, facilmente, podem ser amarrados para aplicar-lhes queimaduras ou cortes. Ainda, caso a doença o exigir, podem ser fechados no curral por muito tempo, podese restringir-lhes até a água. E os pastores, com grande facilidade, podem empregar quaisquer meios, que, conforme sua experiência, achem vantajosos para a saúde de suas ovelhas.

3.

No que, porém, diz respeito às doenças dos homens, em primeiro lugar não é fácil diagnosticá-las. Pois ninguém

"conhece as coisas do homem,
senão o espírito do homem que nele está".
I Cor. 2, 11

Como então alguém poderá aplicar medicamento contra uma doença de que desconhece o caráter? Pois, muitas vezes, nem consegue constatar se existe alguma doença. Quando, porém, a doença é manifesta, surgem dificuldades maiores ainda. À força não se pode curar um homem doente como o faz o pastor com suas ovelhas. Às vezes, também nos homens, torna-se mister amarrar, negar alimentos, queimar e cortar. Todavia, a decisão de aceitar ou não tal tratamento não é de quem o queira aplicar, mas de quem o tiver que suportar. Isto bem o expressou aquele homem digno de toda admiração ao escrever aos Coríntios.

"Não que pretendêssemos dominar a vossa fé,
mas contribuir para vossa alegria".
II Cor 1, 24

De maneira alguma pode-se permitir aos cristãos querer corrigir, à força, os erros dos pecadores. Realmente os juízes profanos usam de todo o seu poder contra os malfeitores, tão logo os reconheçam réus, e os impedem, pela força., de continuar no modo de vida, mesmo contra a vontade deles. Entre nós, porém, é uso corrigir tal homem não pela violência, mas pela persuasão. Pois, de um lado, as leis não nos cedem tal poder no combate ao pecado; de outro, caso o tivéssemos, não deveríamos usá-lo, porque Deus dá a coroa a quem de livre vontade se abstém do pecado e não a quem o evita obrigado. Daí precisa-se de grande habilidade para convencer os doentes a se submeterem voluntariamente à medicação dos sacerdotes; e que além disso saibam ser-lhes gratos pela cura. Porque quando alguém, apesar de amarrado, se levanta num salto - pois a liberdade para isto lhe assiste - aumenta seu mal; quando não dá ouvido às palavras cortantes como ferro, com este seu desprezo abrirá novas feridas, e, o que deveria conseguir sua cura, será causa de mal ainda pior. Não há ninguém que consiga curar um doente por coação e contra a vontade dele.

4.

O que fazer, pois? Caso se trate benignamente uma ferida que exige um corte profundo, consegue-se remover só uma parte, deixando outra. Praticando-se, porém, o corte profundo sem piedade, pode acontecer que as dores causadas levem o doente ao desespero: rasga as ligaduras, tira o ungüento aplicado e perder-se-á por completo depois de ter rompido as algemas da coação. Poderia citar muitos que deixaram arrebatar-se às perversidades extremas, somente porque tinham sido punidos em desproporção a seus crimes.

Pois não se deve, sem mais nem menos, aplicar castigo na medida dos pecados cometidos, mas é precisa tomar em conta a intenção dos pecadores; caso contrário, querendo consertar algo quebrado, aumentarse-ia a fenda aberta, e, em ver de levantar o caído, seria lançado para dentro de um abismo mais profundo. Os homens de caráter frágil e superficial, envolvidos nos prazeres mundanos, e, orgulhosos de sua nobre ascendência e posição influente, somente poderão ser afastados do costume de pecar, no silêncio e com brandura; e, mesmo que não se consiga afastá-los totalmente de seus vícios, pelo menos o será em parte, de modo progressivo. Todavia, usando de rigor e aspereza na aplicação do castigo, impossibilitar-se-ia qualquer melhora. Pais um homem a quem se obrigou a perder a vergonha e a não mais enrubescer, torna-se totalmente insensível, não presta mais ouvido às palavras de outros, não se deixa mais impressionar nem por ameaças nem por benefícios, sendo, no final, pior do que aquela cidade de que o profeta falou:

"Assumiste o aspecto de prostituta
e profanaste a terra com teus vícios e devassidões".
Jr. 3, 3

Por tudo isso, o pastor precisa de uma profunda compreensão, necessita de mil olhos para perscrutar de todos os lados o estado da alma. Assim como muitos, deslumbrados, desesperam de sua própria salvação, porque não suportam a amargura do medicamento, assim há outras que, dispensados de penitência adequada à gravidade de seus pecados, perdem-se na leviandade, tornandose sempre piores e caindo em pecados sempre mais graves. Por conseguinte, é mister que o sacerdote não tome nenhuma destas atitudes, sem antes ter examinado tudo da maneira mais adequada, a fim de que os seus esforços não sejam frustrados.

