O ENSINO SECUNDÁRIO
NA PRIMEIRA REPÚBLICA

(A Educação no Brasil até 1930)

- Segunda Parte -



42.

Para entender as origens das idéias da escola nova há que se remontar muito tempo, até à Idade Média. Nesta época, o principal centro de estudos da Europa e a cidade de Paris, onde no século XII ocorre uma multiplicação enorme de mosteiros e de escolas, com professores ilustres vindos de todas as partes do mundo. Os autores daquela época chamavam a cidade de Paris com nomes tais como “Árvore da Vida Plantada no Paraíso Terrestre”, “Fonte de Toda a Sabedoria”, “Arca da Aliança”, “Tesouro dos Príncipes, em cuja presença Atenas e Alexandria empalidecem”, e outros deste tipo, que mostram o conceito que as pessoas faziam desta cidade. Esta reputação não era devido apenas à fama dos mestres, mas à própria beleza do local àquela época, à honra com que eram tratados os professores e o clero na região e às comodidades desenvolvidas para o acolhimento de estudantes estrangeiros. Este conjunto de facilidades iria resultar no surgimento da primeira Universidade da história no século XIII, a Universidade de Paris.

43.

Os principais objetos de estudo que atraíam os estudantes do mundo inteiro a Paris eram a Teologia, o Direito Canônico e a Medicina. Durante o século XIII, juntamente com a Teologia, desenvolveu-se também o estudo da Filosofia. Como preparação para estes estudos existia o equivalente de um ensino secundário ministrado em dois ciclos, conhecidos como Trivium e Quadrivium.

44.

O Trivium, também conhecido abreviadamente por "Sermones", isto é, "Linguagem", era constituído dos estudos de Gramática, Retórica e Lógica.

45.

O Quadrivium, também conhecido como "Res", isto é,"Coisas", era o estudo da Aritmética, Geometria, Astronomia e Música, esta última entendia mais no seu aspecto teórico do que na sua expressão artística.

46.

A divisão explícita do Trivium e Quadrivium remonta a alguns autores entre os Santos Padres do início da cristandade, os quais se inspiraram, por sua vez, nas concepções expostas na “República” de Platão.

47.

O Trivium e o Quadrivium já eram ensinados no século XII nos mosteiros e nas escolas catedralícias de Paris como preparação aos estudos superiores de Teologia, Direito Canônico e Medicina. Com a fundação da Universidade de Paris, tais estudos passaram a fazer parte da Universidade, a qual, portanto, compreendia não apenas os estudos superiores, mas também os secundários. Entrava-se na Universidade aos quinze anos e dela saía-se aos 35 com o título de doutor em Teologia. O aluno cursava primeiramente o Trivium e o Quadrivium e, para daí ser admitido aos cursos superiores, era obrigado a passar por um estágio de alguns anos como professor destas artes na própria Universidade.

48.

Em poucos lugares os objetivos e os métodos de ensino da época foram expostos com tanta propriedade como nas obras de Hugo de São Vítor, que foi o mais célebre professor da escola do mosteiro de São Vítor, uma das mais concorridas de Paris, um século antes da fundação da Universidade. Vê-se claramente, em primeiro lugar, como o curso secundário era nesta época administrado pelos mesmos responsáveis pelo curso superior, e tinha como finalidades preparar a mente do aluno para a compreensão dos estudos superiores.

49.

Os cursos superiores naquela época visavam de uma maneira mais explícita atender um anseio de busca pelo conhecimento por parte do aluno muito mais pronunciado do que hoje em dia. O conhecimento buscado não era tanto uma formação profissional, nem a verdade em alguma área específica do conhecimento, quanto uma visão sintética da própria totalidade do conhecimento. Isto era possível porque na base dos métodos pedagógicos, embora se estimulasse o raciocínio analítico, estimulava-se muito mais algo que é desconhecido pela pedagogia moderna a que se dava o nome de contemplação.

50.

