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Existem neste mundo muitas espécies de ciências, e sua
variedade corresponde à das artes e profissões. Nenhuma,
entretanto, existe que não seja ensinada conforme uma ordem e
um método próprios, pelos quais podem adquirí-las os que as
procuram.
Se, portanto, estas artes só se aprendem mediante linhas
certas e particulares, quanto mais a disciplina e a profissão
da nossa vida religiosa, que visa contemplar os arcanos das
coisas invisíveis e busca não vantagens presentes, mas o
prêmio da eterna recompensa, exige uma ordem e um método bem
determinado!
Dupla é a ciência da vida religiosa: a primeira, a
prática, isto é, a ativa, consuma-se no trabalho de emendar
os costumes e se purificar dos vícios. A segunda, a
teorética, consiste na contemplação das coisas divinas e no
conhecimento das significações mais sagradas.
Quem quiser chegar à teorética tem que primeiro,
necessariamente, adquirir a ciência ativa, empenhando-se com
todo o zelo e virtude. A ciência prática podemos possuí-la
sem a teorética, mas a teorética não pode, absolutamente, ser
conseguida sem a ativa. São como dois degraus ordenados e
distintos para que a humildade humana possa subir para as
alturas. Se eles se sucedem da maneira que dissemos, é
possível chegar ao cume. É, pois, em vão que tende à visão de
Deus quem não evita o contágio dos vícios:
"O Espírito de Deus
detesta o fingimento
e não habita num corpo
escravo do pecado". |
A perfeição da vida ativa consiste em dois pontos. O primeiro
é o modo de conhecer a natureza dos vícios e o método de
curá-los. O segundo é discernir a ordem das virtudes e formar
com a sua perfeição a nossa alma. De que maneira, na verdade,
poderia atingir o plano das virtudes quem não pôde
compreender a natureza dos vícios nem se esforçou para
extirpá-los? Saibamos, no entanto, que nos custará duas vezes
mais a pena e o suor para expulsar os vícios do que para
adquirir as virtudes. Isto nós não compreendemos por uma
conjectura pessoal, mas é o que nos ensina a palavra daquele
que é o único a conhecer as forças e a condição da sua
criatura:
"Eis que eu hoje te estabeleci
sobre as nações e sobre reinos,
a fim de que arranques e destruas,
ponhas a perder e dissipes,
edifiques e plantes". |
Para expelir o que é nocivo, ele designou quatro coisas
necessárias; para tornar-se perfeito nas virtudes e adquirir
tudo o que diz respeito à justiça, somente duas.
A prática que, conforme dissemos, consiste em dois
pontos, divide-se em muitas profissões e ocupações. Alguns,
com efeito, dirigem toda a sua intenção para a vida secreta
do deserto e para a pureza do coração. Outros dedicaram a sua
solicitude e zelo a instruir irmãos e à cura vigilante dos
cenóbios. Outros se comprazem no pio serviço de hospitalidade
e de caridade prestada a estrangeiros em hospitais. Outros
ainda, escolhendo o cuidado de enfermos, ou a mediação em
favor dos miseráveis e oprimidos, ou que se aplicaram ao
ensino ou, ainda, à distribuição de esmola aos pobres,
tiveram um lugar eminente entre os maiores e mais santos, por
sua afeição e bondade.
É útil e conveniente a cada um que conforme o propósito
de vida que escolheu ou a graça que recebeu, embora louvando
e admirando as virtudes dos outros, não se afaste, de modo
algum, da profissão que abraçou uma vez por todas, sabendo
que, segundo o Apóstolo, um é o corpo da Igreja, mas muitos
são os seus membros. Costuma acontecer aos que ainda não
estão bem firmes na profissão que abraçaram que, ouvindo
louvores referentes a outros que vivem em situações
diferentes e praticam outras virtudes que as suas, de tal
modo se inflamam que desejam imitá-los imediatamente em sua
disciplina. Os esforços que a fraqueza humana envida em tais
circunstâncias são necessariamente vãos, pois é impossível
que um só e mesmo homem brilhe ao mesmo tempo em todas as
virtudes acima enumeradas. Ao pretender todas juntas,
acontece inevitavelmente que enquanto vai atrás de todas, não
consegue nenhuma integralmente.
Muitos são os caminhos que levam a Deus. Cada um,
portanto, siga o que ele tomou até o fim, com irrevogável
fidelidade, para ser perfeito em qualquer profissão.
