NOTAS PARA ALGUMAS AULAS
SOBRE SÓCRATES



Deseja-se comentar sobre três fatos da vida de Sócrates para ilustrar a natureza da vida da inteligência. O primeiro é um diálogo entre o ainda jovem Sócrates e o filósofo Zenão de Eléia quando de uma visita deste último a Atenas, o segundo o encontro entre Sócrates e um estudioso de fisionomias e o terceiro um episódio ocorrido durante a Guerra do Peloponeso.


I

O QUE É A INTELIGÊNCIA


1.

O Argumento de Zenão.

Na época em que nasceu Sócrates havia duas tradições gerais na filosofia grega, aquela que se desenvolveu na Anatólia, a oriente da atual Grécia, iniciada por Tales de Mileto, e aquela desenvolvida a ocidente da Grécia, principalmente nas colônias gregas da península itálica, iniciada por Pitágoras, sob a forma de escolas de filosofia. O primeiro filósofo que chegou a Atenas foi Anaxágoras, preceptor de Péricles, vindo do oriente. Mais tarde, passaram por Atenas Parmênides e Zenão, vindos da Itália, alunos de membros das escolas pitagóricas.

A doutrina de Parmênides, que ele costumava demonstrar apenas por argumentos gerais e abstratos, dizia que não existia na realidade senão um único ser, simples, indivisível e imutável, e que toda a multiplicidade e vir a ser observada no cosmos era apenas uma ilusão. Zenão desenvolveu copiosa lista de argumentos menos abstratos que procuravam demonstrar, por redução ao absurdo, a impossibilidade da existência do movimento e da multiplicidade no cosmos.

Um dos argumentos de Zenão contra a multiplicidade dos seres é o seguinte: se existem muitos seres, o seu número terá que ser finito ou infinito, porque nada pode ser ao mesmo tempo finito e infinito. É fácil, porém, ver que a quantidade de seres existentes no cosmos terá que ser finita em seu número, porque os seres que existem não podem ser nem mais nem menos do que o número que são. Porém, ao mesmo tempo, o número das coisas existentes tem que ser infinito, porque a existência de cada coisa a que denominamos uma unidade e que contamos como sendo um ser individual é, na realidade, não um, mas um número infinito de seres, porque cada uma das coisas existentes pode ser dividida em duas, e cada uma destas duas em outras duas e assim por diante, até o infinito. Daqui se conclui que, se não admitimos que exite na realidade apenas um único ser indivisível e que toda a multiplicidade que vemos no cosmos é apenas uma ilusão, somos obrigados a afirmar que o número dos entes que existem é ao mesmo tempo finito e infinito. O que é impossível. Portanto, a multiplicidade dos seres não existe e é apenas ilusão dos sentidos.

A reação dos atenienses diante deste e de muitos outros argumentos desenvolvidos por estes filósofos foi entusiástica, não porque aceitassem a doutrina que eles continham, mas pelo fascínio que esta técnica de argumentação propiciava ao cenário político da democracia ateniense, onde quem falasse mais convincentemente em público curvaria a votação da maioria do povo a seu favor. E se havia pessoas que possuíam técnicas de tornar verossímeis teses até aquele momento inteiramente impensáveis pelo comum dos homens, quem dominasse esta técnica seria detentor de um importante trunfo na condução do destino político ateniense. Daí surgiu pouco tempo depois uma corrente filosófica decadente característica do ambiente ateniense a que se denominou de sofista.

2.

Resposta de Sócrates: texto do Diálogo "Parmênides" de Platão.

Um garoto, porém, reagiu de forma completamente diversa ante os argumentos de Parmênides e Zenão. Era Sócrates, que ao ouvir estes argumentos captou as implicações mais profundas que nele estavam envolvidas. No diálogo denominado Parmênides, Platão descreve assim uma conversa entre o jovem Sócrates e os anciãos Parmênides e Zenão:

"O problema de seu argumento",

diz Sócrates a Zenão,

"é que não há nada de estranho em que cada ente
seja ao mesmo tempo um e muitos.
Só a pura idéia abstrata de unidade
é que é perfeitamente una.
Os demais entes participam desta unidade perfeita.
Isto é, eles possuem uma parte da perfeição da unidade
que a idéia de unidade possui por inteiro.
Se eles possuem apenas uma parte da perfeição
que está contida na idéia de unidade,
é porque eles não são perfeitamente unos.
Cada ente tem que ser, desta maneira,
uno sob certos aspectos e muitos sob outros aspectos".