Mas não somente isso; também a recondução dos membros separados da Igreja exigir-lhe-á grandes cuidados como é fácil de compreender. O pastor de ovelhas tem um rebanho que lhe segue para onde quiser levá-lo. E mesmo que aconteça que, uma ou outra vez, alguma ovelha se afaste do caminho certo, abandonando o pasto bom para pastar em barranco magro, basta um chamado pouquinho mais alto para reconduzi-la ao rebanho. Entretanto, caso um homem se tenha afastado da verdadeira fé, o pastor deve empregar grande esforço, persistência e paciência. Pois pela violência não se consegue reconduzi-lo, nem mesmo o medo o obrigará; somente a força da persuasão será capaz de reconduzi-lo à verdade antes abandonada. Daí precisar o sacerdote de uma alma heróica para não desanimar e desesperar da salvação dos errantes; ele terá que meditar sempre a palavra do apóstolo:

"que Deus os leve à conversão e ao conhecimento da verdade
e escapem aos laços do demônio".
II Tm. 2, 25-26

Por isso Cristo também falou aos discípulos:

"Quem é, pois, o servidor fiel e prudente?"
Mt. 24, 25

Pois aqueles cujo cristianismo se restringe à sua própria pessoa, também limita a utilidade do trabalho apenas a seu proveito próprio; o trabalho eficiente das funções pastorais, porém, deve estender-se ao bem do povo todo. Realmente apresenta alguma utilidade aos outros quem distribui dinheiro aos pobres, ajuda de alguma maneira aos necessitados, mas tanto menos do que o sacerdote, quanto o corpo é inferior à alma. Com razão, pois, o Senhor declarou que o cuidado prestado a seu rebanho é medida do amor que alguém tem por Ele.

Tu, porém, interrompeu Basílio, porventura não amas a Cristo? Certamente, respondi, amo-o e não deixarei de amá-lo; todavia receio causar ira a quem amo.

Como, retrucou ele, pode existir enigma mais obscuro? Cristo mandou que, quem o ama, apascente suas ovelhas; tu, porém, declaras não querer apascentá-las justamente porque amas a quem deu este mandamento?

As minhas palavras, respondi, não apresentam nenhum enigma, mas são claras e simples. Se, por acaso, estivesse apto para administrar o cargo, assim como Cristo o espera, e me eximisse dele pela fuga, as minhas palavras deveriam provocar dúvidas. Como, porém, a fraqueza do meu espírito me faz inapto para um cargo de tanta responsabilidade, onde as minhas palavras apresentam algo que exigisse algum exame? Receio que assumindo o rebanho de Cristo, florescente e próspero, com a minha inexperiência o perderia, provocando a ira de Deus que tanto o amou e que se sacrificou a si mesmo pela salvação dele.

Tu dizes isto gracejando, respondeu Basílio. Pois, falando sério, não vejo outra maneira como melhor poderias mostrar a justificação de minha dor, do que com estas mesmas palavras tuas, com que procuraste banir o meu desânimo. Já antes suspeitava ter sido ludibriado e traído por ti; agora, porém, que procuraste eximir-te das acusações feitas, vejo bem claro que desgraça me causaste. Se tu fugiste deste alto cargo eclesiástico porque achavas que tua inteligência não era capaz de assumir responsabilidade tão pesada, deverias antes ter-me impedido a mim - porque tinha deixado a decisão em tuas mãos - mesmo se tivesse demonstrado alguma inclinação para o cargo. Só olhaste o teu proveito, desprezando o meu. Oxalá tivesse sido apenas por negligência! Contentar-meia com isso. Tu, porém, dolosamente dispuseste tudo de maneira tal que mais facilmente caísse nas mãos dos que me procuravam. Não podes desculpar-te dizendo ter sido ludibriado pela opinião dos homens que te tenham convencido de poder esperar de mim coisas grandes e admiráveis. Pois não sou daqueles que são admirados e gozam de grande estima; e, mesmo se fosse, tu nunca poderias ter estimado mais a opinião da multidão do que a verdade. Admito que, caso nunca te tivesse dado ocasião de ter confidências comigo, de certo modo e com alguma aparente razão terias encontrado um motivo razoável de orientar a tua ação pela voz da multidão. Se, porém, ninguém melhor do que tu conhece as minhas atitudes, como podes tu, que conheces até os meus pensamentos mais íntimos melhor do que os meus próprios pais e educadores, achar palavras que merecessem fé para convencer os outros de que esta tua atitude de me pôr em situação tão perigosa não tenha sido proposital? Mas deixemos isso! Não quero obrigar-te a defender-te neste particular. Dize-me antes: o que poderemos responder aos que nos censuram?

