O ENSINO SECUNDÁRIO
NA PRIMEIRA REPÚBLICA

(A Educação no Brasil até 1930)

- Primeira Parte -



01.

Neste trabalho temos como objetivo descrever a evolução do ensino secundário no Brasil durante a Primeira República, inserindo-o, porém, no quadro maior de toda a História da Educação no Brasil até 1930, de modo que, com isto, seja possível alcançar-se uma primeira idéia de ambas estas realidades. Na História do Brasil costuma-se chamar de Primeira República ao período que vai desde a Proclamação da República até o início do governo do presidente Getúlio Vargas, isto é, o período entre 1889 e 1930.

02.

Durante os primeiros séculos da colonização portuguesa no Brasil o ensino havia ficado a cargo dos padres da Companhia de Jesus em quase a sua totalidade. A Companhia de Jesus, quando da época do envio de seus primeiros missionários ao Brasil havia sido recém fundada pôr santo Inácio de Loyola, sem que tivesse tido, entretanto, objetivos educacionais em sua origem. A intenção de Santo Inácio foi inicialmente trabalhar na conversão dos muçulmanos; não podendo, por circunstâncias alheias à sua vontade, dar prosseguimento a este objetivo, juntamente com os seus primeiros companheiros renunciou a este ideal como fim específico da Companhia de Jesus e ofereceu-se então à Santa Sé para que dispusesse de sua organização conforme ela melhor entendesse que fossem as necessidades prioritárias da Igreja.

03.

A primeira prova a que a Santa Sé submeteu a nova organização foi a do apostolado do confessionário nos bairros pobres da cidade de Roma. Vendo, porém, o valor daqueles novos padres, o Papa transferiu-os para as cátedras de Teologia, para as missões e os trabalhos de assessoria ao Concílio de Trento então em curso; mas não tardou que o principal trabalho que ficaria a cargo dos jesuítas em todo o mundo se tornasse o trabalho educacional. Nem os próprios jesuítas, nem a hierarquia eclesiástica imaginaram, no início, que tal seria a principal vocação, na ordem dos fatos, daquela organização que inicialmente não passava de um pequeno grupo de homens que apenas se punham à disposição do Papa.

04.

A importância destas observações reside no fato de que, ao ser colhida nas contingências da época pelo trabalho pedagógico, a Companhia de Jesus não contava para tanto com uma filosofia da educação especialmente elaborada para o desempenho desta missão. A Companhia vinha ao mundo com diversas idéias novas, especialmente no campo da ascese cristã e na sua própria organização como sociedade de clérigos, mas não tinha nada a dizer de especial quanto à filosofia da educação, no sentido em que entendemos hoje este termo, excluída a educação especial daqueles que deveriam ser sacerdotes. Por causa disso ela limitou-se na prática, em termos da educação mais geral, a codificar através da experiência de seus docentes uma filosofia de educação em que, de certo modo, cristianizava-se o modelo educacional renascentista, baseado, no equivalente ao ensino secundário, no estudo dos clássicos e no cultivo da língua latina. De tal modo este ensino se expandiu que com o tempo este modelo pedagógico começou a ser visto como se esta fosse a própria filosofia cristã da educação, a assim chamada educação humanista, quando na verdade, se nos ativermos ao legado dos grandes pensadores cristãos desde a antigüidade até antes da Renascença, bem outro é o modo neles encontrado de serem abordados os problemas pedagógicos.

05.

O predomínio da educação jesuíta no Brasil foi quase absoluto até o ano de 1759, quando o Marquês de Pombal expulsou todos os padres da Companhia de Jesus de Portugal e de suas colônias. No lugar dos colégios da Companhia de Jesus foram criadas as aulas régias de Latim, Grego e Retórica, cada uma delas constituindo uma unidade, autônoma e isolada, pois uma não se articulava com outra nem pertenciam a qualquer escola, no dizer de Nelson Piletti:

“Não havia currículo,
no sentido de um conjunto
de estudos ordenados e hierarquizados,
nem a duração prefixada se condicionava
ao desenvolvimento de qualquer matéria.
O aluno se matriculava em tantas aulas
quantas fossem as disciplinas que desejasse.
Para agravar este quadro,
os professores eram geralmente de baixo nível,
porque improvisados e mal pagos,
em contraste com o magistério dos jesuítas,
cujo preparo chegava ao requinte”.

06.

Além disso, agravava o quadro de nossa situação educacional o fato de que não havia, propositalmente, escolas técnicas nem superiores no Brasil, a imprensa era proibida e, além de, portanto, não se imprimirem livros no Brasil, era extremamente difícil obtê-los vindos do estrangeiro.

07.

A situação começou a mudar com a vinda forçada de Dom João VI para o Brasil em 1808, fugindo das tropas de Napoleão que haviam invadido Portugal por esta época. Dom João Vi sabia que sua estadia forçada em terras brasileiras não seria curta e, portanto, além de abrir os portos do Brasil às nações amigas, resolveu permitir a imprensa, facilitar a entrada de livros e fundar cerca de uma dezena de instituições de ensino técnico ou superior em nosso território, no Rio de Janeiro e na Bahia.