Este diálogo, foi, assim, a primeira vez na história em que surgiu o conceito de participação, freqüentissimamente utilizado por Santo Tomás de Aquino. Participação significa possuir em parte aquilo que outro possui plenamente; o ser das criaturas é uma participação do ser de Deus, a graça é uma participação da natureza divina, e uma obra de arte participa da contemplação do belo que se realiza de modo pleno na mente do artista. Impressiona aqui, porém, a lucidez de um garoto em perceber que é a possibilidade da unidade e do próprio ser de serem possuídos por participação que explica os aparentes paradoxos de Zenão.

"Agora",

continuou Sócrates,

"eu ficaria admirado e realmente perplexo
se você pudesse me provar não que os entes,
que apenas participam da idéia de unidade,
são ao mesmo tempo um e muitos,
mas que a própria idéia da unidade
possui ao mesmo tempo unidade e multiplicidade,
ou que a própria idéia da multiplicidade
possui ao mesmo tempo multiplicidade e unidade.
Se você puder me provar
que o absolutamente um são muitos,
e que o absolutamente múltiplo é um,
isto me espantaria.
Eu ficaria deveras surprêso em ouvir
que as próprias idéias de cada coisa
possuem qualidades opostas,
mas não se uma pessoa quiser me provar
que eu, Sócrates,
sou ao mesmo tempo um e muitos.
Porque eu, Sócrates, de fato,
sob certos aspectos sou muitos,
pois tenho dois braços, e não um,
e tenho cabeça, tronco e membros,
órgãos diversos e partes diferentes do corpo,
que são muitas.
Portanto, eu não posso negar
que eu participo da idéia de multiplicidade.
Mas só a idéia de multiplicidade
é totalmente múltipla sem unidade alguma;
desta perfeição da multiplicidade que ela tem,
eu tenho apenas uma participação.
Mas, por outro lado,
eu também sou um, porque aqui estão sete pessoas
e eu sou apenas uma.
Portanto, eu não posso negar
que participo também da unidade perfeita
que há na idéia de unidade.
Mas só a idéia da unidade é totalmente una
sem multiplicidade alguma.
Os objetos visíveis possuem apenas
uma parte desta unidade
que só se realiza perfeitamente na idéia da unidade.
Só na idéia da unidade temos
uma unidade pura, completa, total,
sem mistura com multiplicidade alguma.

Assim, quando uma pessoa mostra
que tais coisas como a madeira,
as pedras e outras,
sendo muitas, são também uma só,
eu admito que ele está mostrando
a coexistência do uno e do múltiplo,
mas ele não está mostrando
que esta multiplicidade é a unidade
e a unidade é a multiplicidade.
Este apenas está mostrando que estes entes
participam imperfeitamente da verdadeira unidade
e da verdadeira multiplicidade,
e ele não está com isto mostrando um paradoxo,
mas uma verdade evidente.

Eu novamente lhe repito, Zenão,
que eu ficaria perplexo
se você pudesse me mostrar
que alguém conseguiu encontrar
nas próprias idéias da unidade e da multiplicidade,
nestas idéias que são apreendidas pela mente,
estas mesmas características
que você diz encontrar nos objetos visíveis".

Este fato da vida de Sócrates e uma parte do seu diálogo com Zenão de Eléia e Parmênides foi reproduzido para ilustrar o que se denomina inteligência no seu sentido mais próprio:

  • A inteligência no seu sentido próprio,
    é a capacidade de apreender a verdade.

3.

Anotações diversas.

Na vida corrente das pessoas os atributos fundamentais da inteligência costumam ser tomados de outro modo bastante diverso. As pessoas costumam supor que a inteligência é, por exemplo:

  • A capacidade de repetir em uma prova o que se disse em sala de aula ou se leu em um livro. Este é, admita-se explicitamente ou não, a suposição por trás do sistema de avaliação da maioria das escolas. Mas esta capacidade não define inteligência no que ela tem de essencial.

  • A capacidade de fazer cálculos ou projetos complexos rapidamente e com precisão. Se isto fosse inteligência, um computador teria ou poderia vir a ter num futuro muito próximo uma inteligência extraordinária, quando na realidade a inteligência de tais dispositivos é exatamente nula.