Isto pode ser visto claramente em um opúsculo de teoria pedagógica daquele tempo, escrito por Hugo de São Vítor, intitulado “Sobre o Modo de aprender e de Meditar”, de que tiramos as seguintes passagens, indispensáveis para se compreender o que irá se seguir:

"Três são as visões da alma racional",

diz Hugo de S. Vítor,

"o pensamento, a meditação e a contemplação,
(que constituem entre si uma hierarquia).

O pensamento ocorre
quando a mente é tocada transitoriamente
pela noção das coisas,
ao se apresentar a própria coisa,
pela imagem,
subitamente à alma,
seja entrando pelo sentido,
seja surgindo da memória.

O pensamento pode ser estimulado pela leitura.

A meditação baseia-se no pensamento,
e é um assíduo e sagaz reconduzir do pensamento,
esforçando-se para explicar algo obscuro,
ou procurando penetrar no que
ainda nos é oculto.

O exercício da meditação,
assim entendido,
exercita o engenho.
Como a meditação, porém,
se baseia por sua vez no pensamento,
e este é estimulado pela leitura,
duas coisas há que,
na realidade,
exercitam o engenho:
a leitura e a meditação.

Na leitura, mediante regras e preceitos,
somos instruídos a partir das coisas
que estão escritas.

A leitura também é uma investigação do sentido
por uma alma disciplinada.

A meditação toma depois, por sua vez,
o seu princípio da leitura,
embora não se realizando
por nenhuma das regras
ou dos preceitos da leitura.

A meditação é uma cogitação freqüente com conselho,
que investiga prudentemente
a causa e a origem,
o modo e a utilidade de cada coisa.

Mas acima da meditação
e baseando-se nela,
existe ainda a contemplação.
A meditação é uma visão
livre e perspicaz da alma
de coisas que existem em si
amplamente espalhadas.

Entre a meditação e a contemplação
o que parece ser relevante
é que a meditação é sempre
de coisas ocultas à nossa inteligência;
a contemplação, porém, é de coisas que,
segundo a sua natureza
ou segundo a nossa capacidade,
são manifestas;
e que a meditação sempre se ocupa
em buscar alguma coisa única,
enquanto que a contemplação se estende
à compreensão de muitas,
ou também de todas as coisas.

A meditação é, portanto,
um certo vagar curioso da mente,
um investigar sagaz do obscuro,
um desatar o que é intrincado.

A contemplação é aquela vivacidade da inteligência,
a qual, já possuindo todas as coisas,
as abarca em uma visão plenamente manifesta,
e isto de tal maneira que aquilo
que a meditação busca,
a contemplação possui”.

51.

Nesta passagem, quando Hugo de São Vitor se refere à contemplação como a uma atividade da inteligência humana que se estende

“à compreensão de muitas
ou também de todas as coisas”,

percebe-se claramente que esta é a atividade fundamental, por exemplo, que está na base das grandes sínteses filosóficas. E não apenas na base das grandes sínteses filosóficas, mas deveria estar também em outras atividades tão vividamente exigidas nos dias de hoje como a correta orientação política de uma nação e até mesmo o ordenamento plenamente consciente de um sistema educacional. Como valor individual, ademais, a capacidade de contemplação foi colocada pelos principais filósofos gregos como o mais significativo elemento de enobrecimento da mente humana, e a experiência religiosa dos primeiros Santos Padres do Cristianismo apontou esta capacidade como elemento fundamental para a compreensão profunda das grandes verdades do cristianismo apesar de, e isto é significativo, em nenhuma parte das Sagradas Escrituras esta capacidade ter sido descrita nos termos empregados por Hugo de São Vítor.

52.

Daí se vê, na pedagogia desta época, a pouca ênfase que se dava ao estudo literário, sendo este apenas uma introdução ao estudo das ciências que ocorria no Quadrivium, onde este estudo era encaminhado mais no sentido do desenvolvimento no aluno da capacidade de síntese que iria ter o seu coroamento final nos estudos superiores. O ciclo completo destes estudos não terminava, ademais, antes dos 35 anos de idade.

53.