08.

Estas instituições visavam apenas a formação de profissionais de nível superior nas áreas de Engenharia, Medicina, Química e Agricultura. Dom João VI não fundou nenhuma escola de Direito no Brasil, não tomou iniciativa alguma quanto à organização do ensino primário nem do secundário, que continuaram existindo sob a forma das aulas régias instituídas pelo Marquês de Pombal. Tampouco fundou institutos de pesquisa ou de ensino de disciplinas de interesse cultural, nem tentou organizar uma Universidade no Brasil, embora estas instituições fossem já comuns na Europa e mesmo nas demais colônias da América Espanhola. Em outras palavras, Dom João quis resolver apenas o problema da falta de um certo número de engenheiros, médicos e agrônomos no Brasil, e não o problema da educação do povo brasileiro. Mas, mesmo ao fazer apenas isto, iniciou um processo que ele sabia que não poderia mais voltar atrás. Anos mais tarde, ao retornar para Portugal, já previa que a Independência do Brasil estava próxima e aconselhou seu filho que ficou como regente em seu lugar a pôr a coroa sobre a sua cabeça antes que algum bandoleiro qualquer lhe tomasse a iniciativa.

09.

Com a Proclamação da Independência, o Brasil tinha outros problemas mais urgentes, ou que pelo menos assim o pareciam aos homens daquela época, com que se preocupar do que a fundação de uma Universidade ou o estabelecimento de uma rede de ensino primário e secundário. O sistema de aulas avulsas teria que ser reconhecido pelo novo Estado e continuar, na impossibilidade de substituí-lo imediatamente por um verdadeiro sistema escolar tal como o entendemos nos dias de hoje, ou como existia no tempo dos jesuítas.

O governo Imperial fundou duas escolas de Direito, uma em São Paulo e outra no Recife; as aulas avulsas continuaram existindo, sem controle governamental, mas na prática os professores ensinavam apenas aquilo que era exigido para o ingresso às poucas escolas de ensino superior existentes no Brasil naquela época, isto é, a aprovação em exames preparatórios parcelados, que eram uma espécie de atestado de estudos secundários. Embora a princípio tais exames fossem realizados junto às faculdades, não eram um exame vestibular e sim, como foi dito, um atestado de estudos secundários. As faculdades então existentes no início do Império eram basicamente as fundadas por Dom João VI mais as duas escolas de Direito de São Paulo e Recife. Desta maneira não existia no Império, em princípio, nem cursos primários nem secundários propriamente ditos.

10.

Mas, paralelamente a isto, em nada impedindo a existência das aulas avulsas, a primeira Constituição Brasileira de 1824 estabeleceu, segundo Nelson Piletti, que

"a instrução primária seria gratuita a todos os cidadãos
e uma lei de 15 de outubro de 1827 determinou
que deviam ser criadas escolas de primeiras letras
em todas as cidades, vilas e lugarejos”,

coisa que, porém, nunca chegou a ser cumprida em grande extensão. Ou seja, a intenção da lei era a de que, embora para a entrada no ensino superior não fosse necessária a freqüência aos cursos primário e secundário, pois continuaria bastando a aprovação nos exames parcelados, aos poucos fossem surgindo escolas primárias e secundárias obedecendo a regulamentos governamentais.

Antes, porém, que tais projetos se concretizassem, ocorreu uma modificação constitucional no Brasil que iria complicar seriamente os destinos da educação durante todo o restante do Império.

11.

Conforme diz Fernando de Azevedo,

"em 1834 o sistema educativo e cultural,
em formação desde Dom João VI,
e que se vinha reorganizando lentamente
de cima para baixo,
foi atingido, no seu desenvolvimento,
por um ato da política imperial
que o comprometeu em suas próprias bases".

12.

Em 1831 Dom Pedro I foi forçado a abdicar o trono em favor de seu filho, ainda criança. Durante o período de transição à maioridade de D. Pedro II, os parlamentares brasileiros, com receio de que o novo imperador acumulasse um excesso de poder, promulgaram o Ato Adicional de 1834 à Constituição Imperial pelo qual o poder público, em diversos sentidos, era descentralizado.

13.

Em virtude do Ato Adicional de 1834, no que dele dizia respeito à educação, cada província do Brasil se tornava autônoma para organizar, de acordo apenas com suas próprias diretivas, o ensino primário e secundário. Haveria, ou poderia haver, portanto, tantos sistemas de ensino primários e secundários no Brasil quantas fossem as províncias, sem que nenhuma tivesse que dar satisfação nem às demais províncias, nem tampouco ao governo central. O ensino superior, porém, ficaria sob a responsabilidade do governo central em todo território nacional, no que havia uma incongruência, pois quem legisla sobre o ensino superior deveria ter o direito de estabelecer diretivas para o ensino primário e secundário que lhe são pré requisitos. Isto, porém, já não mais poderia ser feito, porque os responsáveis pelo ensino primário e secundário, autônomos em cada província, não seriam obrigados a respeitar estas diretivas. Somente no Município Neutro do Rio de Janeiro, o município onde se localizava a sede do Governo Imperial, o ensino primário e secundário também estaria sob a responsabilidade do governo central.

