III/C



38.

A decadência do ensino foi, portanto, o primeiro dos fatores que preparou o advento da Renascença.

Um segundo fator, intimamente relacionado com o anterior, foi o surgimento da Filosofia Nominalista, desenvolvida principalmente pelo inglês Guilherme de Ockham, na primeira metade dos anos 1300.

Não será possível, nesta introdução, desenvolver integralmente um tema como o da natureza do nominalismo. Teremos que nos limitar a uma abordagem que priorize alguns aspectos mais relevantes.

39.

O nominalismo pode ser visto, em uma primeira abordagem, como uma concepção acerca da atividade da inteligência humana.

Neste sentido, ele não é propriamente uma invenção de Guilherme de Ockham, mas um modo de conceber a natureza da atividade intelectual que surge sempre que ocorre uma decadência desta própria atividade intelectual entre os homens.

Assim é que, embora tenha-se chamado de Nominalismo a esta concepção quando ela surgiu no início dos anos 1300 DC, já na antiga Grécia, examinando os textos deixados pelos homens da época, pode-se depreender que os sofistas eram nominalistas, enquanto que os verdadeiros filósofos não o eram.

Pouco antes de Hugo de São Vitor, quando a sociedade começava a emergir do caos do feudalismo e se iniciava um ressurgimento geral dos estudos, o cônego Roscelino defendeu concepções nominalistas. Santo Anselmo argumentou contra a teoria de Roscelino, mas logo em seguida as idéias de Roscelino foram abandonadas por todos sem necessidade de se recorrer à argumentação desenvolvida por Santo Anselmo.

Quando, alguns séculos mais tarde, o ensino começou novamente a decair, surgiu outra vez a teoria nominalista encontrando em Guilherme de Ockham, professor na Universidade de Oxford, na Inglaterra, seu principal expositor.

As idéias de Ockham a princípio tiveram uma péssima acolhida. Examinadas pelos sábios da Universidade de Paris, foram condenadas em 1339 e novamente em 1340. Mas, apesar deste julgamento desfavorável, a nova antiga doutrina foi conquistando adeptos. Quase um século mais tarde, toda a Universidade de Paris tinha-se tornado nominalista. Dali o Nominalismo passou aos demais centros universitários da Europa.

Próximo do início dos anos 1500, com o advento da imprensa, as obras de Ockham eram impressas com entusiásticos elogios e tomaram conta de quase todas as universidades da Europa e, algo que não pode passar aqui em silêncio pelo interesse que este dado terá mais adiante, de um modo especial na Alemanha, onde naquela época Martinho Lutero estudava Teologia. A formação que Lutero recebeu era toda de influência nominalista e nas doutrinas religiosas que ele desenvolveu mais tarde há muito mais do que apenas germens do nominalismo.

40.

Mas em que consiste o Nominalismo?

Conforme dissemos, o Nominalismo pode ser considerado, sob um primeiro exame, como uma concepção sobre a atividade da inteligência humana.

A inteligência humana trabalha basicamente através do uso de conceitos, designados por termos que se aplicam a muitos entes individualmente considerados.

Tais são, por exemplo o conceito designado pela palavra homem, que se aplica tanto a Antônio, como a João e a Pedro. Todos eles são homens. Tal é, também, o conceito designado pela palavra animal, que se aplica tanto a este pássaro como a esta cobra. Tal é ainda o conceito designado pela palavra triângulo, que se aplica tanto a este triângulo retângulo como àquele triângulo eqüilátero.

Tais conceitos, por se aplicarem a muitos indivíduos, também são chamados de Universais, e é algo evidente que o trabalho da inteligência humana se baseia na utilização destes conceitos ou Universais.

Mas o que são estes conceitos? São entidades que existem na própria natureza, externamente ao homem, ou existem apenas na mente humana? E se existem na mente humana, o que são eles exatamente?

Pode-se perceber também o quanto importante e central é esta questão, pois ela pertence aos próprios fundamentos do pensamento humano, e tudo o que pertence ao fundamento de alguma coisa é algo que rege todo o restante que se fundamenta sobre eles. Um êrro nestes fundamentos, conduzido com rigor às suas conseqüências, acarreta um êrro em tudo o demais.

41.

No início dos anos 1300 DC Guilherme de Ockham respondeu às duas perguntas acima formuladas sobre os conceitos com que trabalha a natureza humana.

