III/J



136.

Enquanto durou o pontificado de Nicolau V Igreja e Renascença conviveram excelentemente e a experiência parece ter sido benéfica para ambos os lados. Mas, logo após a morte deste Papa, a corrupção característica do Renascimento, aquela em que Maquiavel diria que os italianos superavam todos os demais povos, começou a se infiltrar também nos Estados Pontifícios, na administração da Igreja e também entre os cardeais.

Depois de Nicolau V sucederam-se no trono de São Pedro o Papa Calixto III, espanhol de nascimento; o Papa Pio II que, tal como Nicolau V, havia sido humanista durante a sua juventude; e Paulo II, um veneziano.

Quatro pontificados depois de Nicolau V foi eleito Papa o Cardeal Francesco della Rovere, um franciscano de vida exemplar, o qual tomou o nome de Sixto IV.

137.

Sixto IV era filho de uma família muito antiga, mas também muito pobre. Havia recebido o nome de Francisco devido à devoção que sua mãe tinha por São Francisco; esta mesma devoção fêz com que, aos nove anos, a educação do menino tivesse sido confiada aos frades franciscanos. O futuro Sixto IV foi desta maneira encantando-se com a vida franciscana até mais tarde, já adolescente, decidir- se ele próprio a entrar para a ordem.

Doutorou-se em Filosofia e Teologia e tornou-se um renomado professor da Ordem Franciscana em várias Universidades da Itália.

Mais tarde foi nomeado provincial da Ordem Franciscana na Ligúria. Como provincial Francisco destacou-se pelo zelo com que empreendeu a reforma da disciplina religiosa nos conventos franciscanos sob sua jurisdição, disciplina que havia decaído de modo geral em todas as ordens religiosas da Igreja desde a época da Peste Negra. Seu esforço reformador na Ligúria, reaproximando a Ordem do ideal de vida pregado por São Francisco, fêz com que em 1464 fosse eleito superior geral de toda a Ordem Franciscana.

Já como superior geral, ampliou com grande energia o seu trabalho de reformador à Ordem Franciscana em todo o mundo. Por justos merecimentos foi elevado ao cardinalato e, depois de ter ocupado durante sete anos o cargo de Geral Franciscano, foi eleito Papa.

138.

Mas como Papa, Sixto IV encontrou o trono de São Pedro imerso em uma realidade profundamente diversa tanto da Ordem Franciscana da qual ele provinha como da situação em que o próprio Nicolau V o havia encontrado quando de sua eleição.

Nicolau V havia sido eleito para o Pontificado com a Santa Sé e os Estados Pontifícios em uma situação de escombros. Sixto V encontrou-os já em avançada fase de organização, mas ao mesmo tempo já infiltrados pela corrupção. Havia, ademais, um clima de desconfiança e mesmo de ódio em relação ao Papa, uma vez que Paulo II, o antecessor de Sixto IV, havia entrado em sérios litígios com os humanistas de Roma e expulso dezenas deles do serviço da Santa Sé.

A maior parte dos territórios pontifícios fora de Roma ainda estavam nas mãos de aproveitadores que, embora nominalmente se declarassem legados papais, comportavam- se na realidade como déspotas feudais. Os territórios situados nas fronteiras dos Estados Pontifícios estavam também nas miras das ambições políticas dos demais estados italianos. Isto, porém, não era novidade. A novidade agora era o medo dos políticos italianos quanto ao que faria este novo Papa que, assumindo o governo de um Estado em fase de intensa reconstrução, vinha precedido da fama de um reformador intransigente.

139.

Sixto IV continuou vários empreendimentos iniciados por Nicolau V.

Foi ele que construíu a capela que mais tarde recebeu o nome de Capela Sixtina justamente por causa do nome deste pontífice. Esta capela, posteriormente, viria a adquirir uma fama extraordinária em todo o mundo devido ao fato de ter sido em seu teto que Miguelângelo pintou o Juízo Final.

Sixto V também construíu várias novas dependências para a Biblioteca Vaticana, à qual também acrescentou mais de mil novos volumes.

140.

Mas, paralelamente a estes empreendimentos, Sixto IV foi também quem iniciou, inclusive por meio da força quando necessário, a destituição dos déspotas feudais dos territórios pontifícios.

Nas fronteiras dos Estados Pontifícios sua política resultou em uma guerra com a cidade de Florença que durou dois anos. A guerra terminou sem que se tivesse chegado a nenhuma conclusão, devido a uma ameaça de invasão da Itália por parte dos muçulmanos que polarizou a atenção de todos os governantes da península para um problema muito mais grave. A guerra, apesar de ter terminado quanto às hostilidades de fato, ficou apenas suspensa quanto às relações entre Roma e Florença, as quais continuaram péssimas até a morte do Papa.

141.

Quanto à Cúria Romana, logo no início de seu pontificado Sixto IV deu ordem para que fosse elaborada uma bula contendo disposições para uma reforma completa.

Neste documento, diz o historiador L. Pastor,

"sem nenhuma condescendência
estavam colocados em clara luz
todos os abusos introduzidos
especialmente entre os cardeais
e são dadas disposições
que se tivessem sido executadas
teriam provocado a mudança de aspecto
tanto do colégio cardinalício
como de toda a Cúria Romana".

Entretanto, Pastor cita uma carta de Pedro Barroci datada de 1481 em que se lê expressamente que

"Sixto IV queria opor-se a estes males,
e nomeou uma comissão para a reforma,
mas a maioria dos cardeais se declarou
contrária à propostas dos que melhor pensavam".

Para este resultado, acrescenta Pastor, muito contribuíu o fato de que os cardeais que melhor teriam apoiado as idéias de Sixto IV eram justamente os que haviam falecido durante o pontificado de Paulo II.

A bula sequer chegou a ser publicada, diz Pastor. Quem quisesse saber os motivos,

"mais do que no Papa,
deveria procurá-los naqueles
que o circundavam".

Não se deve negar, continua Pastor, que Sixto IV teria podido fazer muito mais pela reforma da Igreja, tal como havia feito entre os franciscanos, se a corrupção não fosse tão grande, especialmente em certas partes da Itália.

Sixto IV então percebeu que estava circundado de

"prelados espertos em todos os sentidos,
muito influentes e hábeis,
os quais esperavam dele na verdade
um instrumento para seus objetivos egoístas".

Para poder levar adiante seus objetivos, portanto, Sixto IV percebeu que necessitava do apoio de executores em quem pudesse confiar.

142.

Talvez esta seja a razão de um fato histórico para o qual parece que não foi dada até hoje uma explicação completamente satisfatória.

Sixto IV, um homem manifestamente íntegro, instruído e que, como reformador dos franciscanos, havia deixado uma fama de alguém que dificilmente poderia ser enganado por terceiros, passou repentinamente a nomear para o cardinalato e para um sem número de cargos de importância uma grande quantidade de pessoas que em si valiam muito pouco, mas que eram ou seus próprios parentes ou indivíduos que, por razões pessoais, eram-lhe obedientes e de confiança.

143.

Passamos agora a narrativa para o historiador Philip Hughes.

"Sixto IV é considerado por causa disto",

diz Philip Hughes,

"uma das figuras sobre as quais
pesa grande parte da responsabilidade
pelos escândalos dos seguintes
sessenta anos na Igreja".

"Ele diminuíu a importância,
até então dada ao Colégio dos Cardeais,
com as nomeações que fêz,
e também ao ceder altas posições
na administração
a parentes indignos".

"Pela primeira vez eram admitidos
homens maus ao Sacro Colégio,
e quantos!"

"E o seu criador,
ex-Geral dos Franciscanos,
um homem instruído,
simples e diligente,
é, no entanto,
um homem de conduta irrepreensível!"

"De seus trinta e quatro cardeais,
nada menos do que seis
eram pessoas de sua família,
sobrinhos e primos.
Outros da família que permaneceram leigos
foram nomeados pelo Papa
para as funções civis e militares.
Não as quis confiar à nobreza romana
por julgá-la desleal.
A própria família do Papa
instalou-se nos principais lugares
da Igreja e do Estado,
reinando como seus vassalos
nos feudos do Papa
e aliando-se, pelo casamento,
aos príncipes vizinhos".