Um outro elemento significativo da pouca importância que era dado aos estudos lingüísticos na época está no fato de que o latim mais simples de todas as épocas é justamente o latim do século XIII; e dentre os autores deste século o mais simples dentre os simples é o de S. Tomás de Aquino, um homem que desenvolveu à excelência as qualidades acima descritas. À grande profundidade de pensamento une-se nele uma simplicidade quase de criança da gramática e da sintaxe. Veremos como logo nos séculos seguintes este quadro se inverteu totalmente.

54.

No século 14, em 1348 espalhou-se no mundo a Peste Negra, a pior de todas as epidemias que se abateram sobre a história da humanidade. Em questão de uns poucos anos pereceram metade dos habitantes da Europa; no auge da peste, pessoas que amanheciam com boa saúde antes do pôr do sol já estavam na cova, e em cada viela passavam diariamente os carrinhos de recolher os mortos. Os melhores e mais abnegados membros do clero e da classe médica morreram prestando assistência aos infectados, aos que se seguiram os demais voluntários mais corajosos; dentre eles estavam a maioria dos melhores professores universitários, que pertenciam ao clero. Escaparam aqueles que fugiram das cidades, ou porque eram medrosos ou porque não tinham tido a capacidade de gerir algum negócio próprio e nada tinham a perder fugindo.

55.

Desta maneira, ao findar a peste, a elite da medicina, do clero, dos estudiosos e dos que tinham espírito de empreendimento havia falecido. Sobraram os piores e com eles o nível do ensino começou a decair vertiginosamente. As pessoas que freqüentavam as bibliotecas começaram a se interessar não mais pelas obras que continham a profundidade do pensamento filosófico ou teológico, nem pelas ciências, mas pelo que nelas havia de literatura, produzida, em sua maior parte, na Antigüidade Clássica. Daí que à margem das Universidades decadentes, iniciou-se uma febre de redescoberta dos clássicos da literatura antiga e, com eles, a febre pela sofisticação do estudo da língua latina e depois também da grega. Surgiu então o currículo de estudos humanistas, na realidade de inspiração pagã e não cristã, baseado no estudo do latim e na leitura dos clássicos da literatura e cuja finalidade era, muitas vezes, a erudição.

Havia, ademais, uma nítida incapacidade geral de compreensão dos ideais pedagógicos anteriores, mesmo entre os melhores espíritos, o qual perdura até os dias de hoje. Foi como que uma civilização que se perdeu repentinamente; embora tenha deixado seus testemunhos, na prática tais testemunhos para a maioria ou a quase totalidade não representam mais do que os vestígios que a civilização egípcia nos deixou com suas pirâmides ou os habitantes da Ilha de Páscoa com suas estátuas.

56.

Foi nesta época que surgiu a Companhia de Jesus. Embora tenha tentado cristianizar o tipo de ensino que tomou conta da época baseado na literatura e no estudo dos clássicos, a partir daí conhecido como ensino humanista, a Companhia, ao estabelecer a Ratio Studiorum como regulamento de seus estabelecimentos de ensino secundário, não atinou ou não lhe foi possível atinar para com o legado pedagógico que os cristãos anteriores à época da Peste Negra haviam deixado. Ela na verdade acabou adotando como própria a metodologia fundamental do Renascimento para os estudos secundários. Foi esta metodologia que entrou no Brasil com a colonização portuguesa e continuou inalterada até à Primeira República, mesmo com as profundas transformações por que iria passar na Europa. Em termos educacionais, até à primeira guerra mundial, mesmo com a expulsão dos jesuítas das terras brasileiras pelo Marquês de Pombal em 1759, o Brasil continuou na linha da pedagogia renascentista. Pombal havia expulsado os padres, mas os que ficaram simplesmente continuaram, embora de uma maneira muito ineficiente, os mesmos métodos e as mesmas concepções, como se no resto do mundo nada estivesse acontecendo.

57.

No resto do mundo muita coisa estava acontecendo. As universidades mais tradicionais do mundo estavam nesta época em franca decadência, organizadas em uma estrutura vinda de uma época cujos métodos de ensino eram cada vez menos compreensíveis, senão de todo incompreensíveis. A atenção dos educadores, devido à ênfase renascentista pelo estudo das línguas, começou a passar para o ensino secundário, onde era aprendido o latim. Os principais problemas da especulação educacional de tornaram os problemas da didática e depois da psicologia das crianças.