Mas, voltemos à exposição da ciência que constituíu o
exórdio desta conversação. Como dissemos acima, a prática se
divide em muitas profissões e atividades. A teorética, por
seu lado, se divide em duas partes: a interpretação histórica
e a inteligência espiritual. É por isto que Salomão, ao
enumerar a graça multiforme da Igreja, acrescentou:
"Todos os que estão junto dele,
têm uma dupla vestimenta". |
Quanto à ciência espiritual, ela compreende três gêneros: a
tropologia, a alegoria e a anagogia, dos quais se diz nos
Provérbios:
"Quanto a ti,
escreve estas coisas
em tríplices letras
sobre a largura de teu coração". |
A história abraça o conhecimento das coisas passadas e
visíveis, que o Apóstolo narra deste modo:
"Está escrito que Abraão teve dois filhos,
um da escrava e o outro da mulher livre.
O que nasceu da escrava,
nasceu segundo a carne;
o que nasceu da livre,
em virtude da promessa". |
O que se segue, pertence à alegoria, porque aí se diz que as
coisas que aconteceram realmente prefiguravam um outro
mistério:
continua ele,
"são as duas Alianças.
Uma, a do Monte Sinai,
gerando na escravidão,
e é Agar.
O Sinai é um monte da Arábia,
que simboliza a Jerusalém de agora,
que é escrava com seus filhos". |
A anagogia se eleva dos mistérios espirituais aos segredos do
céu, mais sublimes e sagrados, como se vê no que o Apóstolo
acrescenta:
"Mas a Jerusalém do alto é livre,
e é ela que é nossa mãe.
Porque está escrito:
`Alegra-te,
estéril que agora dás à luz,
irrompe em gritos,
tu que não geravas,
porque os filhos da abandonada
são mais numerosos
do que os daquela que tinha esposo'". |
A tropologia é a explicação moral relativa à purificação da
vida e à formação ascética, como se por estas duas Alianças
compreendêssemos a prática e a ciência da teorética. Ou que
quiséssemos tomar Jerusalém ou Sião pela alma humana, segundo
estas palavras:
"Louva, Jerusalém,
o teu Senhor;
louva o teu Deus, Sião". |
Deste modo, portanto, as quatro figuras, se assim
quisermos, se reúnem em uma só, de maneira que a mesma e
única Jerusalém pode ser entendida em quatro acepções
diferentes. Segundo a história, é a cidade dos Judeus;
segundo a alegoria, a cidade celeste; segundo a tropologia, é
alma humana, que é, sob esse nome, freqüentemente increpada
ou louvada pelo Senhor. Destes quatro gêneros de
interpretação diz o bem aventurado Apóstolo:
"Agora, pois, irmãos,
se eu venho a vós falando em línguas,
que proveito vos trago,
a não ser que vos fale em revelação,
ou em ciência,
em profecia
ou em doutrina?" |
A revelação se refere à alegoria, pela qual aquilo que a
narrativa histórica esconde se torna manifesto pelo sentido
espiritual.
A Ciência, também lembrada pelo Apóstolo, representa a
tropologia. Esta nos faz discernir, mediante um exame
prudente, a utilidade ou decência das coisas que dependem do
juízo prático.
A Profecia, que o Apóstolo pôs em terceiro lugar,
significa a anagogia, que transfere o discurso para as coisas
futuras e invisíveis.
A Doutrina expõe simplesmente a ordem da história, em que
não há nenhum sentido mais oculto do que aquele que soa nas
próprias palavras.
Se, portanto, sois solícitos em chegar à luz da ciência
espiritual, não por vício de vaidade e jactância, mas pela
graça da purificação, inflamai-vos, primeiro, do desejo
daquela bem aventurança da qual se diz:
"Bem aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus", |
a fim de que possais alcançar também aquela outra da qual
fala o anjo a Daniel:
"Os que tiverem sido doutos,
refulgirão como o esplendor do firmamento,
e os que instruem a muitos para a justiça,
brilharão como as estrelas
nas eternidades sem fim". |
E noutro profeta:
"Acendei em vós a luz da ciência,
enquanto é tempo". |
Guardando esta diligência que eu sinto em vós pela leitura,
apressai-vos, com todo o zelo, para possuir o mais depressa
possível a plenitude da ciência prática, isto é, moral. Sem
ela é impossível ter a pureza teorética de que falamos. E
esta só a conseguem, como se fosse, por assim dizer, um
prêmio, aqueles que, depois de muito servir numa vida de
obras e trabalhos, se tornam perfeitos, não pelo efeito das
palavras de seus mestres, mas pela virtude de seus próprios
atos.
Não é na meditação da Lei que eles adquirem a
inteligência, mas como o fruto das suas obras. Com o
salmista, eles cantam:
"Pelos vosso mandamentos,
eu tive a inteligência". |
E, depois de terem eliminado as suas paixões, dizem com
confiança:
"Eu salmodiarei,
e terei a inteligência
no caminho imaculado". |
Se, portanto, quereis preparar no vosso coração o sagrado
tabernáculo da ciência espiritual, purificai-vos do contágio
de todos os vícios e despojai-vos das preocupações deste
século. É, com efeito, impossível que a alma, envolvida mesmo
ligeiramente pelas preocupações do mundo, alcance o dom da
ciência, se torne fecunda em sentidos espirituais e guarde
com tenacidade as santas leituras.