"Esta política assegurou realmente
uma certa ordem em seu domínio,
porém o sistema acabou prejudicando-se
a si mesmo".

"O sucessor de qualquer Papa
que tivesse cedido tantos cargos a parentes
teria que se enfrentar
com uma nova oposição permanente
e da pior espécie.
Surgiu depois com isto um novo elemento
em todos os conclaves:
a luta dos que se achavam em seus cargos,
para impedir a eleição de um Papa
que viesse desalojá-los.
Já no pontificado de Sixto IV
a má conduta de seus sobrinhos
envolveu a Santa Sé
em uma série de episódios
escandalosos e deprimentes".

144.

Assim, quando morreu Sixto IV, com o apoio de cardeais parentes do pontífice falecido, foi eleito Papa o Cardeal João Batista Cibo, um prelado que, em condições normais não teria chegado ao trono pontifício.

Desde que João Batista, em sua juventude, havia sido ordenado sacerdote, na verdade nada de repreensível foi encontrado em sua vida. Sempre foi um homem bom e afável.

Mas antes de ter sido sacerdote João havia tido dois filhos ilegítimos, reconhecidos por ele publicamente na forma da lei.

Certamente que, fosse aquela outra época, teria sido alguma coisa de muito estranha que fosse eleito para o Supremo Pontificado um homem nestas condições. Mas naquela época poucos reclamaram do fato. E igualmente muito pouco se falou quando, alguns anos mais tarde, João Batista, agora já Papa Inocêncio VIII, decidiu ele próprio celebrar o casamento de seus filhos no Vaticano.

Por outro lado, com seu caráter pacífico, Inocêncio VIII fêz cessar as guerras que Sixto IV havia iniciado. Fêz as pazes com a cidade estado de Florença que no pontificado anterior havia estado em guerra com os Estados Pontifícios.

O governante de Florença, Lourenço de Medicis, ofereceu a mão de sua filha em casamento ao filho do Papa. Ao casamento celebrado no Vaticano por Inocêncio VIII seguiu-se um tratado de paz. Mais tarde Inocêncio VIII delegou inclusive todos os problemas de política externa dos Estados Pontifícios aos cuidados do governo de Florença, até pouco tempo antes inimigo do Papa.

Com intenções evidentemente conciliatórias, Inocêncio VIII elevou ao cardinalato João de Medicis, da família dos governantes florentinos, uma criança de apenas 13 anos. Deve-se dizer, porém, que apesar da idade precoce de João, ele foi educado condignamente para desempenhar o cargo que iria assumir na Igreja, dentro de uma sadia moral cristã e do que de melhor havia na Renascença em matéria de educação.

145.

Se, porém, já constituía algo estranho que se elegesse para o Supremo Pontificado um homem pai de filhos ilegítimos, os cardeais que elegeram o sucessor de Inocêncio VIII decaíram, em sua escolha, a um dos mais baixos níveis de que se tem notícia na história da Igreja.

A maioria dos eleitores escolheu o Cardeal Rodrigo Borgia para Papa, um administrador brilhante, mas um homem que, principalmente pela vida que levou durante o tempo em que foi cardeal, haveria de ser uma fonte de escândalo para a Igreja.

146.

Rodrigo Borgia, que como Papa escolheu o nome de Alexandre VI, não era italiano, mas espanhol de nascimento. Descendia de uma família nobre de Valencia, na Espanha, e era sobrinho do Papa Calixto III, também espanhol da família Borgia, que havia sucedido a Nicolau V como Pontífice.

147.

O Papa Calixto III, cujo verdadeiro nome era Alfonso Borgia, havia reinado como Pontífice apenas por três anos, entre 1455 e 1458.

Quinze anos antes, era apenas um sacerdote da antiga família Borja em Valencia, na Espanha. Certa vez, ele mesmo referiu o fato quando Papa, sendo ainda jovem padre, São Vicente Ferrer, famoso pregador dominicano, havia ido pregar em Valencia. Apesar de Alfonso estar no meio de uma grande multidão, São Vicente certa vez interrompeu seu sermão e, voltando-se para ele, declarou- lhe profeticamente:

"Meu filho,
eu vos desejo a felicidade.

Lembrai-vos que um dia sereis chamado
a ser a glória de vosso país
e de vossa família.

Sereis investido
da mais alta dignidade
que possa advir à condição humana".

Alguns anos mais tarde, em 1444, padre Alfonso Borja, por méritos reais e também por intercessão do Rei de Nápoles, na época um espanhol, foi elevado ao cardinalato e se tornou o primeiro Borgia da história a pisar em solo italiano. Em 1445, depois de onze anos de cardeal, foi eleito Papa para suceder a Nicolau V.

148.

Foi com a eleição de Calixto III que Rodrigo Borgia, o futuro Alexandre VI, entrou a serviço da Igreja.

Ele era, conforme vimos, sobrinho de Calixto III. Havia estudado Direito na Universidade de Bolonha e, depois de cerca de um ano de pontificado, seu tio nomeou-o cardeal.

Ao ser nomeado cardeal Rodrigo Borgia ainda não era sacerdote, mas naquela época não era incomum um cardeal da Igreja não ser sacerdote, já que o cardinalato considerado em si mesmo não é uma ordem sacra, os cardeais sendo pessoas nomeadas, enquanto tais, apenas para auxiliar o Papa no governo da Igreja. Embora atualmente a prática eclesiástica seja nomear cardeais apenas a pessoas constituídas em ordens sacras, ainda recentemente, logo após o Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI chegou a convidar um leigo, o filósofo católico Jacques Maritain, a aceitar o cardinalato.

Bem pouco antes de sua morte Calixto III nomeou o cardeal Borgia vice chanceler da Igreja, na época o posto mais importante na administração eclesiástica depois do próprio Papa. O cardeal Rodrigo Borgia continuaria no posto de Vice Chanceler durante os pontificados de Pio II, Paulo II, Sixto IV e Inocêncio VIII, desempenhando o cargo com rara competência. Durante o pontificado de Paulo II Rodrigo Borgia recebeu também o sacramento da Ordem.

149.

Mas se Rodrigo Borgia foi administrador habilidoso e um brilhante diplomata, o mesmo não se pode dizer de sua conduta na vida particular. O cardeal Rodrigo Borgia não era capaz de praticar a castidade.

Em 1460 Pio II, tendo tido notícia de um escândalo que o cardeal havia provocado em Siena, escreveu-lhe a seguinte mensagem, reproduzido de um texto de F. Berence:

"Querido filho,

quando, há quatro dias,
várias senhoras de Siena,
entregues às vaidades mundanas,
se reuniram nos jardins de Gianni de Bichis,
tua dignidade,
esquecida do cargo que ocupas,
demorou-se junto delas
das sete até as vinte e duas horas.

A tua atitude em nada diferiu
daquela que teria sido
se pertencesses ao grupo
das jovens mundanas.

Nosso desprazer é indizível,
porque tudo isto traz prejuízo
não só ao estado sacerdotal,
mas também ao cargo que dele decorre.

Daí os brocardos cotidianos dos leigos,
e daí também que,
quando desejamos censurá-los,
lançarem-nos à face
nossa própria existência
e difamar até o Vigário de Cristo,
porque se crê que ele fecha os olhos.

Embora leves a mocidade de maneira excusa,
tens certamente bastante idade
para compreenderes a dignidade de teu cargo.
Um cardeal deve ser sem mácula,
um verdadeiro espelho de vida íntegra,
um modelo para todos.

Se não corrigires os teus costumes,
ver-nos-emos constrangidos a publicar
que todos estes fatos se deram
sem o nosso consentimento,
ou antes, com a nossa
mais viva desaprovação.

Sempre foste por nós querido e,
porque temos visto que és modelo
de seriedade e modéstia,
cremos que mereçais nossa proteção".

150.

