A LITURGIA DA MISSA
SEGUNDO O CONCÍLIO
VATICANO II

I



Para um mundo cada vez mais irreversivelmente comprometido com o progresso material em evidente detrimento e abandono das realidades eternas, a decisão de convocar o Concílio Vaticano II, vigésimo primeiro da série dos Concílios Ecumênicos, foi anunciada em 1959, no dia da festa da conversão do Apóstolo São Paulo. Segundo São Bernardo, a data não poderia ter sido mais sugestiva:

"A Igreja faz solene memória desta conversão",

diz São Bernardo,

"para que ninguém perca a esperança,
por maiores que sejam os seus extravios,
ao ouvir como Saulo,
ainda arquitetando ameaças e mortes
contra os discípulos do Senhor,
foi convertido subitamente em vaso de eleição.
Quem, daqui para a frente,
oprimido pelo peso de suas iniqüidades,
poderá dizer que não pode mais levantar-se
a uma vida santa,
ao ver Saulo, no mesmo caminho,
sedento de sangue,
de perseguidor crudelíssimo transformar-se
em pregador fidelíssimo?
Nesta única conversão manifesta-se com todo o esplendor
a grandeza da misericórdia de Deus
e a eficácia de sua graça".

PL 183, 359

Tão repentina como a conversão de São Paulo foi também a convocação do Concílio Vaticano II. Nesta data Sua Santidade, o Papa João XXIII, estava na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, junto ao local onde vinte séculos antes havia sido martirizado o apóstolo São Paulo. Junto com ele estavam diversos cardeais. Subitamente veio-lhe uma inspiração. Não nomeou nenhuma comissão para estudar previamente o assunto, não consultou nenhum especialista, não fêz perguntas a ninguém, nem estudou o problema longamente por si próprio. Naquele mesmo local, dali a poucos momentos, anunciou aos cardeais o seu firme propósito de convocar o Concílio Vaticano II.

Mais tarde João XXIII referiu-se várias vêzes a este fato:

"A idéia do Concílio não amadureceu
como fruto de prolongada consideração,
mas como o florir espontâneo
de uma inesperada primavera".

Alocução 9/8/59

"Consideramos inspiração do Altíssimo
a idéia de convocar um Concílio Ecumênico,
que desde o início de nosso pontificado
se apresentou à nossa mente
como o florir de uma inesperada primavera".

M.P.Supernu Dei Nutu,5/6/60

"A idéia mal surgiu em nossa mente
e logo a comunicamos com fraternal confiança
aos senhores cardeais,
lá na Basílica Ostiense
de São Paulo Fora dos Muros,
junto ao sepulcro do Apóstolo dos Gentios,
na festa comemorativa de sua conversão,
a 25 de janeiro de 1959".

Alocução 20/6/62

A decisão de convocar o Concílio Ecumênico, portanto, não necessitou de tempo para amadurecer na alma do Pontífice. Surgiu, consumou-se e foi comunicada à Igreja em questão de poucos momentos. Muito diversa, entretanto, era a natureza dos motivos que levaram João XXIII a esta convocação. Os concílios ecumênicos nunca foram assembléias que se reunissem a intervalos regulares; todos os vinte concílios anteriores aos Vaticano II haviam sido convocados por motivos graves e excepcionais. É, portanto, uma questão importante saber que problemas João XXIII tinha em mente, tão graves e excepcionais, a ponto de fazê-lo julgar necessária a convocação de um concílio ecumênico.

O próprio João XXIII respondeu a esta pergunta no discurso que fêz aos cardeais naquele 25 de janeiro de 1959, ao anunciar pela primeira vez o Concílio. Não há melhor exposição do que suas próprias palavras:

"Se o bispo de Roma estende o seu olhar
sobre o mundo inteiro,
de cujo governo espiritual foi feito responsável
pela divina missão que lhe foi confiada,
que espetáculo triste não contempla diante do abuso
e do comprometimento da liberdade humana que,
não conhecendo os céus abertos
e recusando-se à fé em Cristo Filho de Deus,
redentor do mundo e fundador da Santa Igreja,
volta-se todo em busca dos pretensos bens da terra,
sob a tentação e a atração das vantagens
da ordem material
que o progresso da técnica moderna
engrandece e exalta.
Todo este progresso,
enquanto distrai o homem
da procura dos bens superiores,
debilita as energias do espírito,
com grave prejuízo daquilo
que constitui a força de resistência da Igreja
e de seus filhos aos erros,
erros que,
no curso da história do Cristianismo,
sempre levaram à decadência espiritual e moral
e à ruína das nações.

Esta verificação desperta no coração
do humilde sacerdote que a divina providência
conduziu a esta altura do Sumo Pontificado
uma resolução decidida
para a evocação de algumas formas antigas
de afirmações doutrinárias
e de sábias ordenações da disciplina eclesiástica que,
na história da Igreja,
em épocas de renovação,
deram frutos de extraordinária eficácia
para a clareza do pensamento
e para o avivamento da chama do fervor cristão.