Conforme vimos, estas perguntas eram:

  • São entidades que existem na própria natureza, externamente ao homem, ou existem apenas na mente do homem?

  • E, se existem na mente do homem, que são eles exatamente?

42.

À primeira destas perguntas Guilherme de Ockham respondeu:

"É evidente que nenhum universal
é uma substância extramental".

Summa Totius Logicae I, 15

Para Ockham, portanto, tais conceitos não existem na natureza, mas apenas na mente humana.

43.

À segunda pergunta Guilherme de Ockham respondeu que os conceitos universais, considerados em si mesmos, tal como existem apenas na natureza humana, não possuem natureza alguma universal.

São entidades tão singulares como qualquer outra entidade individual das que vemos com nossos olhos na natureza. Elas são universais apenas pela significação que se lhes atribui.

Em suas próprias palavras, estes conceitos são universais apenas

"por serem sinais atribuíveis
a muitas coisas",

Summa Totius Logicae I, 14

mas na verdade, considerados em si mesmo,

"são singulares
na medida em que são uma só coisa,
e não muitas".

Idem

"Todo universal é,
na verdade,
uma coisa singular",

Idem

diz Guilherme de Ockham, e por isso não existe um universal em si mesmo,

"mas apenas pela significação,
na medida em que é
um sinal de muitas coisas".

Idem

"É que,
vendo alguma coisa fora da alma,
o intelecto fabrica mentalmente
uma coisa semelhante,
de modo que,
se tivesse o poder de produzí-la,
assim como tem a força para imaginá-la,
faria esta coisa exteriormente,
distinta numericamente da anterior.

Assim como um arquiteto,
vendo exteriormente uma casa ou edifício,
cria em sua mente uma casa semelhante
e depois a produz fora,
idêntica,
só numericamente distinta da primeira,
assim também no nosso caso
aquela representação da mente
pela visão de alguma coisa exterior
age como um modelo que representa
muitas coisas semelhantes.

É isto o que pode se denominar universal,
é um modelo que se refere indiferentemente
a todas as coisas singulares
que existem fora;
por causa dessa semelhança
pode representar na inteligência
coisas que têm um ser parecido
fora da alma".

In I Sententiarum Q.8 E

"Assim como por convenção
a palavra Sócrates representa
a coisa que significa,
de modo que,
ao ouvir a frase

`Sócrates corre'

não se concebe que seja
a palavra Sócrates que corre,
mas sim que o indivíduo
significado pela palavra
é que corre,
assim como a palavra convencional
representa a própria coisa,
assim também
(a inteligência tem os seus sinais que)
por sua própria natureza,
sem convenção alguma,
significa a coisa a que se refere.

Alguns destes (sinais)
não pertencem mais a um indivíduo
do que a outro,
assim como a palavra `homem'
não significa mais Sócrates
do que Platão".

Expositio super Librum
Perihermeneias

44.

Destas citações pode-se deduzir que, segundo Ockham, não existem entidades que tenham por natureza características universais, nem fora da mente, isto é, na realidade objetiva do mundo, nem na própria mente humana quando pensa.

O que existem são apenas entidades singulares que, na mente do homem, agem como sinais que são atribuídos ou referidos a objetos externos diversos, assim como os nomes que, considerados em si próprios, são sinais individuais que apenas por convenção humana se referem às entidades externas que elas significam.

Os conceitos, portanto, com que a mente humana trabalha, são, no fundo, apenas nomes, ou representações equivalentes. Daí o nome de Nominalismo que recebeu esta teoria.

45.

Mas esta teoria nominalista é, na verdade, uma concepção muito pobre da natureza da inteligência humana. É uma concepção típica de uma época de decadência da vida intelectual.

Ela surgiu no início dos anos 1300 e se propagou nos anos seguintes até se tornar uma concepção quase como que evidente para a maioria dos intelectuais da Europa. Desta época há inúmeros testemunhos históricos da decadência gradual do ensino e dos estudos, paralelamente à difusão crescente do nominalismo. Mas, se não houvesse tais testemunhos, a simples propagação de uma teoria como esta já é um atestado suficiente de que está havendo uma degradação geral do ensino, não importa como ela tenha se realizado historicamente.

Na verdade, os antigos filósofos gregos e os sábios da época compreendida entre Hugo de São Vitor e Santo Tomás de Aquino jamais teriam concordado com uma teoria como esta. Para eles os conceitos universais existem verdadeiramente, no mínimo, na própria mente humana não como entidades singulares referidas a uma multidão de objetos externos como sinais, mas como entidades que possuem, em si próprias, uma natureza universal, e diriam até que esta é uma afirmação evidente.