A existência de uma reprimenda escrita de Pio II à conduta de Rodrigo Borgia consta de diversos textos. Todavia, o próprio texto da carta pudemos somente encontrá-lo em F. Berence. Estranhamos que nela Pio II se refira ao estado sacerdotal se nesta época o cardeal Borgia ainda não era sacerdote. Todavia o fato é que esta carta, qualquer que tenha sido o seu conteúdo, foi um choque para o cardeal.

Prometeu sinceramente corrigir-se e levar, para o futuro, uma vida exemplar como deveria ser a do principal entre os cardeais.

Mas é possível que, quatro anos mais tarde, o velho homem já houvesse retomado conta do cardeal Borgia.

Pio II havia-se retirado para Ancona, para coordenar uma expedição militar contra os turcos que haviam tomado Constantinopla e ameaçavam agora invadir a Europa. Ali mesmo Pio II haveria de morrer, exausto de fadiga, quatro semanas depois.

Enquanto isso, porém, o embaixador de Mântua junto aos Estados Pontifícios, presente também em Ancona junto com Pio II, escrevia uma observação em uma carta confidencial ao seu senhor, Ludovico Gonzaga de Mântua:

"Aqui em Ancona o vice chanceler
nunca dorme só em seu leito".

151.

Mas se o homem velho ainda não houvesse tomado conta do cardeal Borgia no final do pontificado de Pio II, certamente apossou-se dele no de Sixto IV.

Durante o pontificado de Sixto IV Rodrigo Borgia teve quatro filhos com uma mulher romana. João foi o mais velho, César o segundo, Lucrécia e Jofre os dois últimos. Todos eles nasceram sob o pontificado de Sixto IV.

Quando do nascimento de Jofre, o último dos filhos de Rodrigo Borgia, a mãe destas crianças casou-se com um secretário da Cúria Romana e daí para a frente parece que o relacionamento físico entre ela e o cardeal tenha cessado. Mais tarde, como Papa, Alexandre VI reconheceria publicamente a paternidade sobre seus quatro filhos, já então adultos na época de seu pontificado.

152.

Quando Rodrigo Borgia foi eleito Papa, ninguém pareceu ter-se incomodado com a vida que ele havia conduzido como cardeal, e é difícil saber exatamente ao que isso se deve.

Provavelmente a época da Renascença na Itália foi tão corrompida que tais desmandos pouca impressão faziam, pois na sociedade em geral havia-os muito piores. Ademais, parece que neste caso Rodrigo Borgia soube também manter uma relativa discrição de sua vida particular enquanto cardeal.

Na verdade, bem ao contrário do que poderia parecer pela narrativa que fizemos, quando foi eleito, diz Will Durant, verificou-se que raramente uma eleição papal havia sido acolhida pelo povo com tanto entusiasmo. Os governantes da Europa aplaudiram a escolha, enviaram mensagens de esperança pelo futuro da Igreja e até mesmo de uma breve e bem sucedida reforma. Era, na verdade, a fama do cardeal como habilidoso administrador que havia se espalhado pelas cortes da Europa, de preferência à de sua vida particular.

153.

Mas, logo após a eleição, começaram as intrigas e os rumores, coisa que, conforme já tivemos a oportunidade de comentar, foi um hábito bastante arraigado durante a Renascença. Mais ainda haveria de sê-lo em se tratando de um Papa cuja vida passada fornecia suficientes motivos para tanto.

Isto já por si dificultaria muitíssimo a tarefa de compreender o que de fato se passou. Porém, além disso ocorreu também que Alexandre VI pouco se importava com o que os outros dissessem dele e não se preocupava nem em punir nem em desmentir quando se falava mal dele publicamente, mesmo em relação a fatos em que é historicamente possível demonstrar serem evidentemente falsos.

É certamente falso que, conforme se dizia, ele tenha estuprado a sua filha Lucrécia. Não é impossível, conforme também se dizia, que já Papa ele tivesse relações amorosas com uma mulher casada bem conhecida na época. Porém, neste último caso, consta também que o marido desta mulher, um membro da família Orsini, uma das mais importantes e tradicionais famílias romanas e com a qual posteriormente o Papa teve sérios atritos, bem conhecedor dos fatos, nunca se queixou de nada.

A morte de quase todos os cardeais durante o pontificado de Alexandre VI também foi atribuída a envenenamento proposital por parte do Papa e de seu filho César Borgia. No entanto, era comuníssimo durante a Renascença pensar- se em envenenamento quando da morte de uma pessoa importante em que poderia haver interesses em jogo. Ademais, não havia institutos médico legais na época para se dirimirem as dúvidas acerca da causa da morte e, para quase todas as acusações de envenenamento de cardeais existem suficientes provas positivas históricas de que tal coisa não poderia ter ocorrido.

154.

No início de seu pontificado Alexandre VI havia nomeado seu filho mais velho, João, Duque de Gandia, comandante geral das forças pontifícias. Havia nomeado também César Borgia, seu segundo filho, cardeal da Igreja, embora César, tal como o pai quando havia sido nomeado cardeal muitos anos antes, não fosse sacerdote.

155.

Foi então que, em uma quarta feira, dia 14 de junho de 1497, João, o comandante das forças do Estado Pontifício e César, seu irmão cardeal, voltavam de uma festa familiar na vinha de sua mãe nos arredores de Roma.

A uma certa altura do caminho os dois irmãos resolveram se separar e cada qual seguir o seu caminho.

César voltou para Roma. De João não se soube mais o paradeiro até que, por volta do meio dia da sexta feira dia 16 seu corpo foi encontrado por um pescado no rio Tibre, perfurado por nove golpes de faca.

João deixava um filho, que mais tarde seria o pai de São Francisco Borgia, um nobre espanhol que entraria para a Companhia de Jesus e viria a ser o terceiro Geral dos jesuítas, depois de Santo Inácio e do padre Fabro. Elevado posteriormente aos altares, redimiu pela pureza de sua vida a triste fama deixada duas gerações antes pela sua família.

156.

Mas João, o homem que agora havia sido brutalmente assassinado, era o filho primogênito e predileto de Alexandre VI.

Sua morte repentina se constituíu em um choque moral violentíssimo para o Papa. Um choque do tipo que este havia recebido anos antes quando daquela carta recebida de Pio II repreendendo-o pela sua má vida, mas agora muito mais forte.

O Pontífice trancou-se em seus aposentos e não comeu mais nada desde o fim da tarde de quinta feira, quando já se desconfiava sobre o que teria acontecido, até o sábado à noite. O domingo que se seguiu foi passado em prantos.

Na segunda feira, ainda em meio a abundantes lágrimas, chamou todos os cardeais à sua presença e anunciou-lhes oficialmente a morte do Duque de Gandia, seu filho.

"Morreu o Duque de Gandia",

disse Alexandre VI aos cardeais.

"Sua morte causou-nos
o mais profundo pesar,
e não poderíamos ter sofrido
maior dor do que esta,
porque o amávamos mais do que tudo,
e o estimávamos mais do que o Papado
ou qualquer outra coisa.

Se tivéssemos sete papados,
todos os daríamos para termos
o Duque novamente vivo".

Mas então, ao que até ali parecia ser apenas um desabafo de dor, Alexandre VI corajosamente decidiu-se a acrescentar o seguinte impressionante comunicado:

"Este golpe,
o mais pesado que nos poderia
ter acontecido,
Deus no-lo enviou talvez
por causa de alguns de nossos pecados,
e não porque Ele reservava ao Duque
uma morte tão cruel".

"Não sabemos quem o matou,
nem quem o atirou ao Tibre,
mas de nossa parte,
daqui para a frente,
resolvemos emendar a nossa vida,
e com ela reformar a Igreja".

"Daqui para a frente
os benefícios eclesiásticos
serão concedidos a pessoas
que os mereçam,
de acordo como o voto dos cardeais".

"Renunciaremos a todo e qualquer
favorecimento de parentes".

"Iniciaremos uma reforma completa
conosco mesmo,
e daí prosseguiremos
a todos os níveis da Igreja,
até que toda a obra tenha sido realizada".