  • A capacidade de desembaraçar-se em situações difíceis, de organizar e dirigir uma empresa, de falar em público com erudição e eloqüência, o possuir uma memória prodigiosa capaz de evocar fatos e dados rapidamente em respostas prontas e bem colocadas, o saber tirar proveito de qualquer situação em benefício próprio.

Inteligência, porém, é a faculdade ou a capacidade de perceber clara e limpidamente a verdade com evidência, aquela evidência que, quando experimentada, os homens espontaneamente tendem a compará-la com a luz.

4.

Texto de Santo Agostinho, do oitavo livro De Trinitate.

Na obra De Trinitate S. Agostinho empreende um trabalho de introspecção para, através do conhecimento da alma humana, tentar obter algum vislumbre da realidade da Trindade. Vamos nos reportar aqui apenas a algumas observações contidas nesta obra relacionadas com o tema da natureza da inteligência.

No livro VIII do De Trinitate Agostinho diz que é muito difícil para as pessoas entenderem como é possível que na Trindade o Pai e o Filho juntos não sejam maiores do que o Espírito Santo, se ambos isoladamente são iguais a ele. A doutrina da Santíssima Trindade diz que em Deus há uma só natureza e três pessoas. O Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus; todavia não são três deuses, mas sim um só Deus, e que duas das três pessoas divinas juntas não são maiores do que uma só. Achamos isto impossível porque ao pensar nestas coisas nossa imaginação representa entidades corporais; em vez disso, deveríamos perceber que Deus é verdade, e se conseguirmos apreender o que é verdade, os enunciados sobre a Trindade começariam a se tornar mais plausíveis. Agostinho porém quer nos fazer perceber que quando ele nos fala de apreender a verdade não está se referindo ao apreender o enunciado da verdade, mas a evidência dela, justamente aquilo pelo qual ela se nos manifesta como verdade. Deus é verdade assim entendida, tornada pessoa e multiplicada ao infinito, e neste sentido, diz ele, Deus também é luz. E é aquela faculdade que nos torna capazes de apreender isto que se chama inteligência.

"Na Santíssima Trindade",

diz Santo Agostinho,

"duas ou três pessoas não são maiores do que uma delas,
afirmação inintelegível para a nossa experiência carnal
que somente compreende as realidades criadas.
Mas na essência da verdade, que é Deus,
ser maior equivale a ser mais verdadeiro.
Por conseguinte, onde a grandeza é a mesma verdade,
o Pai e o Filho juntos não superam em verdade
o Pai e o Filho sozinhos;
logo os dois juntos não são maiores
do que um só deles em particular.
Nos corpos é possível que este ouro e aquele outro ouro
sejam igualmente verdadeiros,
e um ainda assim ser maior do que o outro,
porque neste caso não é a mesma coisa
a magnitude e a verdade.
O mesmo acontece com a alma humana,
onde a grandeza do espírito não se mede
pela verdade da alma;
e a essência do ouro ou da alma humana
não é a essência da verdade,
como ocorre com a Santíssima Trindade,
um só Deus, grande, verdadeiro, veraz e verdade.

Se, porém, tentarmos pensar nestas coisas,
o quanto nos é permitido e nos é concedido,
não pensemos em nenhum contato no espaço e em lugares,
como se as pessoas da Trindade fossem três corpos.
Temos que afastar de nosso espírito qualquer imagem
onde três sejam maiores do que um
e um menor do que dois,
isto é, temos que nos desfazer em nossa representação
de todo elemento corpóreo.
Deus não é o céu, nem a terra,
nem algo semelhante ao céu ou à terra,
nem algo parecido ao que vemos no céu.

Aumenta em tua imaginação milhares de vezes,
se te for possível, a luz do Sol,
em volume e em claridade resplandecente:
nem ainda isto seria Deus.

Imagina os anjos, espíritos puros,
reunidos todos em um só ser, e seu número,
milhares de milhares.
Nem sequer ainda isto seria Deus,
e mesmo ainda imaginando tais espíritos sem formas corporais,
coisa muito difícil para o pensamento carnal.

Então veja, se podes, ó alma humana,
sobrecarregada de um corpo corruptível
e esgotada com tantos e tantos pensamentos terrenos;
compreende, alma, se podes,
em que sentido Deus é verdade.
Está escrito, na carta de São João:

"Deus é luz".