Cabe então uma pergunta. Se para gregos, para os vitorinos e seus contemporâneos a natureza universal dos conceitos era algo evidente, por que depois para Ockham e para aqueles que o seguiram ela não o era mais?

Ao contrário do que pode parecer a um primeiro exame, isto não se deveu a um suposto caráter subjetivo desta matéria. A resposta a esta questão é que a descrição que Ockham fêz do funcionamento da inteligência humana na utilização dos conceitos é muita próxima da verdadeira, mas apenas na medida em que esta descrição corresponde a uma utilização muito rudimentar das possibilidades da inteligência humana.

Na verdade, Ockham estava descrevendo aquilo que ele próprio observava em sua mente, e o sucesso que em um século e meio esta teoria gradualmente alcançou, conquistando adesões gerais na maioria das universidades da Europa significa que todos os intelectuais europeus começaram a perceber que a descrição que Ockham dava dos processos da inteligência humana correspondia à utilização rudimentar que eles próprios faziam de suas próprias mentes.

Na mente daqueles homens os conceitos se elevavam tão pouco além de uma representação da imaginação utilizada como símbolo de um objeto externo, como ocorre também com a maioria dos homens do século XX, que estes conceitos só muito dificilmente podiam ser diferenciados daqueles próprios símbolos.

Embora não tenhamos elementos para aprofundar aqui este assunto, pode-se vislumbrar, por exemplo, conforme se explicou no número vigésimo terceiro da seção III/B desta Introdução Histórica, que no programa descrito por Platão como capaz de formar um sábio exigia-se como pré-requisito ao estudo da Filosofia que o aluno tivesse se elevado a um nível de pensamento abstrato muito acima do descrito por Ockham.

De fato, diz Platão na República que o aluno somente deveria iniciar os estudos da Filosofia quando

"conseguisse contemplar
a natureza dos números
com a ajuda exclusiva da inteligência,
sem introduzir objetos visíveis
ou palpáveis na discussão".

Embora nesta passagem, citada no vigésimo terceiro número da seção anterior, Platão fale em não introduzir objetos visíveis ou palpáveis `na discussão', o contexto desta citação, assim como o de todo o seu livro, indica que ele se referia também à imaginação interior do aluno, e não apenas à discussão exterior. E este era apenas o pré requisito de estudos filosóficos que iriam durar, depois disto, mais vinte e cinco anos.

É claro que depois de uma experiência como esta um filósofo como Platão ou Aristóteles faria uma descrição das possibilidades do trabalho da inteligência humana bem diversa daquela que nos é descrita por Ockham.

46.

As afirmações de Ockham, porém, não foram apresentadas como uma constatação de um dado psicológico individual. Se ele houvesse dito claramente:

"Isto se refere apenas
à minha mente,
e é assim
que eu a vejo funcionar",

ele estaria muito próximo da verdade.

Porém não foi isso o que ele quis dizer.

Sem ser capaz de se dar conta do que realmente estava ocorrendo, como sempre sucede quando se tornam verossímeis entre os homens as teorias nominalistas, Ockham sustentou que esta era a própria natureza última do trabalho da inteligência humana quando lida com os universais.

Tratam-se, portanto, não de dados psicológicos individuais, mas autênticas proposições filosóficas.

47.

Mas há ainda outro problema com a teoria nominalista, profundamente relacionado com a rudimentar concepção que esta tem da natureza da inteligência humana, problema este que teve repercussões históricas mais significativas.

Este problema consiste em que, associada à concepção nominalista do conhecimento, desenvolveu-se uma incapacidade geral para a apreensão da evidência de todas as demonstrações filosóficas de natureza puramente abstrata, para as quais começou a surgir uma desconfiança quase que sistemática a respeito de suas validades.

48.

Assim é que, segundo Ockham, não seria possível demonstrar a existência no homem de uma alma imortal e incorruptível, embora Santo Tomás de Aquino e Aristóteles sustentassem haverem-no demonstrado em seus escritos e também, entre as cartas deixadas pelo eremita Santo Antão encontremos uma infinidade de passagens em que ele nos garante que qualquer pessoa

"que for capaz de se conhecer
verdadeiramente a si mesmo
não terá dúvida alguma
sobre sua essência imortal,
por causa da qual
Deus visitou suas criaturas".