"Decidimos, ademais,
nomear uma comissão de seis cardeais
para esboçar,
o quanto antes,
um primeiro programa de reforma da Igreja".

157.

Deus, que não permite que ocorra o mal senão com a esperança de daí tirar um bem maior, e que

"castiga àqueles a quem ama",

Apoc. 3, 19

ofereceu a Alexandre VI, tal como o faz a muitos de nós, em vários momentos de nossa vida, uma segunda e excelente oportunidade de emendar a sua vida.

Alexandre VI não era um homem ruim. Ele entendeu perfeitamente a mensagem e a oportunidade que a Providência estava lhe proporcionando. Ele foi sincero e desejou emendar-se, tal como o havia sido também em 1460, quando da advertência de Pio II. Mas infelizmente, tal como ocorre tantas vezes conosco, Alexandre VI falhou novamente.

A boa semente, como diz o Evangelho, caíu entre espinhos. Ele

"escutou a palavra,
mas as aflições deste mundo
e as alucinações das riquezas
a sufocaram,
e ela não pôde dar o seu fruto".

Mt. 13, 22

Trata-se de uma triste realidade que continua ocorrendo com os homens em geral até os dias de hoje, algo cuja imunidade não está incluída entre as promessas que Cristo fêz à Igreja, entre as quais Ele não deixou nenhuma prometendo santidade e salvação a nenhum Pontífice, mas apenas que, junto a eles, tudo o que pertence à essência do que Cristo confiou à Igreja para benefício dos homens até o fim dos tempos jamais poderia ser destruído. E, se estas coisas podem, portanto, acontecer com um Papa, com mais razão podem acontecer e de fato ocorrem todos os dias com todos nós.

158.

A comissão de seis cardeais para esboçar o quanto antes um programa completo de reforma da Igreja, começando pelo Papa, que havia sido apontada naquela segunda feira dia 19 de junho de 1497, reuniu-se e de fato trabalhou com grande rapidez.

Ela apresentou a Alexandre VI, diz Will Durant,

"uma bula de reforma tão excelente
que se suas providências
tivessem se tornado realidade
teriam evitado para a Igreja
tanto a Reforma Protestante
como a Contra Reforma".

159.

Foi então que o rei da França, Luíz XII, decidiu iniciar os preparativos para uma invasão da Itália. Naquele tempo a França era a maior potência militar da Europa. Também não era a primeira, nem seria a última vez que a França invadia a Itália naquela época, devido a interesses políticos que ela possuía tanto no Reino de Nápoles como no Ducado de Milão. Já no início do pontificado de Alexandre VI o predecessor de Luiz XII, o rei Carlos VIII de França, havia invadido a Itália, e nesta ocasião o Papa Borgia salvou a si e talvez a toda a Igreja de um novo cisma devido exclusivamente à incomum habilidade diplomática que havia adquirido durante as quase quatro décadas que havia passado na vice chancelaria da Cúria Romana.

Mas agora que se noticiavam os preparativos de uma segunda invasão o Duque de Gandia havia morrido. César Borgia, o segundo filho mais velho de Alexandre VI, pedia renúncia ao cardinalato para assumir as funções do irmão como comandante das Forças Pontifícias. Ao contrário do irmão, que havia desempenhado o cargo apenas mediocremente, César revelou-se um dos grandes gênios militares de seu tempo, e soube seduzir o coração do pai no sentido de uma reconstrução político-militar dos Estados Pontifícios para se conseguir o necessário suporte físico e financeiro diante de qualquer rebelião ou invasão estrangeira.

Alexandre VI caíu no laço, ao mesmo tempo em que queria iniciar a Reforma da Igreja. Os sucessos espetaculares que a genialidade do comando de César Borgia começou a obter na área político militar foram cada vez mais entusiasmando Alexandre VI. Mas para alcançar estes outros objetivos havia necessidade de dinheiro, e para se conseguir todo este dinheiro não se poderia confiar os cargos da Igreja apenas aos mais merecedores. Era necessário confiá-los também a pessoas ricas e influentes no canário político da época. Era impossível seguir a César e à Reforma apontada pela Comissão dos seis Cardeais ao mesmo tempo. As reformas foram sendo adiadas. As reformas foram sendo esquecidas. No fim também a morte veio bater à porta de Alexandre VI.

Colhido e envolvido pela tempestade do mundo, em seu leito de morte o Pontífice talvez mal percebesse que novamente não havia cumprido o que já por duas vezes no passado havia tão decididamente prometido.

160.

Alexandre VI era, na verdade, um homem bom.

Pode-se perceber isso pelo carinho com que sua eleição ao pontificado foi recebida pelo povo romano e pelos governos da época, pelas esperanças que esta eleição havia suscitado, apesar do que depois se seguiu; pela humildade com que ele reconheceu os seus erros e pela sinceridade com que ele propôs emendar-se; pela religiosidade e pelo sentimento de piedade que de fato ele possuía.

A maioria de nós hoje também somos homens bons. Deve-se, porém, chamar a atenção destes mesmos homens de que esta não é a bondade de que fala o Evangelho.

Não é este o fogo que Jesus veio trazer sobre a terra, fogo que ele tanto desejou que se acendesse e se espalhasse entre os homens (Lc. 12, 49).

Se tudo o que conhecemos como bondade não passa disto, jamais seremos capazes de compreender por que as Sagradas Escrituras dizem que o mundo está envolto em trevas, e qual é a luz que o Evangelho diz que Jesus veio trazer aos homens (Mt. 4, 16).

Na verdade, se nossa bondade se resumir apenas a esta que quase todos nós temos, jamais entraremos no Reino dos Céus. Não é esta a bondade que Jesus veio ensinar que deve ser imitada, aquela bondade pela qual o próprio Deus é bom, e que faz a felicidade dos santos no paraíso (Mt. 6, 48). Não é esta a bondade daqueles de quem Jesus diz no Evangelho que

"aos que o acolheram,
deu-lhes o poder de se tornarem
filhos de Deus,
os quais não do sangue,
nem da carne,
mas de Deus nasceram",

Jo. 1, 12-13

dos quais São Bento diz que

"apoderou-se deles
o desejo de caminhar para a vida eterna,
e por isso lançaram-se como que de assalto
ao caminho estreito
do qual disse o Senhor:

`Estreito é o caminho
que conduz à vida'".

Regra de São Bento 5, 10

À estreiteza deste caminho corresponde nos homens uma igual estreiteza de mente quando não são capazes de perceber que aquilo que usualmente é tido como bondade não é mais do que uma caricatura da bondade de que fala Jesus.

161.

No ano de 1498, o ano seguinte ao da morte do Duque de Gandia, César Borgia renunciou ao cardinalato e foi nomeado Comandante Geral das Forças do Estado Pontifício, no lugar de seu irmão falecido.

No fim deste ano dirigiu-se em missão diplomática à corte do rei de França. Um dos objetivos desta missão era obter o casamento de César Borgia com alguma dama da nobreza francesa e estabelecer uma aliança militar com o rei de França.

A missão foi coroada de êxito. César foi nomeado Duque de Valentinois na França, casou-se com Charlotte d'Albret, da corte do rei de França e conseguiu apoio político, econômico e militar do rei Luiz XII para a reconquista dos Estados Pontifícios.

A França, juntamente com a Espanha, esta última recém unificada e iniciando a colonização da também recém descoberta América, eram na época as principais potências militares da Europa. O apoio político do rei Luiz XII de França a César Borgia, agora simultaneamente nobre da corte francesa e Comandante das Forças Pontifícias. garantiria que o Ducado de Milão e a República de Veneza não interfeririam nos planos militares de César, devido ao receio que estes estados teriam de uma intervenção francesa. O apoio econômico e militar, sob a forma de dinheiro e de tropas francesas treinadas cedidas ao comando de César na Itália seria parte importante do suporte material de que ele precisava para realizar seus empreendimentos.

162.