58.

As principais preocupações dos pensadores educacionais antes da Peste Negra tinham se dirigido para o desenvolvimento das faculdades superiores da mente humana e, quando se preocuparam com o que seria atualmente o estágio correspondente ao ensino secundário, o faziam com vistas no desenvolvimento direto destas faculdades. A preocupação com o ensino primário, do ponto de vista teórico, até onde sabe o autor deste trabalho, era praticamente nula. O que se assistiu depois foi o surgimento da tendência contrária.

59.

A primeira grande obra pós renascentista de Educação foi a Didática Magna de Comenius, bispo morávio que percebendo a precariedade dos métodos de ensino do latim, passou a partir daí a estudar a fundo os problemas da didática em um contexto mais amplo.

Mas como os problemas de aprendizagem e ensino estudados por Comenius tinham origem em estágios mais precoces do desenvolvimento da criança, logo as preocupações teóricas dos grandes pedagogos passaram para a educação de crianças de ainda menor idade, com Pestalozzi, autor de “Como Gertrudes Educa a seus Filhos”, e depois com Froebel, com “A Educação do Homem”. Esta linha acabou desembocando na atualidade nos numerosos estudos de Piaget. A primeira grande preocupação da escola pós renascentista que depois, neste século veio a se chamar de Escola Nova, foi, deste modo, voltada para a psicologia infantil e o estudo dos problemas da Didática.

No Brasil, porém, a escola continuava ainda no estágio anterior.

60.

Mas, além disso, depois do Renascimento houve um surto de descobertas científicas da mais elevada importância; com o desenvolvimento das ciências e da revolução comercial e industrial por elas desencadeado começou-se a questionar a validade do ensino baseado nas línguas e na literatura clássica e, pensamos nós, com razão porque, pelo menos nos princípios teóricos em que ela se baseia, esta foi a mais pobre de todas as concepções educacionais da história. Na prática, porém, este ensino, pelos menos quando era administrado pelos primeiros jesuítas, o era com uma excelência que compensava freqüentemente e fartamente toda a pobreza que continha em seus princípios. Com o desenvolvimento da revolução comercial e industrial chegou um momento em que começou a ficar claro para as autoridades públicas que a modificação dos métodos e fins do ensino, orientando-o não mais diretamente para o homem, mas para as necessidades da sociedade industrial, e o seu alastramento em todas as camadas da sociedade era de necessidade fundamental para a prosperidade das nações. Ao contrário do que acontecia antes, a sociedade que não se desse conta deste fato estaria condenada a entrar em colapso. Começaram assim a emergir não apenas as características psicológicas da nova educação, mas também as assim ditas sociológicas. Tal tendência parece que começou a entrar decisivamente na educação a partir dos “Discursos à Nação Alemã” de Fitche no início do século 19 e chegou a um de seus pontos culminantes com as obras do filósofo norte americano John Dewey, que foi o que levou mais longe a reflexão sobre as relações entre a democracia industrial moderna e a educação. A obra deste americano foi uma das principais fontes de inspiração da maioria dos reformadores educacionais do Brasil na década de 20. Anísio Teixeira chegou a ir pessoalmente aos Estados Unidos estudar com o famoso mestre.

61.

Assim, juntamente com o otimismo pedagógico que tomou conta da sociedade brasileira na década de 20, as concepções educacionais dos principais líderes desta época no Brasil se baseavam, do ponto de vista teórico, na tomada de consciência brusca daquilo que ao longo dos últimos séculos se tinha acumulado na Europa contra o ensino renascentista que era o seguido no Brasil da época: consciência dos fatores psicológicos envolvidos na elaboração dos métodos de ensino; crítica à cultura de fundo humanista em detrimento da científica; necessidade de colocar como fim da educação os fins exigidos pelo desenvolvimento da democracia industrial.

62.

