Ricardo de S. Vitor

COMENTÁRIO AO
CÂNTICO DOS CÂNTICOS

Prólogo




Depois do gênero humano ter sido expulso do paraíso das delícias, na peregrinação da vida presente passou a ter um coração cego à inteligência espiritual. Se dissermos com voz humana a este cego coração:

"Segue a Deus",

ou então

"Ama a Deus",

conforme se lhe diz na Lei, tendo sido expulso ao exterior e se tornado frio pelo torpor da infidelidade, não entenderia o que ouviria. É por este motivo que a Palavra de Deus se dirige envolta em enigmas a esta alma imersa no torpor e na frigidez. Sugere-lhe, de modo oculto, pelas coisas que ela conhece, o amor que ela não conhece. Para a alma colocada distante de Deus, os símbolos trabalham como uma máquina que, interpondo enigmas, a ergue até Deus. Reconhecemos nestas palavras algumas coisas que são nossas e no sentido destas palavras compreendemos outras que não são nossas. Com isto, por meio destas palavras terrenas somos afastados do que é terreno e pelo fato de não aborrecermos o conhecido entendemos o desconhecido.

As sentenças divinas são feitas com coisas que nos são conhecidas. Com elas são feitos os símbolos e, desta maneira, conhecendo as palavras exteriores, chegamos à inteligência interior. Neste livro, que recebe o nome de Cântico dos Cânticos, encontramos grande profusão de palavras que designam o amor corporal. Todas estão aí para que a alma, relembrada de seu corpo por palavras a que está acostumada, possa inflamar-se de tal modo pelas palavras do amor do que é inferior que seja promovida ao amor do que é superior.

Neste livro fala-se de beijos, de seios, de faces e de pernas. Ouvindo tais palavras, porém, não devemos pensar baixamente das Sagradas Escrituras, mas considerar mais profundamente toda a extensão da misericórdia divina que assim nomeando os membros do corpo nos chama ao amor. Devemos notar quão admirável é conosco e quão misericordiosamente opera Aquele que, para incentivar nosso coração a inflamar-se ao amor sagrado, dignou humilhar-se descendo até as palavras de nosso torpe amor. Ali mesmo onde se humilha ao nos falar, ali também exalta-nos a inteligência e faz-nos aprender qual é a força deste amor para que ardamos no amor da divindade.

Ouvindo estas palavras do amor exterior, procuremos entende-las cuidadosamente para que não permaneçamos no seu sentido exterior, fazendo assim com que aquilo que nos foi dado para que nos erguêssemos mais sirva para nos oprimir do que para nos elevar. Nestas palavras corpóreas e exteriores devemos investigar o que nelas há de interior. Falando do corpo, devemos por elas ser conduzidos para fora do corpo e aproximarmo-nos destas núpcias do esposo e da esposa com uma inteligência de íntima caridade, isto é, com a veste nupcial que é a digna inteligência da caridade. Sem que desta nos revistamos, seremos expulsos deste banquete nupcial para as trevas exteriores, que são a cegueira da ignorância. Passemos por estas palavras de paixão para a virtude que está acima das paixões.

As Sagradas Escrituras em suas palavras e sentidos são como as pinturas em suas cores e em suas coisas. Muito ignorante seria aquele que de tal modo se interessasse das cores da pintura que não percebesse as coisas que nela estão pintadas. Assim também nós, se apreendermos as palavras que nos são ditas exteriormente, mas ignorarmos o seu sentido, nos tornaremos como os ignorantes que somente permanecem nas cores das coisas que são pintadas.

"A letra mata",

diz o Apóstolo,

"mas o espírito vivifiva".

II Cor. 3, 6

De fato, a letra cobre o espírito assim como a palha cobre o trigo. Cabe ao jumento alimentar-se da palha e ao homem alimentar-se do trigo. Aquele, portanto, que se utiliza da razão humana é como aquele que despreza a palha dos jumentos e se apressa em alimentar-se com o trigo do espírito. É útil que os mistérios sejam cobertos com o invólucro da letra, pois, conforme está escrito,

"os sábios escondem a inteligência".

Prov. 10, 14

De fato, sob a cobertura da letra, oculta-se a inteligência espiritual. Também novamente, no mesmo livro da Escritura, encontramos escrito que

"a glória de Deus
é encobrir a palavra",

Prov. 25, 2

pois, para a mente que busca a Deus, Ele se manifesta tanto mais gloriosamente quanto mais sutil e interiormente deva ser investigado para que se manifeste.

Será, porém, correto que nos entreguemos à investigação do que Deus nos oculta em seus mistérios? Na verdade isto não só é correto como é também um dever para o homem. Pois é na própria Escritura que encontramos, logo em seguida, que ela ela mesma nos diz:

"e a glória dos reis
é investigar o discurso".