Eu, da minha parte, respondi, não atenderei a esta tua pergunta antes de ter refutado tuas acusações, mesmo que estejas pronto a me absolver das mesmas.

Afirmas que ignorância seria motivo de perdão que me absolveria de qualquer censura, na hipótese de que eu te tenha levado a esta situação sem conhecer o teu íntimo. Contudo, se te tivesse traído com pleno conhecimento de tuas condições, perderia qualquer pretexto razoável para minha justificação sincera. Afirmo justamente o contrário. Como assim? - Porque para tal é mister' que se faça um exame rigoroso, e, querendo levar ao sacerdócio um homem apto para o cargo, não nos podemos contentar com a opinião da multidão, mas devemos examinar sua personalidade, e, de maneira especial, as qualidades de seu caráter. Pois, apesar da declaração de Paulo, de que

"é necessário que goze de boa reputação entre os de fora",
I Tm. 3, 7

não se deve excluir, por isso, um exame minucioso e cuidadoso. O próprio Paulo não quer que tal testemunho seja anteposto ao exame rigoroso dos elegendos. Pois, somente depois de ter mencionado muitas outras condições, acrescenta esta, para dar a entender que, numa eleição tão importante, não nos devemos restringir a ela, além dos outros postulados, ainda devemos procurar o testemunho (da multidão). Muitas vezes acontece que a voz da grande multidão engana. Entretanto, se antecedeu um exame cuidadoso, a voz da multidão não oferece perigo. Por isso, o apóstolo colocou "o testemunho dos de fora" atrás dos outros postulados. Pois não disse simplesmente: "deve gozar de boa reputação", mas intercalou a palavra "também", para dar a entender que, antes de considerar a opinião "dos de fora", a personalidade do elegendo deve ser submetida a um exame bem rigoroso. Agora, como eu conhecia a ti e tuas qualidades melhor do que os teus pais, como tu mesmo afirmas, com toda razão deveria ser absolvido de qualquer culpa.

Ele replicou: Justamente por isso não te salvarias, caso alguém quisesse levantar uma acusação formal contra ti. Ou, porventura, não te lembras de ter ouvido tantas vezes e de ter sido informado por fatos de quão insignificantes são as minhas qualidades espirituais? Não foi justamente por isso que tantas vezes zombaste da minha pusilanimidade, vendo que os problemas cotidianos com tanta facilidade me levavam ao desespero?

5.

Retruquei: de fato me lembro de ter ouvido, muitas vezes, palavras semelhantes de tua boca; não posso negá-lo. Entretanto, se alguma vez zombei de ti, o fiz por brincadeira, nunca com seriedade. Mas não vamos discutir isso agora! Apenas peço que aceites com eqüidade se quero enaltecer uma ou outra de tuas boas qualidades. Pois, se quiseres acusarme de mentiroso, não te pouparei; pelo contrário, provarei que falas assim mais por modéstia .do que por amor à verdade; e, para confirmar esta minha argumentação, não precisarei de outros testemunhos do que as tuas próprias palavras e ações.