Mas não creias que é esta luz
que contemplamos com os olhos,
mas aquela luz que o coração intui
quando ouve dizer:

"Deus é verdade".

Permanece, se puderes,
naquela claridade inicial deste rápido fulgor da verdade,
naquela serenidade que brilhou num primeiro instante
na tua alma quando ouviste a palavra verdade.
Se isto, porém, não te for possível,
voltarás a cair nos pensamentos terrenos
que em ti são habituais.
E qual é o peso que te arrasta,
ó alma, desde esta altura,
senão a viscosidade de teus sórdidos desejos
e os erros de tua peregrinação?"

5.

Outros exemplos de inteligência tomada neste sentido.

  • O diálogo entre Zenão e Sócrates.

  • A busca do entendimento de Deus empreendida pelo menino Tomás de Aquino.

  • A busca do jovem estudante João da Cruz pelo significado da contemplação.

  • A atitude de Santo Antão ao ouvir os sermões, em dois domingos sucessivos, sobre o jovem rico e sobre os lírios do campo.

Esta capacidade de apreensão da verdade é, na realidade, comum a todos os santos, tanto os que se dedicaram ao estudo como os que não se distinguiram por eles.

A conversão dos santos, principalmente quando eles passaram a empenhar-se mais decididamente na busca da santidade, não foi nunca fruto apenas da vontade, mas é proveniente da vontade acompanhada de uma luz, sem a qual eles não perseverariam no empreendimento iniciado e facilmente se ludibriariam na decisão tomada.

O uso da inteligência, entendido neste sentido, costuma ser acompanhado de uma intervenção da graça. Lembrar que entre os sete dons do Espírito Santo enumera-se o dom de inteligência.

6.

Texto extraído de uma biografia do Cura d'Ars.

No livro "O Cura d'Ars - São João Batista Maria Vianney", de Francis Trochu, cap. 13, lemos o seguinte:

"Um sacerdote instruído, meu amigo,
contava o Padre Cirilo Faivre,
missionário de S. Cláudio,
assegurou-me que,
tendo recorrido ao P. Vianney
para resolver um caso de teologia
dos mais complicados,
não pode sair do pasmo ante a facilidade
com que o servo de Deus lhe deu a solução exata.
A chave deste enigma no-la deu o próprio Cura d'Ars
quando depois disse em seu catecismo:

'Os que são guiados pelo Espírito Santo
têm idéias exatas.
Eis porque há tantos ignorantes
que vêem mais longe do que os sábios'".

Este exemplo manifesta que este dom é comum a todas as formas de santidade, e necessário inclusive para se poder alcançá-la. A afirmação do Cura D'Ars não pareceria nada de extraordinário teria se tivesse partido de S. Tomás de Aquino, mas torna-se notável sendo citada como proveniente de alguém que passou para a história com a fama de ser o exemplo da incapacidade de estudar e de um reduzido quociente de inteligência. S. João Vianney viveu na França logo após a revolução francesa, não conseguia aprender as declinações do Latim nem reproduzir os casos das aulas de Moral por mais esforço que empregasse. Ordenado padre, apenas por consideração à incomum piedade que manifestava, foi enviado a uma aldeia minúscula do interior da França onde seus superiores pensavam que nada de errado se pudesse fazer que tivesse conseqüências muito sérias, mas mesmo assim foi proibido durante algum tempo de ouvir as confissões de seus próprios aldeões. No entanto, quando começou a pregar, a França passou a peregrinar àquela aldeia para ouvir o cura; e quando começou a confessar, muitas carruagens tiveram que ser estabelecidas regularmente para conduzir a Ars os peregrinos dos lugares mais distantes que desejavam confessar-se com ele. A afirmação do Cura, segundo o biógrafo Trochu a chave do seu enigma, de que "os que são guiados pelo Espírito Santo têm idéias exatas", na realidade, objetivamente falando, nada possui de notável. Notável seria se o Cura d'Ars tivesse declarado o contrário. Mas elas são notáveis subjetivamente, em relação a nós, por não conhecermos estas coisas e nos admirarmos que tais testemunhos sejam comuns a todos os santos.