Ockham acreditava que a imortalidade e a incorruptibilidade da alma fossem verdades certas, não porém porque pudesse alcançar qualquer evidência deste fato, como alegavam Aristóteles, Santo Antão e Santo Tomás, mas apenas porque a fé assim o ensinava. Segundo Ockham, todas as demonstrações da espiritualidade da alma, em si consideradas, só deixavam dúvidas e incertezas.

Ainda segundo Ockham, não seria possível demonstrar a existência de uma relação de causalidade entre uma causa e seu efeito senão pela experiência. Qualquer argumentação que pretendesse deduzir a existência de uma causa sem identificar experimentalmente a pretendida causa e verificando-se então a ausência do efeito na ausência da causa e a presença do efeito na presença da causa seria, no máximo, uma argumentação provável, nunca, porém, certa.

Uma conseqüência, porém, desta posição de Ockham sobre causalidade era a de que, sendo assim, a existência de Deus não poderia ser demonstrada por nenhuma argumentação. Ockham acreditava na existência de Deus, não porém, porque possuísse alguma evidência para tanto, mas apenas porque a fé assim o ensinava. E, da mesma forma que a respeito da existência de Deus, Ockham também afirmava que não seria possível demonstrar a unicidade de Deus, nem se Deus conhece o futuro ou se conhece algo que não seja Ele próprio, nem se Deus age de modo livre ou se movido pela necessidade.

E da mesma maneira, ainda segundo Ockham, não seria possível demonstrar com certeza se uma ação humana é boa ou má. Mais ainda, não havia ações que fossem boas ou más em si mesmas, cuja moralidade pudesse ser deduzida a partir do entendimento que o homem pudesse alcançar delas próprias. Se determinadas ações eram moralmente boas e outras más isto ocorria apenas porque Deus assim o havia estabelecido e Deus, se o tivesse querido, teria podido estabelecê-lo diversamente. De fato, segundo Ockham, para Deus seria lícito fazer tudo o que seria pecado para os homens, e estas coisas em Deus não seriam pecado apenas porque Ele não teria acima de si mesmo um outro Deus que pudesse probi-lo de fazê-las. Deus, portanto, diz Ockham, fazendo o pecado, não peca. Esta posição é uma conseqüência lógica daquela outra segundo a qual não há nenhuma moralidade intrínseca às ações humanas, as coisas sendo moralmente boas ou más apenas porque Deus assim o quer. Deus, diz ainda Ockham, poderia ordenar às criaturas que o odiassem, e neste caso odiar a Deus seria bom e meritório.

"O mal nada mais é",

diz ainda Ockham,

"do que fazer algo cujo oposto
alguém está obrigado a fazer;
esta obrigação não pode existir em Deus,

porque Ele não está obrigado
a fazer nada".

49.

Que resultados produziu este modo de pensar?

À medida em que o ensino decaía e a doutrina nominalista se afirmava, passou-se a desprezar a Filosofia e a investigação das questões fundamentais da existência humana como uma ginástica fútil e estéril. À medida em que se perdia a capacidade de apreender a evidência de tudo o que não pudesse ser verificado experimentalmente, a atenção dos pensadores deslocava-se em direção às ciências experimentais e as questões fundamentais relacionadas com a consciência que o homem tem de sua existência no mundo passavam para o terreno da irrealidade.

Iniciou-se com isto um processo de autêntico desprezo, cada vez mais acentuado, pelas obras dos grandes filósofos e teólogos cristãos. Se a única fonte de certeza de tudo quanto diz respeito à fé e à moralidade das ações humanas são apenas as próprias afirmações divinas reveladas pelas Sagradas Escrituras, tudo se reduz a um problema de interpretação lingüística das palavras da Bíblia.

A fé começou a se separar da razão e a vida do pensamento começou a se separar da vida espiritual, e a causa de todo este modo de pensar é, em última análise, uma utilização extremamente rudimentar das potencialidades da inteligência humana de modo a impedir a evidência intelectual senão nos casos em que ela esteja apoiada de modo direto sobre a experiência sensível. Mas neste caso deve-se dizer também que esta evidência é mais sensória do que intelectual, e que o intelecto aí está servindo mais para organizar os dados da evidência sensorial do que para produzi-la. O trabalho de experimentação poderá ser extenso e sofisticado, a erudição em relação aos dados e à sistematização do trabalho experimental poderá ser impressionante, mas não será isto o que constituirá a vida intelectual.