Veneráveis irmãos e diletos filhos!

Pronunciamos diante de vós,
por certo tremendo um pouco de emoção,
mas ao mesmo tempo com humilde
resolução de propósito,
o nome e a proposta de celebração
de um Concílio Ecumênico para a Igreja Universal".

Este texto é muito importante, porque mostra que João XXIII, ao ter convocado o Concílio Vaticano II, não estava pensando, pelo menos de modo principal, na unidade dos cristãos, na reforma litúrgica, nem em outros temas específicos. Ele estava na realidade aflito diante do triste espetáculo do homem contemporâneo,

"distraído da busca dos bens superiores,
envolvido com os bens da terra,
que o progresso da técnica engrandece e exalta".

Não era a primeira vez que um papa apontava a preocupação da Igreja perante um fato tão grave e para o qual a própria humanidade nele envolvida vinha perdendo, a cada geração, cada vez mais a capacidade de apreciá-lo em seu justo significado. Na sua mensagem de Natal de 1953, Pio XII havia abordado este problema com a mesma clareza de proporções que em 1959 levaria João XXIII a convocar o Concílio:

"O moderno progresso técnico,
em suas múltiplas aplicações,
com a absoluta confiança que infunde
e com as inexauríveis possibilidades que promete,
estende diante dos olhos
do homem de nossa época
uma visão tão vasta
que para muitos passa a ser confundida
com o próprio infinito",

disse na época Pio XII.

"A conseqüência deste fato
é que os homens passam a atribuir
a estas realidades
uma autonomia impossível,
e, não obstante isso,
esta suposta autonomia passa a se constituir
no fundamento de uma concepção
de vida e do mundo
que consiste em:

  • Considerar como o mais alto valor
    do homem e da vida humana
    extrair o maior proveito possível
    das forças e dos elementos naturais;

  • Fixar como objetivos preferenciais
    a todas as demais atividades humanas
    o desenvolvimento de novas tecnologias
    de produção de bens materiais;

  • Colocar nestes processos a perfeição
    da cultura e da felicidade terrena.
Qualquer um poderá ver, porém,
que um mundo conduzido desta maneira
não pode mais dizer-se
iluminado por aquela luz,
nem possuído daquela vida
que o Verbo de Deus,
esplendor da glória divina,
fazendo-se homem,
veio trazer aos homens".

Alocução de Natal 1953

No Natal de 1961 João XXIII retomou novamente o mesmo assunto e, na Bula Humanae Salutis voltou a expor as causas da convocação do Concílio Ecumênico, as mesmas que havia apontado no dia em que, três anos antes, falou pela primeira vez sobre o assunto:

"A Igreja assiste hoje a grave crise da sociedade.
Enquanto para a humanidade surge uma nova era,
obrigações de uma gravidade e amplitude imensas
pesam sobre a Igreja, como nas épocas
mais trágicas de sua história.
A sociedade moderna se caracteriza
por um grande progresso material
a que não corresponde igual progresso
no campo moral.
Daí enfraquecer-se o anseio
pelos valores do espírito
e crescer o impulso para a procura
quase exclusiva dos gozos terrenos,
que o avanço da técnica põe,
com tanta facilidade,
ao alcance de todos.
Diante do espetáculo de um mundo
que se revela em tão grave estado
de indigência espiritual,
acolhendo como vinda do alto
uma voz íntima de nosso espírito,
julgamos estar maduro o tempo
para oferecermos à Igreja Católica e ao mundo
o dom de um novo Concílio Ecumênico.
Ao mundo perplexo, confuso e ansioso
sob a contínua ameaça de novos
e assustadores conflitos,
o próximo Concílio é chamado a suscitar
pensamentos e propósitos de paz,
de uma paz que pode e deve vir sobretudo
das realidades espirituais e sobrenaturais
da inteligência e da consciência humana".

As palavras de João XXIII são particularmente claras: o que preocupa o Pontífice é

"o gravíssimo estado
de indigência espiritual da humanidade,
por cujos bens ela já nem anseia
senão muito debilmente,
enfraquecida pela procura quase exclusiva
dos gozos terrenos
que o progresso põe com grande facilidade
ao alcance de todos".

No pensamento de João XXIII, esta foi a preocupação fundamental por trás de seu propósito de convocar o Vaticano II. Resta, porém, perguntar ainda o que ele esperava concretamente que o Vaticano II fizesse para responder a tão grave problema. Vimos como foi convocado o Concílio; vimos também o motivo pelo qual foi convocado. O que se esperava, porém, que ele fizesse?

João XXIII quis ser claro quanto ao que pensava a este respeito. Repetidas vezes, em vários pronunciamentos que antecederam o Concílio, disse o que esperava que o Concílio fizesse e como os cristãos deveriam preparar-se para a celebração deste evento.