Algumas citações tiradas de educadores brasileiros desta época ilustram muito bem o que queremos dizer. Fernando de Azevedo, ao comentar o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932 redigido por ele próprio e assinado pela elite dos educadores brasileiros da época, escreve:

“ Pode-se dizer que,
com o documento do Manifesto dos Pioneiros,
o problema da educação,
o maior e o mais difícil problema proposto ao homem,
se transportou entre nós
da atmosfera dominada pelo empirismo
para o domínio das cogitações científicas e filosóficas,
de que dependem os sistemas da organização escolar,
no seu sentido e na sua direção.
O documento suscitou
e não podia deixar de suscitar divergências,
no seu conteúdo ideológico francamente revolucionário,
as quais provém dos diferentes pontos de vista
de que pode ser apreciado o problema
fundamental dos fins da educação.
Onde surgem as discordâncias é justamente
na fixação deste ideal,
que varia em função da concepção de vida e,
portanto, de uma filosofia,
não podendo, pois, satisfazer
à variedade dos pontos de vista particulares
que nos dá a multidão das idéias aprioriisticas e dogmáticas.
As idéias e as instituições pedagógicas
são essencialmente o produto
de realidades sociais e políticas.
Não podia permanecer inalterável
um aparelho educacional,
a cuja base residia uma velha concepção de vida,
em uma época em que a indústria mecânica,
aumentando em intensidade,
transformou as maneiras de produção
e as condições de trabalho.
Era preciso, portanto,
examinar os problemas da educação
do ponto de vista não de uma estática social,
que não existe senão por abstração,
mas de uma sociedade em movimento.
É desse ponto de vista sociológico
que aí se estudou a posição atual
do problema dos fins da educação.
É ele que nos fez encarar a educação
como uma adaptação ao meio social”.

63.

São também de Fernando de Azevedo as seguintes palavras:

“Por menos que pareça,
nessa concepção educacional,
cujo embrião já se disse ter se gerado
no seio das usinas
e de que se impregnam a carne e o sangue
de tudo que seja objeto da ação educativa,
não se rompeu nem está a pique de romper-se
o equilíbrio entre os valores mutáveis
e os valores permanentes da vida humana.
É certo que é preciso fazer homens,
antes de fazer instrumentos de produção.
Mas o trabalho,
que sempre foi a maior escola
de formação da personalidade moral,
é o único método suscetível de fazer
homens cultivados e ideais
sob todos os aspectos.
A civilização contemporânea
apresenta-se ao observador menos atento
como uma civilização materialista,
em que as conquistas de ordem moral
não correram paralelas
com os progressos científicos
na submissão das forças naturais.
Mas as conquistas materiais,
no domínio das ciências aplicadas,
trazem freqüentemente
o germe de conquistas morais.
A máquina libertou o homem,
e se acompanharmos
a formação histórica das idéias morais,
veremos que a civilização atual,
aparentemente materialista,
apresenta uma série de conquistas morais
do maior alcance.
Não é somente a indústria que se desenvolveu,
é a humanidade que evoluiu
ampliando para círculos cada vez mais vastos
os benefícios e as utilidades que acumulou”.

64.

De Anísio Teixeira são as seguintes palavras, extraídas de um discurso intitulado Bases para a Programação da Educação Primária no Brasil:

“Sinto-me satisfeito hoje de falar a economistas.
Aos economistas compete, com efeito,
ajudar os educadores a organizar
e programar devidamente
o sistema educacional.

Participei, em 1929, na Universidade de Colúmbia,
do primeiro curso que ali se ministrou
sobre Economia da Educação.
O professor Clark nos deu, então,
em sua primeira aula,
uma definição de educação que guardo até hoje
e à qual sempre aludo para convencer certos espíritos
de que a educação não é apenas
um processo de formação e aperfeiçoamento do homem,
mas o processo econômico de desenvolver
o capital humano da sociedade.