Aqueles que examinaram os sermões do Cura d'Ars procurando o que havia neles que atraía multidões de toda a França e causando as conversões mais espetaculares e impossíveis relatam que nada encontraram nestes textos que não pudesse ter sido encontrado nos sermões comuns aos padres do interior da França daquela época. Onde está então a inteligência do Cura d'Ars, se perguntam eles, neste caso? Esta objeção significa apenas que o Cura d'Ars não tinha cabedal especial de conhecimentos teológicos, não tinha habilidade ao escolher as palavras ou dispor as frases segundo leis de retórica que ele não conseguia memorizar ou obedecer. Nada disto, porém, é a inteligência ou o dom da inteligência. O Cura d'Ars não sabia combinar as palavras mas tinha uma apreensão claríssima da verdade; com isto, porém, possuía algo muito mais valioso para quem havia sido incumbido da missão de ensinar.

7.

Questão 40 do Comentário de Hugo de São Vitor à Epístola aos Romanos.

"Na investigação da verdade",

pergunta Hugo de S. Vitor,

"a razão natural pode alguma coisa
sem a ajuda da graça?"

"Dizem alguns",

responde ele,

"que a razão natural muito pode por si mesma,
sem necessidade da graça,
como é evidente nos filósofos gregos,
que confiando apenas na razão
conseguiram tanta coisa não apenas
no que se refere à compreesão da verdade
sobre as criaturas,
mas também no que se refere ao Criador.
De fato, eles descobriram
que Deus existe e que é uno,
e vislumbraram também algo
sobre a sua trindade.
Porém, deve-se dizer melhor
que não parece ser possível
que tivessem chegado a tanto
se não contassem com o auxílio da graça.
Por isso é que no primeiro capítulo
da Epístola aos Romanos,
quando São Paulo diz:

'O que de Deus é conhecido
é-lhes manifesto',

logo em seguida acrescenta:

'Deus, de fato, lhos manifestou'."

8.

O testemunho do primeiro capítulo do Gênesis.

"No princípio criou Deus
o céu e a terra".

Assim se iniciam as Sagradas Escrituras. O verbo que elas aqui utilizam é o hebraico BARÁH (criou), que é empregado de modo próprio para designar a criação dos entes a partir do nada por parte de Deus. Mas a própria Sagrada Escritura volta a utilizar este termo no Salmo 50 quando Davi, após ter cometido adultério e homicídio, pede perdão a Deus dizendo:

"Cria em mim, ó Deus,
um coração puro,
e renova em mim
um espírito reto".

Salmo 50, 12

A criação dos entes a partir do nada e a regeneração do homem pela graça são designadas pelo mesmo verbo como duas realidades análogas e que pertencem exclusivamente a Deus, sugerindo a existência de um paralelo entre a criação e a santificação.

A narrativa de Genesis 1 sobre a criação do mundo revela, deste modo, o desenrolar do processo de santificação do homem. Ambas estas realidades se iniciam quando, no primeiro dia, em meio ao caos, Deus diz:

"Faça-se a luz,
e a luz se fêz".

Este é, de fato, o primeiro efeito do Espírito Santo sobre a alma humana quando Deus pretende regenerá-la pela graça. A luz do primeiro dia de que fala Gênesis 1 não é a luz do Sol, da Lua ou das estrelas, os luminares que só são ditos terem sido criados no quarto dia. O processo de criação, ademais, só termina no sexto dia, quando o homem é criado à imagem e semelhança de Deus. Assim também, na restauração do homem pela graça, só quando os homens se tornam santos como São Francisco de Assis, Santo Tomás de Aquino, São João Bosco e outros exemplos conhecidos, é que podem ser ditos em seu sentido mais perfeito imagem e semelhança de Deus.

9.

Extratos do Sermão nº 61 de Hugo de S. Vitor, sobre a narrativa da criação em seis dias.

"'No princípio Deus criou
o céu e a terra'.

Gen. 1, 1

O céu é o espírito, a terra o corpo",

diz Hugo de S. Vitor.

"O mundo em sua primeira confusão
é o homem em sua iniqüidade.
Assim como o mundo primordial,
ainda confuso,
não possuía luz nem ordem,
assim o homem submetido à iniqüidade
não possui luz pelo conhecimento da verdade
nem ordem pela disposição da eqüidade.

Deus cria a luz primária em meio à confusão
quando ilumina com os raios de uma luz íntima
o pecador imerso no caos
pelas suas diversas loucuras,
para que ele saiba o que ele é e o que deveria ser,
e se disponha a si mesmo
segundo a norma do reto viver.
A luz primária, portanto,
significa o conhecimento do pecado.