Prov. 25, 2

São reis aqueles que aprenderam a reger e a investigar seus corpos e os movimentos da carne. Neste sentido, constitui glória para os reis investigar o discurso porque investigar os segredos dos mandamentos de Deus é louvor para os que vivem bem. Seremos como homens da terra se, ouvindo as palavras da conversação humana que devemos ouvir, não pudermos entender nada de divino no que nos é dito humanamente. O Apóstolo Paulo já não mais considerava que os seus discípulos fossem homens quando lhes dizia:

"Se, porém, entre vós há zelo e ciúmes,
por acaso não sois ainda homens?"

I Cor. 3, 3

O próprio Senhor também como que não considerava homens aos seus discípulos quando lhes dizia:

"Quem dizem os homens
que é o Filho do Homem?"

Mat. 16, 13

E tendo eles respondido quais fossem as palavras dos homens, Jesus lhes acrescentou:

"E vós, porém,
quem dizeis que eu sou?"

Mat. 16, 15

Tendo, deste modo, nomeado primeiro os "homens" e acrescentado depois "e vós, porém", Jesus como que colocou uma certa distância entre os homens e os seus discípulos. Ao ensinar-lhes as coisas divinas, o Senhor os colocava acima dos homens, conforme diz o Apóstolo:

"Se alguém, de fato,
está em Cristo,
é uma nova criatura,
as coisas velhas passaram".

2 Cor. 5, 17

Sabemos também que na nossa ressurreição o corpo se unirá ao espírito de tal modo que tudo o que nele havia de passional será absorvido pela força do espírito. Aquele que segue a Deus deve, portanto, imitar cotidianamente a sua inteligência. Assim como naquele dia não terá nada de passional no coração, seja assim também desde já uma nova criatura segundo o homem interior. Despreze tudo o que possa ter do homem velho e nas palavras velhas busque somente a força da novidade.

A Escritura é como um monte sagrado, pelo qual em nossos corações Deus se aproxima de nossa inteligência. Este é o monte do qual diz o Profeta:

"Deus virá do Líbano,
do monte santo
escuro e denso",

monte denso pelas sentenças e escuro pelos símbolos. Se nos apressamos em nos aproximarmos deste monte, devemos saber também que quando a voz do Senhor soa no monte é-nos preceituado que lavemos nossas vestimentas e nos purifiquemos de toda mancha carnal. De fato, está escrito:

"Se algum animal tocar a montanha,
seja apedrejado".

Heb. 12, 20

O animal toca a montanha quando os homens, entregues aos movimentos irracionais, se aproximam da elevação das Sagradas Escrituras e, não as entendendo como deveriam, torcem-nas irracionalmente ao entendimento de seu prazer. Todo idiota ou preguiçoso de mente, se for visto próximo a este monte, será atingido, como se fossem pedras, por atrocíssimas sentenças. Este monte arde porque a Sagrada Escritura também arde, espiritualmente repleta do fogo do amor. De onde que está escrito:

"Tua palavra é um fogo incandescente,
e o teu servo a amou".

Salmo 118, 140

Por isso é que alguns que caminhavam pela estrada disseram, ao ouvirem a Palavra de Deus:

"Não ardiam em nós os nossos corações,
quando Ele nos explicava
as Sagradas Escrituras?"

Luc. 24, 32

De onde que também disse Moisés:

"Em sua destra
está uma lei de fogo".

Deut. 33, 2

Pela esquerda de Deus entendem-se os iníquos, que não passam para a direita. A destra de Deus são os eleitos, que são separados dos que estão à esquerda. Na destra de Deus há, portanto, uma lei de fogo, porque no coração dos eleitos, colocados à sua direita, ardem os divinos preceitos que os elevam ao incêndio do amor. Queime este fogo tudo o que há exteriormente em nós de ferrugem e de velharia, e ofereça nossa mente a Deus como um holocausto.

Não inutilmente deve-se notar que este livro não é chamado de Cântico, mas de Cântico dos Cânticos. Assim como no Velho Testamento algumas coisas são santas, outras são santos dos santos, algumas são sábados, outras são sábados dos sábados, assim também nas Sagradas Escrituras há cânticos e cânticos dos cânticos. Santas eram as coisas que se faziam exteriormente no Tabernáculo; sábados eram as coisas que em cada uma das semanas eram celebradas. Mas os santos dos santos eram tomados com veneração mais secreta e os sábados dos sábados não eram celebrados senão nas maiores festividades. Este Cântico dos Cânticos é um segredo e uma certa solenidade mais interior, pois o segredo é penetrado nos entendimentos ocultos. De fato, se ficarmos nas palavras exteriores, ali não há segredo.