A definição que o professor Clark nos deu, em 1929,
era a de que a educação intencional, ou seja,
a educação escolar,
é o processo pelo qual se distribuem adequadamente
os homens pelas diferentes ocupações da sociedade.
A educação escolar, dizia ele,
é o processo pelo qual a população
se distribui pelos diferentes ramos
do trabalho diversificado da sociedade moderna”.

65.

Também de Anísio Teixeira temos mais o seguinte depoimento, que consta de seu livro publicado em 1935, “Educação para a Democracia”:

“Considerada a Educação
nos seus objetivos presentes,
ela importa em um plano
de redistribuição dos homens pelas ocupações.
A sua função é prepará-los,
pela aquisição de conhecimentos
e práticas de natureza técnica,
para os diversíssimos tipos de trabalho da vida atual.
Nem sempre, entretanto,
foram assim as escolas,
laboratórios e oficinas.
No passado preparavam
homens de cultura,
que iam se devotar aos trabalhos
da especulação e da imaginação,
preocupados formar os sentimentos,
as aspirações e os pensamentos
de uma época ou de uma civilização.
Desapareceu, por acaso,
esta função da escola?
A educação de todos os povos tem refletido,
ultimamente, mais ou menos,
a fase nova da humanidade.
Foram revistos programas e cursos.
Tudo entrou na ebulição de nossos dias.
Dentro da grande variedade
de técnicas da vida moderna,
há lugar para a cultura
de alguns que se dedicam à filosofia,
à literatura e às artes.
Apenas, enquanto no passado
outra não era a formação universal
do homem culto,
hoje esta representa, estritamente,
uma das muitas especialidades
a que se podem dedicar os homens.
De mil maneiras um homem hoje
consegue ser culto.
Tudo mudou com a cultura econômica
e científica de nossos dias.
A vida já não é governada
pelos velhos índices de intelectualidade
herdados da Idade Média,
quando apenas se cogitava
de preparar os poucos previlegiados
que chegavam até à escola
para as delícias de consumir
e apreciar a vida literariamente.
Hoje todos tem que produzir.
Técnicas científicas e industriais
sobrepuseram-se ao encantamento
da vida do espírito.
Passada a sofreguidão da conquista
do novo estado de coisas ,
vai-se chegando, entretanto,
às idealizações que nos darão também
o lado imaginativo e poético
da nova civilização.
Esta nova cultura virá do amadurecimento
da ordem de coisas que vai se implantando;
será a nova civilização tornada consciente,
interpretada e formulada em uma filosofia,
uma arte, e quem sabe,
uma nova religião.
A técnica terá se identificado, então,
com uma verdadeira cultura
e desaparecerá o dissídio atual
entre a cultura e a técnica.
Mas no Brasil todos estes aspectos de luta
entre as duas culturas são apagadas ou disfarçadas
na própria inconsciência da educação nacional.
Não chegamos a possuir verdadeiramente
um sistema tradicional de educação
e já o século XX nos bate à porta
com as novas imposições técnicas e econômicas
da vida contemporânea.
Precisamos sair de nossas escolas,
com seus problemazinhos de ordem e moralização,
para sentirmos o problema da educação que é,
conforme vimos,
um problema de preparação de técnicos
em todos os graus e ramos,
destinados a servir um período da idade do homem
de base profundamente científica
e caracterização acentuadamente técnica”.

66.

A maioria dos reformadores e propagadores das idéias da Educação Nova no fim da Primeira República tiveram sua primeira formação em Direito. Seus envolvimentos com os problemas da educação resultaram de circunstâncias fortuitas posteriores. Anísio Teixeira buscou sua inspiração nos cursos que fez nos Estados Unidos na Universidade de Colúmbia e de seu contato pessoal com John Dewey. Fernando de Azevedo nunca havia pensado em trabalhar com os problemas da Educação; foi, entretanto, contratado em 1926 para fazer uma extensa reportagem para o jornal "O Estado de São Paulo" sobre a situação do ensino no Brasil; o brilhantismo com que realizou esta tarefa fez com que no ano seguinte fosse convidado pelo prefeito do Distrito Federal para realizar a mais importante das reformas da década de 20, a de 1927 do ensino primário na Capital da República, que influenciou decisivamente as reformas subseqüentes do fim da Primeira República e as federais do período seguinte. Lourenço Filho era também licenciado em Direito; comissionado pelo governo do Estado de São Paulo, reformou a educação primária do Estado do Ceará e em 1929 publicou o mais importante livro teórico sobre a Educação Nova no Brasil, chamado “Introdução ao Estudo da Escola Nova”, o qual teve repercussão também no estrangeiro.