No quarto dia a criação dos luzeiros do céu
significa a perfeita visão da verdade,
removida a nebulosa cegueira da ignorância.

No último dia, todas estas coisas criadas,
o homem é feito à imagem e semelhança de Deus,
quando aquele que antes havia sido
deforme e dessemelhante pela culpa
se torna conforme e semelhante a Deus pela santidade.
O homem assim formado é colocado
no paraíso das delícias
quando o pecador regenerado no mundo pela graça
é sublimado ao céu pela glória.

Eis, meus irmãos,
um outro mundo.

Vejamos, pois,
se em nós existe esta luz primária,
se existem os luminares do quarto dia
pelo conhecimento da verdade,
se em nós a dignidade humana
foi restaurada pela santidade,
assim como havia sido deformada pela culpa,
e se,
(assim como Deus o viu
no término dos seis dias),
todas as coisas que fizemos
foram imensamente boas".

10.

Consideração sobre Metafísica.

A inteligência é, pois, esta faculdade ou capacidade de apreender a verdade.

A origem da certeza desta afirmação é o enquadramento da atividade inteligente no contexto da Metafísica, entendida no sentido aristotélico tomista. A pura introspecção psicológica tende mais propriamente a conduzir à consideração de que a inteligência é a capacidade de apreender conceitos ou idéias abstratas. Enquadrada, porém, no contexto mais amplo da metafísica, ressalta mais claramente que o atributo próprio da inteligência é a capacidade de apreensão da verdade, a capacidade abstrativa sendo apenas um corolário.

11.

Atitude comum das pessoas.

Na prática corrente a maioria dos homens não apenas não se utiliza da inteligência no sentido aqui exposto, como inclusive duvida da possibilidade de fazê-lo.

São expressões comuns:

"A verdade?
O que é a verdade?"

Esta afirmação é de Pôncio Pilatos, ao ouvir Jesus mencionar alguma coisa inintelegível a respeito do assunto verdade. A maioria dos homens são uma multidão de Pôncios Pilatos.

Esta também é uma expressão comum:

"A Verdade?
Que verdade?
A verdade é um conceito relativo.
O que é verdade para você
pode não ser verdade para mim".

São expressões típicas de todos aqueles que não experimentaram o sabor da realidade a que se referem. Para estes, a verdade é algo subjetivo.

Deve-se dizer, entretanto, que a verdade é objetiva, e trata-se de uma participação daquela que é a maior de todas as verdades, a suprema verdade, aquela pela qual Deus vê a si mesmo e vê que ele é necessariamente. Todas as demais verdades são participações desta. Deus é, justamente, este lampejo que em nós é a verdade, feito pessoa, aumentado infinitamente. Não certamente o enunciado desta verdade, mas a evidência dela. Desta maneira, nos que são capazes de apreender a verdade participada, ela não pode ser subjetiva. Trata-se de uma participação da fonte de onde se origina o cosmos.


II

A LIBERDADE DA VERDADE


1.

Encontro entre Sócrates e um estudioso das fisionomias.

Certo dia surgiu em Atenas um homem que dizia possuir os conhecimentos necessários para descrever o caráter de um homem apenas pela observação de sua fisionomia. Levaram este homem até Sócrates, que estava dialogando, como de costume, com vários outros. Fêz-se silêncio entre todos, para que estudioso examinasse os traços da fisionomia de Sócrates. Terminado o exame, o fisionomista declarou:

"Eis aqui um homem estúpido,
orgulhoso e incapaz de controlar
seus instintos sexuais".

A afirmação, tão abrupta, fêz cair a todos na gargalhada, tal a diferença entre este julgamento e a realidade.

Mas houve alguém que não riu, e este foi o próprio Sócrates. Ao contrário, pareceu como que apanhado em flagrante e, para não maior surpresa dos presentes, dirigiu-lhes estas palavras:

"Não!
Ele está certo.
Este homem está certo!
São justamente estas as inclinações
que eu vejo existirem em mim,
e que tenho lutado para dominá-las".

2.

Notas e observações.

O exemplo mostra que a intimidade de Sócrates com a apreensão da verdade era tamanha que sua conduta e sua psicologia tinham se emancipado de fatores genéticos e fisiológicos. Sócrates era, neste sentido, um homem livre. O fato de que o estudioso das fisionomias tivesse a fama de sempre haver acertado suas previsões sobre o padrão de comportamento das pessoas mostra o quanto a humanidade em geral vive presa aos seus impulsos biológicos básicos.

