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O último e mais principal aviso seja que procuremos neste
santo exercício juntar em uma só coisa a meditação com
a contemplação, fazendo da primeira a escada para subir
até a segunda, para o que deve-se saber que o ofício da
meditação consiste em considerar com estudo e atenção
as coisas divinas discorrendo de umas para as outras para
mover nosso coração a algum efeito e sentimento das
mesmas, que é como quem fere uma pedra para arrancar dela
alguma centelha. Mas a contemplação consiste em já ter
arrancado esta centelha, quero dizer, já ter encontrado
este efeito e sentimento que se buscava, e estar em
repouso e silêncio em seu gozo, não com muitos discursos
e especulações do entendimento, e sim com uma simples
vista da verdade, por causa do que diz um santo doutor que
a meditação discursa com trabalho e com fruto, mas a
contemplação o faz sem trabalho e com fruto; a primeira
busca, enquanto que a segunda encontra; a primeira rumina
a comida, enquanto que a segunda a degusta; a primeira
discorre e tece considerações, enquanto que a segunda se
contenta com uma simples vista das coisas, porque já
possui o amor e o gosto das mesmas; finalmente, a
primeiro é como um meio, enquanto que a segundo é como
um fim; a primeira é como caminho e movimento, enquanto
que a segunda é como o término deste caminho e
movimento.
Daqui se conclui uma coisa muito comum, que é ensinada
por todos os mestres da vida espiritual, ainda que pouco
entendida por parte dos que a lêem, a saber, que assim
como ao se alcançar um fim cessam os meios, assim como
chegando ao porto cessa a navegação, assim também
quando o homem, mediante o trabalho da meditação,
chegar ao repouso e ao gosto da contemplação, deve
então cessar daquela piedosa e trabalhosa investigação.
E contente com uma simples vista e memória de Deus,
como se o tivesse presente, tomar posse daquele afeto que
se lhe é dado, seja ora de amor, ora de admiração ou
de alegria ou coisa semelhante. A razão pela qual isto
se aconselha está em que, como o fim de todo este
negócio consiste mais no amor e nos afetos da vontade do
que na especulação do entendimento, quando a vontade já
está presa e tomada deste afeto, devemos dispensar todos
os discursos e especulações do entendimento, na medida
em que nos seja possível, para que nossa alma com todas
as suas forças se empregue nisto sem derramar-se pelos
atos de outra potência. E por isso aconselha um doutor
que assim que o homem sentir-se inflamado do amor de
Deus, deve logo deixar todos estes discursos e
pensamentos, por mais altos que possam parecer, não
porque sejam maus, mas porque neste caso se tornam
impedimentos de outro bem maior, o que não é outra coisa
mais do que cessar o movimento quando se chega ao seu
término e deixar a meditação por amor da
contemplação. Pode-se assinalar que isto pode ser
feito no fim de todo o exercício, depois de se pedir o
amor de Deus, de que antes já havíamos tratado, pelos
seguintes dois motivos. Primeiro, porque pressupõe-se
que neste momento o trabalho já feito no exercício terá
dado à luz a algum efeito e sentimento de Deus, e, como
diz o Sábio, mais vale o fim da oração do que o seu
princípio (Eccles. 7,7). Segundo, porque depois
do trabalho da meditação e da oração é razoável que o
homem dê um pouco de folga ao entendimento e o deixe
descansar nos braços da contemplação. Neste tempo,
portanto, abandone o homem todas as imaginações que se
lhe oferecerem, cale o entendimento, aquiete a memória e
fixe-a em Nosso Senhor, considerando que está diante
de sua presença e não especulando em particularidades das
coisas divinas. Contente-se com o conhecimento que ele
possui de Deus pela fé e aplique a sua vontade e amor,
pois somente este o abraça e nele está o fruto de toda a
meditação, pois o entendimento quase nada alcança do
que se pode conhecer de Deus ao passo que a vontade pode
amá-Lo muito. Encerre-se dentro de si mesmo no centro
de sua alma onde está a imagem de Deus, e ali esteja
atento a Ele, como quem escuta ao que fala a partir de
alguma elevada torrem ou como quem o tivesse dentro de seu
coração, e como se em toda a criação não houvesse
mais nada senão somente ela ou somente ele. E mesmo de
si mesma e do que faz deveria esquecer-se, porque, como
dizia um daqueles Padres, a perfeita oração é aquela
onde o que está orando não se recorda que está orando.
E não somente no fim do exercício, como também no meio
e em qualquer outra parte em que nos tomar este sonho
espiritual, quando o entendimento está como que
adormecido da vontade, devemos fazer esta pausa, gozar
deste benefício e retornar ao nosso trabalho ao acabar de
digerir e degustar aquele bocado. É assim que faz o
jardineiro quando rega a sua terra a qual, depois de
tê-la enchido de água, suspendo o jorro da corrente e
deixa empapar e difundir-se pelas entranhas da terra seca
o que esta recebeu e, uma vez feito isto, volta a soltar
o jorro da fonte, para que receba mais e mais e fique
melhor regada. Mas o que então a alma sente, o que goza
da luz, da fartura, da caridade e da paz que recebe,
não se pode explicar com palavras, pois aqui está a paz
que excede todo o sentido e a felicidade que nesta vida se
pode alcançar.
Há alguns tão tomados pelo amor de Deus que tão logo
tenham começado a pensar nEle a memória de seu doce nome
lhes derrete as entranhas. Estes têm tão pouca
necessidade de discursos e considerações para amá-Lo
como a mãe ou a esposa para regalar-se com a memória de
seu filho ou esposo quando lhe falam dele. Há outros
também que não somente no exercício da oração, como
também fora dele, andam tão abosortos e tão empapados
de Deus, que de todas as coisas e de si mesmos se
esquecem por causa dEle pois, se isto o pode muitas vezes
o amor furioso de um perdido, quanto mais não o poderá o
amor daquela infinita beleza, se não é menos poderosa a
graça do que a natureza e do que a culpa? Pois quando a
alma o sentir, em qualquer parte da oração em que o
sinta, de nenhuma maneira o deve menosprezar, mesmo que
todo o tempo do exercício se gastar nisso, sem rezar ou
meditar nas outras coisas que lhe estavam determinadas, a
não ser que estas lhes fossem obrigatórias, porque assim
como diz Santo Agostinho que deve-se deixar a oração
vocal quando esta em alguma circunstância fosse
impedimento da devoção, assim também deve-se deixar a
meditação quando fosse impedimento da contemplação.
De onde que também deve-se muito notar que assim como
nos convém deixar a meditação pelo afeto para subir do
menos ao mais, assim também, pelo contrário, às vezes
convirá deixar o afeto pela meditação, quando o afeto
fosse tão veemente que se temesse perigo para a saúde
perseverando nela, como muitas vezes acontece aos que,
sem este aviso, se entregam a estes exercícios e os tomam
sem discrição, atraídos pela força da divina
suavidade. E em um caso como este, diz um doutor, é
bom remédio entregar-se a algum afeto de compaixão,
meditando um pouco na Paixão de Cristo, ou nos pecados
e nas misérias do mundo, para aliviar e desafogar o
coração.
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