Desta maneira, no final de 1499, Alexandre VI pôde promulgar uma bula em que elencava uma série de príncipes da região da Romanha e declarava que, por estes não pagarem os impostos devidos, por terem alcançado o poder mediante usurpação de terras, propriedades e direitos que pertenciam por lei à Igreja, e por serem de fato tiranos que haviam abusado de seus poderes e explorado o povo a eles submisso, a partir daquele momento deveriam renunciar ou ser depostos pela força.

Embora nenhum dos príncipes elencados tenha obedecido à Bula, a avaliação de Alexandre VI parece correta. Em dois livros pelo menos Maquiavel, que na época era assessor político do governo de Florença, se refere à Romanha com uma avaliação semelhante.

Em "O Príncipe" Maquiavel diz que a Romanha

"estava sujeita, no geral,
a fracos senhores,
que mais espoliavam do que governavam
os seus súditos,
dando-lhes apenas motivo de desunião,
tanto que aquela província estava
cheia de latrocínios,
tumultos e toda a sorte de violências".

Nos "Discursos" o mesmo Maquiavel diz que a Romanha era

"berço dos piores crimes,
o menor dos quais
dava ocasião aos governantes
para rapinas e assassinatos,
pois os príncipes da Romanha,
embora fossem pobres,
viviam como se fossem ricos,
e para tanto eram obrigados
a um sem número de crueldades.
Entre outras mais vergonhosas
para extorquir dinheiro,
faziam leis proibindo certos atos
dos quais eles eram os primeiros
a darem ocasiões para que os súditos
os praticassem;
quando muitos já estavam envolvidos
nas violações daquelas leis,
passavam a puní-los,
não pelo zelo das leis que haviam feito,
mas para poderem assim executarem
as penas previstas para tais crimes".

163.

Conforme já se esperava, nenhum dos príncipes da Romanha obedeceu às ordens dadas por Alexandre VI para que renunciassem aos seus cargos.

Foi então que César Borgia, no comando das forças pontifícias, com o apoio do Papa e do rei de França, entrou em cena. Em uma série de três campanhas militares, desde o fim de 1499 até o ano de 1503, desalojou a maior parte dos príncipes da Romanha.

César Borgia foi brilhantíssimo estrategista. Pagava regiamente os seus soldados, os melhores que podia encontrar onde quer que fosse. Contratou nada menos do que Leonardo da Vinci por um período de dois anos para ser engenheiro militar chefe de suas tropas. Respeitava escrupulosamente a vida de seus combatentes. Todas as suas vitórias, uma após a outra, foram fulminantes e meticulosamente organizadas para levarem a uma vitória certa com um número de baixas da parte de seus soldados mínimo ou mesmo nulo.

César possuía também uma verdadeira obsessão pelo segredo. Não revelava a ninguém seus planos militares, nem mesmo aos seus auxiliares mais diretos, que freqüentemente só ficavam sabendo no último instante o que deveria ser feito. Em algumas de suas vitórias suas tropas, previamente divididas, partiam de locais distantes e seguiam por caminhos diferentes ignorando o destino final que somente César conhecia. Os percursos e os tempos, porém, haviam sido organizados previamente por César de modo que todos acabassem encontrando-se simultaneamente junto ao inimigo. Até alguns instantes antes da batalha, ademais, o próprio inimigo tinha a certeza de que as tropas de César estavam em algum lugar distante planejando atacar algum outro alvo. O caráter fulminante e a superioridade do ataque eram tão grandes que em alguns destes casos a única chance que o inimigo tinha era a de uma fuga desesperada sem possibilidade alguma de sequer tentar a organização de uma defesa.

Os príncipes desalojados desta ou de outra maneira eram substituídos por governantes diretamente subordinados às ordens de César Borgia, que de fato eram muito mais justos do que os anteriores. Prova disto era que as populações destas localidades viam a César como a um libertador bem vindo e favoreciam suas vitórias com evidentes manifestações de apoio. Isto, por outro lado, não significava um caráter bondoso por parte de César. Ao contrário, esta atitude mais parecia fazer parte de seu gênio como estrategista, pois ele sabia que necessitava do apoio popular para fortalecer e prosseguir suas conquistas. À parte de coisas horríveis que se espalharam sobre sua pessoa no resto da Itália e que ele, em sua obsessão pelo segredo, tornou em sua maior parte uma tarefa impossível para os historiadores distinguirem o verdadeiro do falso, sabe-se que ele era particularmente implacável para com os traidores.

164.

Mas, seja qual for a verdade a este respeito, parece claro que havia alguma coisa excusa nas conquistas de César Borgia.

Várias vezes ele declarou que a sua missão não era a de se tornar um tirano, mas a de acabar com eles, e que ele nada mais estava fazendo do que restituir ao governo efetivo da Igreja terras que de fato lhe pertenciam.

Porém, conforme narra a historiadora Sarah Bradford,

"em primeiro de maio de 1501
Alexandre VI promulgou uma bula
confirmando César
vigário hereditário da Igreja
não somente da região de Pesaro,
mas também da de Fano,
que até aquele momento haviam estado
sob o controle direto da Igreja.

Uma quinzena mais tarde
César Borgia foi investido com o título
de Duque da Romanha,
e o Papa enviou-lhe a Rosa Dourada
pelo segundo ano consecutivo.

De fato, o Papa havia transferido
para o seu filho a senhoria perpétua
de uma das mais importantes províncias
dos Estados Pontifícios".

Em seguida, a um certo momento de suas campanhas, César Borgia dispensou todos os saldados franceses pagos por Luiz XII a seu serviço. Já era capaz de combater com as suas próprias tropas.

Por volta de 1503 começaram a surgir evidências de que César Borgia estava prestes a dispensar inclusive o apoio político do rei de França, apoio devido ao qual até então o Ducado de Milão e a República de Veneza, preocupadíssimos com a marcha dos acontecimentos, haviam no entanto se conservado em uma aparente neutralidade.

Mas, mais ainda do que isso, César Borgia deu sinais de estar preparando-se para conquistar territórios como Siena e Florença, que estavam totalmente fora dos Estados Pontifícios, e o rei de França enviou uma mensagem ao Papa Alexandre VI no sentido de que ele contivesse os projetos militares de seu filho.

Qual era a meta que tinha em mente este homem, afinal? Ninguém jamais o soube. Não é improvável, conforme Maquiavel pensava, que ele pretendesse unificar a inteira Itália sob o seu domínio. Ao contrário de Alexandre VI que, não obstante os seus defeitos, era um homem de sentimentos religiosos, César Borgia era totalmente indiferente à religião. Se tivesse conseguido realizar seus planos, o que pretenderia fazer ele com o Papado?

Trata-se de uma questão para a qual só se podem fazer conjecturas.

Jacó Burckhardt, que tem uma visão do pontificado de Alexandre VI bem mais negativa do que na realidade o foi, faz no entanto algumas considerações a este respeito que não nos parecem totalmente inverossímeis:

"Não pode haver dúvidas
de que César Borgia tinha a intenção
de tomar posse a qualquer custo
dos Estados Pontifícios,
e que se alguém pudesse ter secularizado
os Estados Pontifícios
este alguém era César Borgia,
e que ele se veria forçado a fazê-lo
se quisesse alcançar seus objetivos.
A menos que estejamos muito enganados,
esta foi a verdadeira razão
da simpatia com que Maquiavel tratou
este grande criminoso,
pois somente de César ou de mais ninguém
poderia-se esperar o aniquilamento do Papado,
o principal obstáculo que impedia
a unificação italiana".

Entretanto, o mesmo Burckhardt mais adiante acrescenta que

"ao seguir tais hipóteses,
a imaginação se perde a si mesma
em um abismo".

165.

Foi então que aconteceu, conforme César Borgia confidenciou posteriormente a seu amigo Maquiavel, a única coisa que ele jamais havia pensado, ainda que uma única vez, que poderia vir a acontecer.

Toda a obra político militar de César dependia do apoio que seu pai, como Papa, lhe dava. O que ele faria quando o Papa morresse e outro fosse eleito? César Borgia já havia pensado meticulosamente sobre este assunto e para tudo, conforme suas próprias palavras, já havia providenciado remédio, pronto para qualquer eventualidade.