O movimento reformista foi favorecido pela criação em 1924 da Associação Brasileira de Educação, por iniciativa de Heitor Lima. As principais iniciativas da ABE foram as Conferências Nacionais de Educação. Já no fim do Império, conforme vimos, havia sido programado um primeiro congresso nacional de Educação no Brasil, do qual, embora não tenha chegado a concretizar-se, possuímos a coleção dos trabalhos que iriam ser apresentados. Quarenta anos depois, aproximadamente, a ABE conseguiu realizar uma série deles: em 1927, em Curitiba; em 1928, em Belo Horizonte; em 1929, em São Paulo; no quarto, em 1931, recebeu-se uma solicitação do Presidente da República em torno à elaboração de diretrizes para uma política nacional de educação, mas a polêmica foi tão violenta que não foi possível atender ao pedido. Vinte e seis educadores, entretanto, todos ou quase todos presentes àquela Conferência, decidiram redigir um documento neste sentido, daí tendo surgido em 1932 o texto do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, redigido por Fernando de Azevedo e assinado por 26 educadores famosos. Neste documento, partindo nem sempre de um modo explícito da história e dos princípios aqui expostos, considera-se a Educação como uma função essencialmente pública, pede-se a unificação do sistema nacional de ensino, assim como a laicidade, a gratuidade e a obrigatoriedade da instrução no Brasil, discute-se o problema da Universidade e dos erros de concepção envolvidos com o seu papel e o problema da formação dos professores, dentre outros. Uma abordagem mais detalhada do conteúdo do manifesto, bastante complexo, porém, não pertence ao período da Primeira República, e menos ainda o estudo de suas conseqüências. Mas o documento deve aqui ser citado pois ele foi preparado pelos fatos e pelas idéias desenvolvidas durante a Primeira República, e foi como que um dos desfechos das mesmas.

67.

Outro importante desfecho do movimento renovador surgido em decorrência ou em paralelo com as reformas estaduais, das conferências nacionais da ABE e do desempenho a nível teórico dos educadores desta época, foi a criação do primeiro Ministério da Educação no Brasil pelo governo de Getúlio Vargas em 1930, se desconsiderarmos o transitório Ministério da Educação, Correios e Telégrafos do início da República que não chegou a durar dois anos. Para ocupar a pasta foi chamado Francisco Campos, o promotor da reforma do ensino primário em Minas Gerais em 1927. Como primeiro ministro da Educação no Brasil, Francisco Campos pôde, pela primeira vez, impor uma reforma a nível de todo o território nacional. A análise da reforma de Francisco Campos, entretanto, também não cai dentro dos objetivos deste trabalho.

68.

Quanto ao ensino superior, durante a Primeira República foram fundados, além das escolas de nível superior que já existiam desde a época imperial, duas escolas de Direito no Rio de Janeiro e, na Bahia, em Minas Gerais, em Fortaleza, no Pará, em Manaus e em Porto Alegre, uma faculdade de Direito em cada um destes lugares. Foram fundadas também a Escola Politécnica de Engenharia e a Escola de Engenharia Mackenzie, ambas em São Paulo. Em Piracicaba a Escola Superior de Agricultura e em São Paulo a Escola de Medicina. Em 1920 foi criada a Universidade do Rio de Janeiro, em que as duas faculdades de Direito existentes nesta cidade foram reunidas em uma só e, em conjunto com a Faculdade de Medicina e a Escola Politécnica em que se havia transformado a Academia Militar de Dom João VI, formou-se a primeira Universidade do Brasil. Na prática, porém, tal Universidade não passou de uma ficção jurídica em que estas três faculdades foram agregadas em uma só instituição.