Deve-se saber também que nas Sagradas Escrituras há cânticos de vitória, cânticos de exortação e de contestação, cânticos de exultação, cânticos de auxílio, cânticos de união com Deus. Cântico de vitória foi o que cantou Moisés, atravessando o Mar Vermelho, dizendo:

"Cantemos ao Senhor,
pois foi honrado gloriosamente,
precipitou no mar
o cavalo e o cavaleiro".

Ex. 15, 1

Cântico de exortação e contestação foi aquele em que, aproximando-se os israelitas da terra prometida, irrompeu Moisés:

"Ouvi, ó céus,
o que vou dizer,
ouça a terra
as palavras de minha boca".

Deut. 32, 1

Cântico de exultação foi aquele cantado por Ana, vendo em si mesma a fecundidade da Igreja:

"O meu coração exultou no Senhor,
a minha força foi exaltada no meu Deus".

I Sam. 2, 1

Neste canto, figurada em si mesma, Ana designou a fecundidade da prole da Igreja, ao dizer:

"A estéril teve muitos filhos,
e a que tinha muitos,
perdeu a força".

I Sam. 2, 5

Um cântico de auxílio foi cantado por Davi após a batalha, quando assim salmodiou:

"Eu te amarei, Senhor,
fortaleza minha.
Senhor, meu firme apoio,
meu baluarte, meu libertador,
minha rocha de refúgio, meu escudo,
força de minha salvação, meu asilo".

Salmo 17, 2-3

O Cântico dos Cânticos, porém, diversamente destes, é um cântico de união com Deus. Cantado nas núpcias do esposo com a esposa, ele é tanto mais sublime do que todos os demais cânticos quanto, oferecido nas núpcias, diz respeito a solenidades mais sublimes. Pelos primeiros cânticos evitam-se os vícios, enquanto que por este enriquecemo-nos de todas as virtudes. Por aqueles evitam-se os inimigos, por este o Senhor é abraçado com familiar amor.

Devemos observar também que nas Sagradas Escrituras Deus às vezes é chamado de Senhor, às vezes é chamado de Pai, às vezes é chamado de Esposo. Quando quer ser temido, faz-se chamar de Senhor; quando quer ser honrado, faz-se chamar de Pai; quando quer ser amado, faz-se chamar de Esposo. É Ele, de fato, quem nos diz pelo Profeta:

"Se eu sou o Senhor,
onde está o meu temor?
Se eu sou o Pai,
onde está a minha honra?"

Mal. 1, 6

E novamente diz:

"Desposei-me contigo
na justiça e na fé",

Oséias 2, 19

ou certamente

"Lembrei-me do dia
de teu desponsório no deserto".

Jer. 2, 2

Deus, porém, quer ser temido antes que possa ser honrado, e quer ser honrado antes que possamos alcançá-Lo. Ele próprio chama-se a si mesmo de Senhor por causa do temor, de Pai por causa da honra, e de Esposo por causa do amor. Pelo seu temor chega-se à sua honra e pela sua honra chega-se ao seu amor. Quanto mais digno é de honra do que de temor tanto mais se alegra Deus em ser chamado de Pai do que de Senhor, e quanto mais precioso é o amor do que a honra tanto mais se alegra Deus em ser chamado de Esposo do que de Pai.

No presente livro o Senhor e a Igreja não são chamados de Senhor e serva, mas de esposo e esposa. Deus, efetivamente, não deseja apenas ser servido pelo temor e pela reverência. Quer também ser servido pelo amor e assim, por meio destas palavras exteriores, busca inflamar-nos o afeto interior.

Ao chamar a si mesmo de Senhor, Deus mostra-nos que fomos criados. Ao chamar a si mesmo de Pai, mostra-nos que fomos adotados. Chamando-se, porém, de Esposo, mostra-nos que nos unimos a Ele. Unir- se a Deus é mais do que ter sido criado e mais do que ter sido adotado. Neste livro, portanto, em que Deus é chamado de esposo, revelando-nos com isto um pacto de união, sugere-se algo mais sublime. No Novo Testemento, em que já se relatava a união entre o Verbo e a carne, entre Cristo e a Igreja, tais nomes nos são lembrados por uma freqüente repetição. É assim que João diz, vivendo o Senhor:

"Quem tem a esposa, é o esposo".

Jo. 3, 29

E também, o próprio Senhor:

"Porventura jejuarão os amigos do esposo,
quando com eles está o esposo?"

Mat. 9, 15

No Novo Testamento, também, nos é dito da Igreja:

"Desposei-vos para vos apresentar,
como virgem pura,
a um único esposo,
a Cristo".