No dia 12 de agosto de 1503 Alexandre VI foi assaltado por um acesso de vômitos e febre alta. Naquele mesmo dia, em seus aposentos, César Borgia foi acometido pelos mesmos sintomas. Pai e filho, cada qual em seu lugar, ficaram ao mesmo tempo entre a vida e a morte. Alguns dias depois o Papa morria, enquanto César continuava desesperadamente por vários outros lutando contra a morte.

A versão popular que se espalhou foi a de que, tendo Alexandre e César ido visitar o Cardeal Adriano, pai e filho beberam por engano o vinho envenenado que haviam destinado para o cardeal. Ficou, porém, registrada uma descrição bastante detalhada da evolução dos sintomas deste suposto envenenamento em Alexandre VI até o momento de sua morte, e os médicos do século XX que a examinaram são praticamente unânimes em afirmar que tais sintomas não podem corresponder aos efeitos dos venenos conhecidos durante a Renascença.

Não se sabe, portanto, o que aconteceu ao certo, exceto que pai e filho contraíram cada qual uma mesma doença mortal simultaneamente e, enquanto o pai falecia, o filho continuava durante dias debatendo-se entre a vida e a morte.

"Disse-me depois César Borgia",

reporta seu amigo Maquiavel,

"que ele havia pensado em tudo
o que poderia acontecer
quando seu pai viesse a falecer,
e para tudo havia encontrado uma solução.
Só não havia previsto que,
justamente nesta ocasião,
ele próprio também estivesse
entre a vida e a morte".

De fato, a única coisa que César pôde fazer, entre um delírio e outro, foi ordenar ao seu comandante de confiança que invadisse o Vaticano e retirasse todo o dinheiro que nele houvesse. Seja quem viesse a ser eleito, o próximo Pontífice estaria durante algum tempo sem dinheiro disponível e ele, César Borgia, se sobrevivesse, teria uma temporária vantagem financeira e o comando das tropas pontifícias.

Fora esta ordem, executada com precisão tal como havia sido disposto por César, tudo o resto veio a ocorrer contra os seus planos.

Para o trono pontifício foi eleito o Papa Pio III, o qual, todavia, reinou apenas alguns poucos dias antes de falecer.

Logo em seguida César, ainda severamente doente, foi procurado pelo Cardeal Juliano della Rovere, sobrinho do falecido Sixto IV, em busca de seu apoio para a eleição seguinte. Juliano prometeu a César Borgia que iria confirmá-lo nos cargos de Comandante das Forças Pontifícias e Vigário Papal nos Territórios da Romanha. Prometeu também que lhe daria o apoio pontifício para a conquista do restante dos territórios que restavam e que casaria a filha de César com o seu próprio sobrinho.

O Cardeal della Rovere nunca tinha visto César com bons olhos, e isto era algo que todo o mundo sabia, inclusive o próprio César. Mas o cardeal também tinha a fama de ser um homem irrepreensível em sua palavra, fama nunca desmentida pelos fatos. Ademais, nas condições em que César estava, tudo indicava que Juliano seria eleito Papa de qualquer modo. César aceitou o acordo. Mesmo que quisesse, não poderia naquelas circunstâncias proceder de outro modo. Só lhe restava confiar que as promessas do futuro Pontífice fossem verdadeiras.

166.

O Cardeal della Rovere foi, conforme se esperava, eleito Papa, tomando para si o nome de Júlio II. Para o rumo que os fatos estavam tomando, foi uma escolha providencial. O novo Papa possuía um temperamento tão forte que nem sequer César Borgia com as suas tropas poderia intimidá-lo. Sarah Bradford, reunindo vários testemunhos da época, descreveu Júlio II como

"um homem que tinha a alma
de um Imperador,
cuja aparência era tão imperial
como imperioso era o seu temperamento.

Era um homem de temperamento vulcânico,
que nunca brincava
e que parecia continuamente absorvido
em profundos pensamentos.
Quando ele agia sempre o fazia
com uma grande energia.
Era dado a freqüentes explosões de cólera
e não tinha paciência de ouvir calmamente
qualquer coisa que lhe dissessem
nem de aceitar os homens
tais como ele os encontrava.
Ninguém conseguia ter qualquer tipo
de influência sobre ele,
nem se dava ao trabalho de consultar
quem quer que fosse.
Tudo o que ele pensava à noite
tinha que ser executado imediatamente
na manhã seguinte
e ele insistia em fazer tudo pessoalmente.
É praticamente impossível descrever a força,
a violência e a dificuldade
que eram necessárias
para lidar com este homem.
Tanto no corpo como na alma
tinha a estatura de um gigante".

167.

Maquiavel também escreveu de Júlio II, logo após o início de seu pontificado, que

"Ele não ama César Borgia,
mas o apóia por duas razões.

Primeiro, para manter a sua palavra,
da qual todos são unânimes em dizer
ser ele observante.

Segundo, porque todas as forças militares
da Santa Sé estão nas mãos de César,
e a República de Veneza ameaça invadir
os territórios pontifícios".

168.

Foi então, porém, que se deu um novo e inesperado fato.

Veneza, tal como suspeitava Maquiavel, invadiu efetivamente os territórios pontifícios, tomando algumas cidades da Romanha. O relatório apresentado diante do Papa Júlio II sobre o ocorrido chocou-o profundamente e ele, bem de acordo com o seu temperamento, tomou uma súbita decisão: César deveria passar as fortalezas chave da Romanha para o comando imediato do Papa que assumiria pessoalmente o controle das operações militares.

Mas César estava naquele dia no porto de Óstia. Dois cardeais foram enviados a toda pressa à cidade de Óstia com as ordens pontifícias. César, que estava ali esperando um vento favorável para que um navio pudesse conduzí-lo à Toscana, não avaliou corretamente o alcance da situação. Ingenuamente, recusou obedecer às ordens de Júlio II.

No dia seguinte, quando Júlio II soube da recusa de César, foi simplesmente tomado por um acesso de fúria. Diante daquela recusa considerava-se desobrigado de manter a sua palavra, Mandou aprisionar César em um castelo do qual ele não sairia enquanto não assinasse um documento renunciando aos seus cargos e ao poder político sobre a Romanha. Depois de um bom tempo de prisão César decidiu-se a assinar, para fugir em seguida para o Reino de Nápoles, onde foi preso e deportado para a Espanha, vindo a morrer ali alguns meses mais tarde em uma batalha na fronteira com a França.

169.

Pode-se perguntar por que, se César já estava preso, Júlio II fazia tanta questão que ele assinasse um documento de renúncia?

Não poderia o Pontífice simplesmente declarar a destituição de César e tomar posse da Romanha? Um documento de próprio punho atestando a renúncia de César, tal como o Papa insistia em obter, não seria nestas circunstâncias uma mera formalidade?

A resposta é que não seria uma mera formalidade. A Romanha estava repleta de tropas leais a César Borgia. Se Júlio II tentasse tomar posse da Romanha só porque César estava preso, justamente por este motivo o que provavelmente teria acontecido seria a eclosão de uma guerra civil. Mesmo a decisão de prender um homem como César Borgia naquelas circunstâncias já era uma atitude impensável para qualquer outro que não fosse um Júlio II.

170.

Os escândalos sexuais de Alexandre VI, mesmo na hipótese de terem se limitado à sua vida anterior de Cardeal, são um episódio triste na história da Igreja. Não estão em contradição, porém, com as promessas que Cristo deixou à mesma. Cristo não prometeu que os Papa em suas vidas particulares não cairiam em pecado, mas que junto a eles a sua obra na Igreja não poderia ser destruída.

Por outro lado, deve-se acrescentar também que, se bem que o fim da Renascença tivesse sido um período conturbado tanto para a Igreja como para a sociedade em geral, mesmo assim, em toda a história, em que houve até hoje quase trezentos Papas, o caso de Alexandre VI foi único.

171.