Observai, pois, antes de tudo, o empenho em ordenar à
vossa boca um completo silêncio, a fim de que não as anulem
por uma vã exaltação nem o vosso zelo na leitura, nem o vosso
esforço animado por tanto desejo.
E nisso está o primeiro passo na ciência prática: receber
os ensinamentos e as palavras de todos os antigos de coração
atento e boca, por assim dizer, muda, e conservá-los com
solicitude na alma.
A quem, somente em vista do louvor humano, insiste no
esforço da leitura, é impossível merecer o dom da verdadeira
ciência. Os que são prisioneiros desta paixão estão
forçosamente escravizados a outros vícios, sobretudo a
soberba. Sê, portanto, em tudo
"pronto para escutar,
mas lento para falar", |
para que não se aplique a ti o que nota Salomão:
"Se vires um homem veloz na palavra,
fica sabendo que no insensato
há mais esperança do que nele". |
Urge que não vos deixeis levar pelo exemplo daqueles que
adquiriram habilidade em discutir e uma certa afluência
verbal. Eles podem dissertar com elegância e facúndia sobre
tudo que quiserem e passam por ter a ciência espiritual aos
olhos dos que não são capazes de perceber o que eles são.
Pois uma coisa é ter facilidade em falar e certo brilho no
discurso, e outra é entrar até o coração e a medula das
palavras celestes e contemplar, com o olhar mais puro do
coração, os mistérios mais profundos e escondidos. Isto não o
pode nenhuma ciência humana nem erudição secular possuir, mas
somente a pureza da alma, pela iluminação do Espírito Santo.
Se, por conseguinte, queres chegar à ciência verdadeira
das Escrituras, apressa-te a conseguir, primeiro, uma
invariável humildade de coração. É ela que te levará à
ciência, não a que enche de vento (1 Cor. 8,1), mas a que
ilumina, pela perfeição da caridade. É impossível a uma alma
impura obter a ciência espiritual.
Depois disto, eliminadas as preocupações e os pensamentos
terrenos, esforça-te, de toda maneira, por dedicar-te
assiduamente à leitura sagrada, de modo que a meditação
contínua impregne a tua alma e a forme à sua própria imagem,
fazendo dela, por assim dizer, uma arca da aliança (Heb. 9, 4-5),
com as duas tábuas de pedra, isto é, a eterna firmeza dos
dois Testamentos: a urna de ouro, símbolo de uma memória oura
e sem mancha, que conserva com tenacidade o maná escondido,
vale dizer, a eterna e celeste doçura dos sentidos
espirituais e do pão dos anjos, e a vara de Aarão, quer
dizer, o estandarte da salvação de nosso sumo e verdadeiro
pontífice Jesus Cristo. Todas estas coisas são protegidas por
dois querubins, isto é, a plenitude da ciência histórica e
espiritual. Porque Querubim significa "plenitude de ciência".
Devemos, por conseguinte, ter todo o empenho em aprender
de cor a série das Sagradas Escrituras e em repassá-las na
memória, sem cessar. Esta meditação contínua nos produzirá um
duplo fruto. Primeiro, enquanto a atenção da mente está
ocupada em ler e em preparar as leituras, não se deixará
cativar pelos laços dos maus pensamentos. Em segundo lugar,
à medida em que cresce, por este esforço, a renovação de
nossa mente, começa também a mudar a face das Escrituras, e a
beleza de uma compreensão mais sagrada aumenta com os nossos
progressos; elas se acomodam à capacidade dos sensos humanos,
aparecendo terrena para o homem carnal, e divina para os
espirituais.
Para mostrar melhor, por meio de um exemplo, o que
tentamos afirmar, basta citar um testemunho da Lei de Moisés.
Por ele, vou provar que todos os preceitos celestes se
estendem a todo o gênero humano, mas segundo a medida do
estado de cada um de nós.
Está escrito na Lei:
O homem ainda prisioneiro das paixões e obscenidades da carne
guardará proveitosamente este preceito, tomando-o
simplesmente em seu sentido literal. Mas aquele que já se
desprendeu da ação torpe e do afeto impuro, cumpre-lhe
observá-lo em seu sentido espiritual, tendo cuidado para não
cair em uma forma mais sutil do pecado de fornicação que
consiste na divagação dos pensamentos. Todo pensamento que
afasta, por pouco que seja, de Deus, e não somente os
pensamentos torpes, mas também qualquer pensamento inútil é,
aos olhos do perfeito, uma fornicação impura.
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