II Cor. 11, 2

E novamente:

"Cristo amou a Igreja
e se entregou por ela
para apresentar a si mesmo a Igreja gloriosa,
sem mácula, sem ruga,
mas santa e imaculada".

Ef. 5, 25-7

E novamente, no Apocalipse de São João:

"Bem aventurados os que foram chamados
para a ceia das núpcias do Cordeiro".

Apoc. 19, 9

E ainda novamente, no mesmo lugar:

"Vi a cidade santa,
que descia do Céu
adornada como uma esposa,
ataviada para o seu esposo".

Apoc. 21, 2

Não desdiz este grande mistério que este livro de Salomão seja colocado como o terceiro entre os seus opúsculos. Os antigos, de fato, afirmaram haver três ordens de vida, que são a moral, a natural e a contemplativa. Estas mesmas vidas foram chamadas pelos gregos pelos nomes de ética, física e teórica.

Nos Provérbios designa-se a vida moral, onde se diz:

"Ouve, meu filho,
a minha sabedoria,
e inclina o teu ouvido
à minha prudência".

Prov. 2, 2

No Eclesiastes, porém, considera-se a vida natural. Ali, de fato, pondera-se que todas as coisas tendem ao seu fim, quando se diz:

"Vaidade das vaidades,
disse o Eclesiastes,
vaidade das vaidades,
tudo é vaidade".

Ec. 1, 2

No Cântico dos Cânticos expõe-se a vida contemplativa, na medida em que nele é desejado o advento e a visão do próprio Senhor, quando se diz, na voz do esposo:

"Vem do Líbano,
esposa minha,
vem do Líbano".

Cant. 4, 8

A ordem dos três patriarcas, Abraão, Isaac e Jacó, também significa as três vidas. Abraão, pela obediência, figurou a moralidade. Isaac, que cavou poços, significou a vida natural, pois cavar poços na profundidade da terra significa investigar, inquirindo pela consideração natural, as coisas inferiores. A Jacó, porém, coube a vida contemplativa, por ter visto os anjos subindo e descendo.

A perfeição natural, porém, não conduz à perfeição se antes não se possui a moralidade; corretamente, portanto, coloca-se o Eclesiastes depois de Provérbios. A suprema contemplação, por outro lado, não é alcançada se antes não se desprezam as coisas inferiores; por isto o Cântico dos Cânticos é corretamente colocado depois do Eclesiastes. Em primeiro lugar devem-se compor os costumes, depois considerar todas as coisas presentes como se não fossem presentes. Então, finalmente, a agudeza do coração purificado contemplará o interior e o mais elevado. Estes livros, assim dispostos em graus, formam uma certa escada para a contemplação. Quiseram eles que em primeiro lugar soubéssemos administrar corretamente as coisas do mundo; depois, que soubéssemos desprezar as coisas honestas do tempo presente para que, finalmente, pudéssemos contemplar a intimidade divina.

No Cântico dos Cânticos aguarda-se, pela voz da Igreja, o advento do Senhor no tempo, para que também cada alma possa contemplar o ingresso de Deus em seu coração, como o ingresso da esposa ao tálamo.

No Cântico dos Cânticos são apresentadas quatro pessoas falando, o esposo e a esposa, as adolescentes com a esposa e a multidão dos soldados com o esposo. A esposa, certamente, é a própria Igreja; o esposo é o Senhor; as adolescentes com a esposa são as almas principiantes, ainda na puberdade pela novidade do estudo; os soldados do esposo são os anjos, que freqüentemente aparecem aos homens que vivem por Ele, ou certamente os homens perfeitos da Igreja, que souberam anunciar a verdade aos homens. Mas estes que separadamente são adolescentes ou soldados, são todos simultaneamente a esposa, porque todos simultaneamente são a Igreja, embora cada um possa receber todos estes três nomes. Porque quem ama a Deus perfeitamente é esposa, quem prega o esposo é soldado, quem ainda principia a seguir o caminho do bem é adolescente. Esforcemo-nos, portanto, para sermos esposa; se não o conseguirmos, sejamos soldados; se nem isto pudermos alcançar, aproximemo-nos deste tálamo juntamente com as adolescentes.

Dissemos que o esposo e a esposa são o Senhor e a Igreja. Cabe a nós, como adolescentes ou como soldados, ouvir agora as palavras desta esposa e, pelos seus discursos, aprender o fervor do amor.

Que a santa Igreja, esperando continuamente o advento do Senhor, incessantemente sedenta da fonte da vida, possa ensinar-nos como devemos ver e como devemos desejar a presença de seu esposo.