No dia 13 de setembro de 1960 ele explicou em linhas gerais qual deveria ser o objetivo do Concílio Ecumênico. Disse então João XXIII:

"A obra do Concílio Ecumênico
é verdadeiramente concebida
para restituir ao semblante da Igreja de Cristo
todo o esplendor dos seus traços
mais simples e mais puros das suas origens,
a fim de apresentá-la tal
como o seu divino fundador a criou".

No dia seguinte, 14 de novembro, João XXIII explicava que, sendo estes os objetivos do Concílio, ele não estava sendo convocado para discutir algum ou alguns pontos específicos da doutrina cristã, como havia sido o caso dos vinte concílios anteriores. Ao contrário, a problemática do mundo contemporâneo era tal que exigia de um Concílio Ecumênico uma tarefa que não havia sido exigida dos anteriores:

"Na época moderna",

disse João XXIII em 14 de novembro,

"num mundo de fisionomia profundamente mudada,
no meio das situações e dos perigos
da procura quase exclusiva
dos bens materiais,
no esquecimento ou no enfraquecimento
dos princípios da ordem espiritual e sobrenatural
que caracterizavam a penetração
e a extensão da civilização cristã
através dos séculos,
mais do que tal ou tal ponto de doutrina,
trata-se de repor em todo o seu valor
e em toda a sua luz
a substância do pensamento
e da vida humana e cristã,
de que a Igreja é depositária
e mestra pelos séculos".

Segundo esta passagem, pois, o objetivo do Concílio não seria discutir um ou outro ponto de doutrina, mas sim

"repor em toda a sua luz
a substância do pensamento
e da vida cristã".

Em outras ocasiões ele chegou a explicar mais concretamente o que isto queria dizer. Talvez o momento em que o fêz mais claramente foi na alocução de 20 de junho de 1961, quando afirmou que

"O sentido do Concílio Ecumênico
por nós pensado desde o princípio é,
em poucas palavras e concretamente:

  • Fazer com que o clero se revista
    de novo fulgor de santidade;

  • que o povo seja eficazmente instruído
    nas verdades da fé e da moral cristã;

  • que as novas gerações
    sejam instruídas retamente;

  • que se cultive o apostolado social;

  • e que os cristãos tenham
    um coração missionário".

Na intenção de João XXIII, portanto, os principais objetivos do Concílio Ecumênico seriam, diante da materialidade do mundo moderno, encontrar os meios para

"revestir o clero
de novo fulgor de santidade
e instruir o povo eficazmente
nas verdades da fé e da moral cristã".

É importante frisar isto, pois é em torno deste propósito que iremos analisar o que aconteceu no Concílio em relação à reforma litúrgica. João XXIII nutria grandes esperanças de um revigoramento espiritual da Igreja em face ao Concílio Vaticano II. Na exortação apostólica de 6 de janeiro de 1962 ele afirma que

"Todos nós estamos na expectativa
de uma nova era,
fundada sobre a fidelidade ao patrimônio antigo,
que se abra às maravilhas
de um verdadeiro progresso espiritual".

E ainda:

"Nestes últimos meses
nosso coração tem se derramado
em documentos múltiplos,
destinados a preparar o clima espiritual
do Concílio Ecumênico que se aproxima.
A todos convidamos
para uma oração mais acentuada,
que dilate os horizontes do fervor religioso
e empenhe em maior santidade de vida"

Alocução 28/4/62

"É à luz deste próximo Concílio
que desejamos orientar e incentivar
a atitude de nossos filhos.
Todos os que são eclesiásticos
sabem por que vias se ascende
à familiaridade com o Senhor,
fonte de graça e de santificação.
A eles foi feito o convite
de entesourarem as riquezas que se ocultam
no cotidiano sacrifício eucarístico do altar e,
mais recentemente,
à recitação digna, atenta e devota
deste pomo sacro e encantador
que é o breviário.
À oração mais intensa,
em preparação ansiosa
dos grandes prodígios da graça celeste,
deve-se juntar um cuidado
atento e delicado da vida espiritual.
Quem é bom cristão é bom entendedor.
Poucas palavras resumem toda a substância
da grande transformação
que esperamos para a pessoa
e para a família de cada um,
e para a vida social.
Interrogue cada um de vós a si mesmo
se o ouvido do coração ouve estas palavras:

  • desejar a pátria celeste,

  • conter os desejos da carne,

  • declinar a glória do mundo,

  • não ambicionar a riqueza alheia,

  • dispender as próprias riquezas
    em socorro da pobreza alheia.
Com estas indicações ficamos entendidos:
além da oração prosseguida
mais viva e vibrante,
estes cinco avisos apostólicos
são importantes para assimilar a fisionomia
que deverão assumir os bons católicos
durante a época
do Concílio Ecumênico Vaticano"

Carta Romanos 8/4/62