Em primeiro lugar apresento-te a pergunta: Acaso conheces o poder do amor? - Cristo, deixando à parte todos os milagres a serem realizados pelos apóstolos, declarou:

"Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos:
se vos amardes uns aos outros".
Jo. 13, 35

E Paulo diz:

"O amor é o pleno cumprimento da lei"
Rm. 13, 10

e,

"se não tiver amor, isso nada me aproveita".
I Cor. 13, 3

Este tesouro primoroso, este característico dos discípulos de Cristo, mais estimável do que os dons da graça, vi-o brotar, qual planta nobre, em teu coração, dando frutos preciosos. Basílio respondeu: que o amor muito me preocupa esforçando-me, sobremaneira, por atender ao postulado deste mandamento, não o nego. Entretanto, caso deixares de querer agradar-me e quiseres honrar a verdade, deverás concordar comigo que não consegui realizá-lo nem pela metade.

Pois bem, respondi, vou começar a apresentar as provas. O que tinha ameaçado, agora o farei, mostrando que preferes ser modesto a dizer a verdade. Vou contar um fato que aconteceu há pouco, a fim de que ninguém possa suspeitar de que queira relembrar coisas antigas para ofuscar a verdade apoiado no grande espaço de tempo passado; assim nem o esquecimento precisará pesquisar mais profundamente se estou falando só para lisonjear-te.

6.

Quando um dos nossos amigos, caluniosamente acusado de orgulho e de imprudência, se encontrava numa situação bem aflitiva, tu te precipitaste no meio dos perigos sem ter sido acusado e sem que o amigo, em sua aflição, to tivesse pedido. Esse foi um de teus feitos excelentes.

A fim de convencer-te também com tuas próprias palavras, quero lembrar ainda o que tu mesmo, na ocasião referida, disseste. Pois, quando alguns censuravam o teu procedimento, e outros o louvavam e admiravam, tu mesmo respondeste aos que te censuravam: "o que poderia ter feito? Não sei amar de outra maneira, a não ser até o ponto de arriscar a própria vida quando se trata de salvar um amigo do perigo em que caiu". Se bem que com palavras diferentes, pronunciaste o que o próprio Cristo tinha declarado aos discípulos, explicando-lhes o caráter do amor perfeito:

"Ninguém tem maior amor do que aquele
que entrega a vida por seus amigos".
Jo. 15, 13

Se, por conseguinte, não se pode encontrar amor maior do que este, tu o realizaste em sua maior medida, alcançando seu auge por palavras e fatos. Por isso te traí, por isso usei de dolo. Chegaste finalmente a convencer-te de que não agi por malícia, não na intenção de prejudicar-te, mas com a consciência de levar-te a um cargo em que poderias distribuir grandes bênçãos?

Porventura acreditas, perguntou ele, que para corrigir os homens bastaria o amor?

Realmente, retruquei, o amar é capaz de contribuir extraordinariamente para isso. Se agora desejares também provas de tua prudência, estarei pronto a mostrar que teu bom senso ainda é maior do que teu amor.

A estas palavras enrubesceu de vergonha e observou: O que diz respeito a minha pessoa, deixa tudo isso de lado; pois, desde o início, não lhe pedi contas disso. Entretanto, se tiveres algo a apresentar aos que nos são estranhos, gostaria de ouvi-lo. Deixa de lado toda essa discussão vã e dize-me o que deveremos fazer valer em nossa defesa contra as acusações levantadas de fora, tanto pelos que nos honraram com este cargo, como pelos eleitores que se lamentam terem sido ludibriados.

7.

Também a mim, respondi, afinal interessa tratar disso. Pois uma vez terminadas as minhas explicações relativas à tua pessoa, com prazer me dedicarei à segunda parte da justificação.

Qual é a acusação que levantam? Quais as incriminações? Dizem terem sido menosprezados por nós, terem sido injustiçados porque não aceitamos a honra que nos tinham reservado.

Contra isto em primeiro lugar afirmo: não devemos tomar em consideração se, por acaso, alguém possa sentir-se ofendido por nosso comportamento, no caso em que esta consideração possa ser desagradável a Deus. Principalmente por que esta indignação dos que se sentem amargurados até pode ser prejudicial para eles mesmos. Pois sou da opinião de que aqueles que querem dedicar-se totalmente a Deus, somente a Ele devem dirigir seus olhares, mostrando uma mentalidade tão resignada a Deus que, nem de longe, cheguem a considerar ofensa o acontecido. Que a mim mesmo nem em sonho veio tal pensamento poderás deduzir facilmente do seguinte.