Júlio II, diz Philip Hughes,

"revelou-se rapidamente um dos mais fortes
governantes da Europa.
Este Papa era um diplomata de primeira classe
e um bom general no campo,
um organizador capaz,
forte, valente, implacável e inflexível".

Retomou sob o seu comando direto a obra militar que César Borgia havia iniciado.

"Com ele os barões romanos",

continua Hughes,

"foram finalmente vencidos
e os Estados Pontifícios,
pela primeira vez,
ficaram realmente organizados
e sob a direção efetiva do Papa".

Ao contrário de seus predecessores, porém, Júlio II não delegou, nesta tarefa, nenhum cargo a nenhum parente. Rejeitou completamente o nepotismo e foi visto defender os Estados Pontifícios sem nenhuma possibilidade de engrandecer a sua própria família. Suas conquistas foram duradouras e os Estados Pontifícios permaneceram fiéis à Igreja até à revolução que culminou com a Unificação Italiana em 1870, quando a Santa Sé perdeu definitivamente todo o poder temporal.

Foi Júlio II quem confiou a Miguelângelo e a Bramante a construção da Basílica de São Pedro, idealizada desde os tempos de Nicolau V, mas cujas obras ainda não haviam podido se iniciar. Foi também na época de Júlio II que Miguelângelo pintou no teto da Capela Sixtina o Juízo Final.

Júlio II foi quem convocou, ademais, o Quinto Concílio de Latrão para a Reforma da Igreja o qual, conforme já vimos, não alcançaria ainda os resultados que se almejava.

172.

Júlio II foi sucedido no trono pontifício pelo Papa Leão X, aquele menino de treze anos da família dos Medicis, governantes de Florença, que Inocêncio VIII havia feito cardeal.

Após receber o cardinalato sua família proporcionou-lhe uma educação digna de um príncipe e do cargo de cardeal que ele deveria assumir. Tornou-se um homem instruído, amável e muito alegre. Agora, quando com quase quarenta anos era eleito Papa, uma das primeiras medidas que tomou foi a promulgação de um edito contendo disposições para profundas reformas na Igreja.

Novamente, porém, apenas a letra da lei não viria a ser suficiente. Agora que os Estados Pontifícios, graças a Júlio II, gozavam de uma boa e estável ordem política, seria necessária ainda a mesma têmpera de Júlio II para fazer valer as disposições do edito, e a amabilidade de Leão X revelou-se insuficiente para tanto.

Assistiu-se mais uma vez, deste modo, a outro projeto de reforma da Igreja que não conduziria aos resultados que eram anunciados.

173.

Foi durante o pontificado de Leão X que se iniciou, na Alemanha, por intermédio do monge agostiniano Martinho Lutero, a Reforma Protestante. A Reforma Protestante, por sua vez, alguns pontificados mais adiante acabou provocando a convocação do Concílio de Trento que foi aquele que apresentou finalmente uma resposta eficiente ao problema da reforma da Igreja, problema cuja urgência tinha-se agravado dramaticamente durante o final da Renascença.

O Concílio de Trento durou dezoito anos e atravessou quatro pontificados, tratando da reforma da Igreja em geral. A reforma da Cúria Romana, porém, foi obra pessoal do Papa Paulo IV que, julgando que o Concílio de Trento novamente não produziria os resultados esperados, interrompeu-o durante todo o seu pontificado e passou a reformar a Igreja por sua própria iniciativa.

Embora Paulo IV tivesse se enganado quanto aos efeitos futuros do Concílio de Trento, as conseqüências práticas imediatas que resultaram deste seu julgamento foram altamente benéficas para a Igreja.

A este respeito, porém, passamos inteiramente a palavra ao historiador Philip Hughes.

174.

O conclave realizado em 1555, narra Hughes,

"trouxe para o trono papal um velhinho de 79 anos
que havia sido fundador da ordem religiosa dos Teatinos,
João Pedro Carafa, o Papa Paulo IV.

O seu breve pontificado de quatro anos
estendeu-se à feição de uma grande barreira.

Foi por seu intermédio que afinal conseguiu-se
expulsar do Papado o paganismo da Renascença,
e que se rompeu a última ligação do secularismo
com aquele alto cargo.

Seu reinado assinalou o fim daquela mistura
com as coisas mundanas que tanto havia empanado
o brilho de outros Papas.

Se a Roma papal traz hoje,
e o tem trazido durante séculos,
algo da aparência de um mosteiro,
se os Papas modernos,
quaisquer que sejam as suas faltas
como indivíduos ou como Papas,
têm vivido, primeiramente, como sacerdotes,
em um ambiente de oração e de decoro religioso,
tal restauração é devida em grande parte a Paulo IV.

Ele rompeu, para sempre,
com a simples violência de sua ira,
toda aquela tradição em que as coisas mundanas
no alto clero eram consideradas como que no rol
de um sistema muito natural.
A sua violência estampou tão profundamente
um padrão de vida austero no material das coisas
que nem mesmo os seus oponentes,
inclinados para uma conduta mundana,
ousaram-no destruir quando surgiu a inevitável reação.

Sua carreira havia começado nos tempos de Alexandre VI.
Foi durante muito tempo núncio apostólico na Inglaterra
e depois, por um período maior, na Espanha.
Posteriormente foi também arcebispo de Nápoles,
cargo ao qual renunciou para fundar,
algum tempo depois, juntamente com São Caetano,
uma ordem religiosa.

Como simples religioso trabalhou muitos anos
nas partes pobres de Roma e Veneza,
pregando, catequizando e ministrando os Sacramentos.

Foi o Papa Paulo III,
aquele que por primeiro convocou o Concílio de Trento,
quem decidiu nomeá-lo cardeal.

Jamais houve um homem de tão férrea vontade,
firmeza e, é preciso acrescentar,
de espírito intolerante.
Para ele, ter tato significava traição.

Este vigoroso reformador
não reuniu o Concílio de Trento
que dois Pontífices antes dele já haviam conduzido.
Ele julgava que eram inúteis
os métodos utilizados pelo Concílio.
Tinha outros métodos.
Quando Cardeal não havia vacilado
em reprovar aos próprios Papas
o que havia de mundano na vida que levavam.
Com ele como Pontífice
começaram a aparecer não leis novas,

- já havia bastante leis, havia declarado ele -,

mas ordens.

Cessou com as dispensas pela falta da idade necessária
para os que haviam sido eleitos bispos
e tornou nulas as vendas das propriedades da Igreja,
sobre o que fêz severa preleção aos Cardeais
logo nas primeiras semanas de seu pontificado.

Começou a haver a maior severidade
na escolha dos bispos a serem nomeados.
Num só dia o Papa rejeitou todos
os que haviam sido propostos,
num total de cinqüenta e oito.

Paulo IV atendeu à antiga queixa contra os religiosos
que deixavam sua ordem
para buscarem outro emprego clerical.
Expediu um drástico decreto
pelo qual os intimava a voltar para os seus mosteiros
sob pena de suspensão imediata.
A própria Roma foi cenário da incursão destes elementos,
mas estes infelizes foram presos às dezenas.
A sua categoria ou ofício não os salvou;
alguns foram para a prisão,
outros foram para as galeras.

Os bispos receberam ordem de renunciar a todas as
rendas que não se relacionassem diretamente
com o governo de suas dioceses,
e foram postos em execução novos decretos
que os obrigavam a viver nelas.
Descobriu-se que viviam em Roma nada menos do que
cento e treze bispos diocesanos,
os quais não deram atenção à primeira ordem
de seguirem para as suas jurisdições.
Foi dada uma segunda,
sob pena de deposição e castigo,
para todo e qualquer monge errante,
caso não obedecesse à ordem em menos de um mês.
Dali a seis semanas todos os bispos haviam partido.

Se os bispos se portavam mal,
eram tratados com mais severidade.
Um deles, o bispo de Polignano,
foi condenado à prisão perpétua com o castigo
adicional
de passar três meses por ano a pão e água.