3.

Conseqüências.

  • Primeira: a vida deve concordar com a apreensão da inteligência, caso contrário o próprio progresso no conhecimento da verdade se paralisa em um patamar. Por isso é que a educação da inteligência, na filosofia perene, não é possível sem a educação concomitante das virtudes.

  • Segunda: por outro lado, se há verdadeiro progresso da inteligência, mais ainda naquela região da vida da inteligência onde não é possível fazer progresso sem o auxílio da graça e dos dons do Espírito Santo, deve haver necessariamente reflexos disto na vida das virtudes. Se isto não se verifica provavelmente o que deve estar ocorrendo não é um aprofundamento na evidência da verdade, mas um crescimento na erudição dos enunciados da verdade.

4.

O Evangelho de São João.

No Evangelho de São João Jesus promete a liberdade através do conhecimento da verdade:

"Se permanecerdes nas minhas palavras",

diz Jesus,

"sereis verdadeiramente meus discípulos;
conhecereis a verdade
e a verdade vos tornará livres".

Jo. 8, 31

5.

Isaías capítulo 50.

Isaías faz uma profecia a respeito do Messias que haveria de vir, dizendo que ele teria uma língua erudita para ensinar porque todas as manhãs ouviria o Senhor como a um mestre:

"O Senhor deu-me uma língua erudita,
para eu saber sustentar com a palavra
o que está cansado.
Ele me chama pela manhã,
pela manhã chama aos meus ouvidos
para que eu o ouça como a um mestre.
O Senhor Deus abriu-me o ouvido,
e eu não o contradigo;
não me retirei para trás".

Is. 50, 4-5

Esta atitude é a mesma que o Evangelho de Lucas atribui a Maria, irmã de Marta, que sentada aos pés de Jesus, ouvia-lhe as suas palavras (Luc. 10, 38-42). Ao elogiar Maria dizendo que ela havia escolhido a melhor parte, Jesus reconhece e elogia em Maria aquilo que o profeta Isaías já havia visto realizar-se no próprio Jesus.

6.

Isaías, capítulo 55.

A mesma coisa que Isaías descreve no capítulo 50 como havendo de realizar-se no Messias que haveria de vir, cinco capítulos mais adiante o profeta convida todos os homens a que o experimentem por si mesmos. Ele compara o efeito da palavra de Deus sobre os homens com a água da chuva: ela não volta para o céu, diz Isaías, sem ter feito germinar a terra para a qual foi mandada. Mas deve-se entender que a palavra de Deus somente produz este efeito quando não é apenas ouvida ou lida, nem sequer quando é ouvida com atenção, mas quando o Espírito Santo, juntamente com a palavra enunciada, lhe confere a luz de uma certa evidência de que fala o primeiro capítulo de Gênesis. Então ela age de modo a não voltar ao céu enquanto não produzir o seu efeito. E é da palavra de Deus assim entendida, que vem juntamente com os dons do Espírito Santo de entendimento e sabedoria, que Jesus, tal como na profecia de Isaías 50, dizia que "não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que procede da boca de Deus" (Mat. 4, 4):

"Todos vós os que tendes sede",

diz o Senhor por meio de Isaías,

"vinde às águas;
e os que não tendes dinheiro,
apressai-vos,
comprai e comei;
vinde,
comprai sem dinheiro
e sem nenhuma troca,
vinho e leite.

Por que motivo empregais o dinheiro
em coisas que não são alimento,
e o vosso trabalho no que
não pode saciar-vos?

Ouvi-me com atenção,
e comei do bom alimento,
e a vossa alma se deleitará
com manjares substanciosos.
Inclinai o vosso ouvido e vinde a mim;
ouvi, e a vosssa alma viverá,
e farei convosco um pacto eterno,
concedendo-vos as misericórdias
que prometi a Davi.
Porque assim como desce do céu
a chuva e a neve,
e não voltam mais para lá,
mas embebem a terra,
e fecundam-na e fazem-na germinar,
a fim de que dê semente ao que semeia
e pão ao que come,
assim será a minha palavra
que sair da minha boca,
diz o Senhor;
não tornará para mim vazia,
mas fará tudo o que eu quero,
e produzirá os efeitos para os quais a enviei".

Is. 55, 1-3, 10-11

continua...