Caso tivesse agido por orgulho ou ambição de que - conforme afirmas alguns me acusam, os acusadores, realmente, teriam razão e eu seria um dos maiores sacrílegos, menosprezando homens tão honrados e meus benfeitores. Se já é censurável ofender a quem nada nos fez de mal, quanto mais punição merece quem pagar com menosprezo aos que lhe querem bem e o honram! Pois ninguém poderá afirmar que eles só queriam retribuir maiores ou menores benefícios recebidos de .mim. Agora, se nem em pensamento me veio a idéia, mas por razões bem diferentes fugi do cargo que me quiseram impor, por que não querem perdoar-me? E mesmo que não quisessem aprovar o meu procedimento, por que me acusam de ter procurado apenas o meu próprio proveito? Estou tão longe de menosprezar aqueles homens que, muito pelo contrário, chego até a afirmar tê-los honrado com esta minha fuga. Não te admires se minhas palavras pareçam ser contraditórias. Logo dissolverei esta contradição aparente.

8.

No caso de ter aceito o cargo, aqueles que gostam de falar mal dos outros teriam encontrado boa ocasião de espalhar calúnias não só contra mim, o eleito, mas também contra os eleitores, como por exemplo: que dão preferência aos ricos; que deixam seduzir-se pelo brilho da origem, ou que minhas adulações os tenham levado a escolherme para o cargo. Sim, até nem se pode excluir que num ou noutro tenha surgido a suspeita - não quero nem pronunciá-lo de que os eleitores teriam sido subornados com dinheiro.

Ainda outra objeção poderia ter sido levantada: Cristo chamou para esta dignidade pescadores, confeccionadores de tendas e publicanos; estes, porém, desprezam a todos os que se alimentam com trabalho comum. Entretanto, alguém que se ocupa com coisas vãs vivendo sem trabalhar seriamente, a este colocam em evidência e o admiram.

Por que preteriram homens que inúmeras vezes derramaram seu suor pelos interesses da Igreja? Por que, ao invés desses, escolheram a quem nunca se submeteu a tais fadigas, que, pelo contrário, gastou sua juventude em ocupações fúteis com ciências profanas?

Tais e outras objeções poderiam apresentar, caso tivesse aceito esta tão alta dignidade. Agora ninguém o pode. Qualquer pretexto para caluniar-me lhes foi cortado. Não podem acuar nem a mim de adulação, nem a eles de corrupção, a não ser que alguém queira falar em demência. Pois como alguém gastaria adulação e dinheiro para conseguir alguma honra e a deixaria para outros justamente no momento em que lhe seria oferecida? Tal procedimento poderia compararse com alguém que, tendo preparado seu campo com esforços extremos para conseguir o máximo na colheita de trigo e de vinho e, depois de muito suor e altos gastos em dinheiro, chegando a colher os frutos, deixasse tudo para outros.

Vês agora como aqueles que gostam de caluniar - mesmo longe da verdade - neste meu casa facilmente achariam pretexto para a acusação no sentido de a escolha não ter sido feita com a devida consideração de todas as exigências? E como eu, com o meu procedimento, consegui fechar-lhes a boca?

Estas e outras acusações já teriam surgido logo de início. Caso, porém, tivesse aceito o cargo, no dia-a-dia, não teria sabido como me defender contra os caluniadores, mesmo cumprindo as obrigações com perfeição, sem mencionar que, devido a minha inexperiência e mocidade, nunca o teria conseguido sem erros. Assim consegui tirarlhes qualquer pretexto para tais acusações; no entanto, em caso contrário, lhes teria fornecido mil motivos para me censurarem. O que não teriam inventado? Entregaram cargos de suma importância a meninos imaturos! Prejudicaram o rebanho de Deus! As finalidades cristãs tornaram-nas motivo de despeito e escárnio para todos! Agora

"toda maldade deve fechar a boca".
Sl. 106, 42

Caso tais acusações forem levantadas também contra ti, poderás desfazê-las bem ligeiro por tua atividade; pois a capacidade de um homem não pode ser julgada pela idade do mesmo e, como de um lado não se pode considerar experimentado um homem por causa de seu cabelo branco, de outro lado não se deve excluir do cargo citado um homem só por causa de sua mocidade, a não ser que seja cristão novato. Entre ambos, (cristão novato e fisicamente jovem), há uma diferença muito grande.