Reviu-se todo o lado financeiro das nomeações.
O fato de ter imediatamente perdido com isto
dois terços das rendas da Santa Sé
nada significou para ele
e não deteve por isto a sua ação.
Recusou peremptoriamente dar atenção aos desejos
dos príncipes católicos em todas as nomeações que fazia.

Comunicou a todos os cardeais, mesmo àqueles
que tinham sido os responsáveis pela sua eleição,
que não havia nenhum deles em quem pudesse confiar.
Ademais, exigiu de todos uma lista contendo
uma declaração dos rendimentos que recebiam,
de posse da qual cortou-lhes a maior parte dos mesmos.

O povo romano,
com o tácito consentimento das autoridades,
insultava a obra daquele ancião em seu leito de morte;
mas ele estabeleceu tão firmemente
as leis de um novo modo de vida
que multidão alguma ousou mais derrubá-la".

175.

Paulo IV foi chamado em vida de Papa louco. Roma celebrou sua morte com quatro dias de festa, durante a qual as multidões incendiaram edifícios da Igreja, queimaram documentos, libertaram presos e derrubaram sua estátua que foi arrastada pelas ruas da cidade e jogada no rio Tibre. Mas este homem poderia ter replicado, diz Will Durant,

"que somente um homem
com esta inflexível austeridade e coragem
poderia ter reformado os abusos
que haviam se introduzido na Igreja
durante o Renascimento e que,
neste empreendimento,
ele obteve finalmente sucesso
onde seus predecessores haviam falhado".

Seu sucessor Pio IV encontrou um novo ambiente dentro da Igreja. Reconvocando o Concílio de Trento interrompido, conduziu-o, desta vez, a um feliz termo.

176.

A narrativa de fatos como estes tem parecido chocante a não poucas pessoas.

Como é possível, perguntam elas, que uma instituição como a Igreja tenha se envolvido tão profundamente com o espírito da Renascença a ponto de se verificarem tais abusos? Onde está a presença de Cristo que prometeu nela permanecer até o fim dos tempos? Como é evidente o quanto ela afundou quando se ouve a narrativa de como Paulo IV teve que agir para corrigir o estado em que se encontrava!

Tais fatos são uma verdade histórica. A Igreja, realmente, durante aproximadamente duzentos anos, conforme vimos, sofreu as primeiras influências do Renascimento assim como a sociedade dos homens em geral. Tentou em seguida tomar o controle do movimento, para sucumbir logo em seguida ante o peso do mesmo. Mas, duzentos anos mais tarde, ela conseguiu finalmente romper em definitivo com os laços que a prendiam. Ademais, pode- se observar que, durante todo o processo, muitas das pessoas mais envolvidas no mesmo conservavam nitidamente como ponto de referência a visão de como deveria ser a Igreja tal como Cristo a queria. Não apenas Paulo IV o sabia. Sabiam-no Leão X, Sixto IV e até mesmo Alexandre VI, e muitíssimos outros o sabiam, e o sabiam claramente. Dentro da Igreja tombada, em seu interior, permanecia viva a Igreja pura. No fim, após dois séculos, foi esta que acabou prevalecendo. Na verdade, ela esteve ali o tempo todo.

O que é verdadeiramente chocante é que este processo que ocorreu na Igreja ocorreu também com o restante da sociedade humana, mas no caso da sociedade humana em geral nada se fêz para tentar controlá-lo. Ao contrário, o que houve foi uma capitulação imediata, acompanhada de uma destruição progressiva das referências necessárias para uma possível recuperação. Ao contrário da Igreja, a sociedade em geral sucumbiu sem luta.

Enquanto a Igreja finalmente triunfava, o resto da sociedade dava prosseguimento ao processo iniciado pela Renascença desenvolvendo, ao longo dos cinco séculos seguintes, tudo o que o Renascimento continha em germens, tudo isto sem protestos e freqüentemente sob aplausos, até que tudo passou a ser considerado normal, tão normal que parece o que há de mais inverossímil dizer-se que a sociedade em geral está mergulhada em um processo semelhante àquele que envolveu a Igreja entre 1350 e 1550, só que de proporções gigantescamente maiores e acompanhada, ademais, de uma perda geral de referências, de tal modo que nada de sério parece estar acontecendo.

Nas próximas partes desta Introdução Histórica abordaremos muito do que diz respeito a este problema e veremos, mais adiante, como foi por causa dele que foi convocado o Concílio Vaticano II.

Na verdade, trata-se do mais complexo de todos os problemas até hoje enfrentados por um Concílio Ecumênico.

177.

Mas, dizíamos, com Paulo IV e com o Concílio de Trento conseguiu-se expulsar do Papado o paganismo renascentista.

Muita coisa, porém, restou desta época até os dias de hoje.

Ficou a Biblioteca Vaticana, ficaram as obras de arte então produzidas. Ficou também a imponente arquitetura renascentista, da qual o mais famoso exemplo é a própria Basílica de São Pedro no Vaticano.

A idéia inicial, devida a Nicolau V, era com tudo isto dar proteção física à pessoa do Soberano Pontífice e um aspecto de respeitabilidade da Santa Sé como centro da Igreja Universal.

De fato, em grande parte este objetivo foi alcançado mas, ao mesmo tempo, aquelas obras de arte e aquele conjunto arquitetônico produzido entre 1450 e 1550, que existem até hoje, acabaram produzindo, no homem do século XX, uma falsa impressão de algo que na realidade não existe.

As pessoas que visitam o Vaticano e admiram a imponência daquelas construções renascentistas são levadas a crer que, por trás daquela magnificência, correm rios inimagináveis de ouro e de riquezas.

Na verdade tais riquezas não existem ou, melhor dizendo, nada mais são do que o estilo majestoso da arquitetura e da arte produzida em Roma naqueles cem anos que há muito já se foram. O dinheiro que corre por trás daquelas construções é, na realidade, algo de irrisório quando comparado com a imponência dos edifícios.

Em 1988, um dado que temos em mãos, o orçamento do Vaticano foi de 50 milhões de dólares por um ano. É verdade que este foi um dos orçamentos mais baixos dos últimos anos, mas os demais não foram muito maiores do que este.

Quanto significa esta quantia?

Para se ter uma idéia, 50 milhões de dólares naquele ano era o dobro do que o campeão de pugilismo Mike Tyson havia ganho naquele mesmo ano. Era seis vezes o salário que o campeão de automobilismo Ayrton Senna havia ganho em 1988. Era a metade do que a McLaren havia gasto em 1988 com equipe e materiais para manter o automóvel de Ayrton Senna correndo durante o ano de 1988. Cinqüenta milhões de dólares foi o custo de uma hora de permanência no deserto das tropas norte americanas estacionadas na Arábia Saudita em fins de 1990, enquanto aguardavam o momento para invadir o Kuwait que havia sido recém anexado pelo Iraque. E, um dado mais palpável para os brasileiros, assombrados pelo volume da dívida externa do Brasil, para pagar a dívida externa brasileira à razão de prestações de cinqüenta milhões de dólares ao ano, sem considerar os juros, seriam necessários em 1988 um total de dez mil anos, mais de vinte vezes a história do Brasil e aproximadamente o dobro da história conhecida da humanidade. A não ser que o pagamento destas prestações tivesse se iniciado num período bastante remoto da pré história, ainda não teríamos terminado de pagar esta dívida.

E no entanto, com estes cinqüenta milhões de dólares a Santa Sé paga os custos de toda a sua administração de um Estado moderno, custos que só podem ser mantidos porque muitos dos seus funcionários mais graduados são eclesiásticos que pelos seus serviços ou não cobram honorários, ou os cobram apenas simbolicamente. Com estes cinqüenta milhões de dólares a Santa Sé sustenta, adicionalmente, um sem número de Prelazias, isto é, Dioceses situadas em lugares como a Floresta Amazônica, o Interior da África, muitas regiões da Ásia, localidades extremamente pobres em que os bispos e sacerdotes não poderiam sustentar-se apenas com as ofertas dos fiéis.

A Santa Sé é um dos Estados mais pobres e eficientes do mundo.

São Paulo, 7 de novembro de 1991


  • Prossegue para a Quarta Parte