14.

Mas para complicar este quadro, acrescentou-se a isto que a lei facultaria ao governo central a possibilidade de estabelecer nas províncias escolas de nível primário e secundário submetidos apenas à regulamentação emanada do mesmo governo central, regulamentação que poderia ser diversa e independente da rede escolar organizada em cada região pelo governo das respectivas províncias.

15.

Em conclusão, pelo ato adicional de 1834, iriam existir, no Brasil, para suprir a formação primária e secundária:

  • Uma rede de aulas particulares e cursos preparatórios criados por iniciativa particular sem estar sujeita a programas oficiais ou a supervisão governamental.

  • Uma rede de aulas avulsas com professores pagos pelo governo, funcionando independentemente da supervisão do governo central que aos poucos iriam sendo aglutinados pelos governos provinciais no item seguinte.

  • Um sistema escolar primário e secundário próprio para cada província organizada pelo governo local, não necessariamente articulado com o ensino superior, este último organizado pelo governo central.

  • Um sistema escolar primário e secundário organizado pelo governo central em cada província, independente do sistema organizado pela província.

  • A não obrigatoriedade de freqüentar nenhum destes sistemas para ser admitido às faculdades de ensino superior.

16.

Este era o quadro, bastante complicado, do que deveria passar a existir, em teoria, no sistema escolar brasileiro. O que aconteceu porém, na prática, foi algo bastante diverso.

O governo imperial arcou com a responsabilidade da manutenção dos cursos superiores então existentes e reduzidos. Mas quanto ao ensino primário e secundário, as diversas províncias, que eram no seu geral ainda demasiadamente pobres para organizá-los, ficaram entorpecidos como que em uma tácita esperança de que o governo central, ao qual era permitido pela lei que interviesse na instrução primária e secundária nas províncias, viesse em seu socorro.

O espírito do Ato Adicional, porém, era na realidade o espírito da descentralização. O que de fato a lei havia pretendido criar era a possibilidade de uma intervenção suplementar do governo central no campo primário e secundário e não criar dois sistemas paralelos de ensino. Embora a lei não declarasse isto explicitamente, a responsabilidade do ensino primário e secundário deveria ser em primeiro lugar das próprias províncias. Por causa disto, e talvez também por falta de recursos, o governo central nunca chegou a intervir maciçamente no ensino primário e secundário a não ser no município do Rio de Janeiro.

17.

Em relação especificamente ao ensino secundário no município do Rio de Janeiro, o governo imperial limitou-se a estabelecer o Colégio Pedro II, o qual, num curso de sete anos de duração, correspondia aproximadamente ao que depois veio ser o ginásio e o colégio.

O Colégio Pedro II gozava de uma série de regalias; os alunos que nele concluíam o curso formavam-se diante do Ministro do Império perante quem prestavam juramento solene; freqüentemente o Imperador também estava presente à cerimônia. Recebiam como título o grau de bacharel em letras, embora a instituição não fosse de nível superior. E, ademais, podiam entrar imediatamente os alunos formados pelo Colégio Pedro II em qualquer outro curso de nível superior sem necessidade de prestar outros exames.

18.

Apesar da formatura no Colégio Pedro II permitir o livre ingresso a qualquer instituição de nível superior, poucos, aliás, pouquíssimos, eram os alunos que completavam o curso de sete anos. O motivo disto estava em que para o ingresso às faculdades não era necessário comprovar-se a freqüência nem do curso secundário nem do primário, bastando a realização dos exames preparatórios parcelados. Como a formação no Colégio Pedro II era exigente, a maioria, mais exatamente, a quase totalidade dos alunos, conseguia a aprovação nos exames parcelados sem precisar concluí-lo e, obtendo-a, não havia mais interesse em concluir-se o curso.

19.

Na segunda metade do Império começaram a surgir um punhado de estabelecimentos particulares de ensino secundário e algumas poucas escolas de formação para o Magistério.

Estando o quadro assim configurado, perto do fim da época imperial, começaram a surgir sinais de que a sociedade estava começando a amadurecer para o problema educacional. Dizemos que a sociedade imperial parecia estar amadurecendo para o problema educacional porque por esta época já estava consolidada a unidade nacional do ponto de vista militar, uma série de outros problemas mais preementes estavam solucionados ou em via de solucionar-se, a abolição da escravatura já estava à vista e podia-se pensar mais serenamente na educação brasileira.

20.

Quatro sinais são particularmente marcantes no sentido de parecerem evidenciar que, no fim do Império, estava para vir à tona o problema educacional.

21.

O primeiro foi uma discussão mais profunda sobre a necessidade da criação de uma Universidade no Brasil.

Tal tema foi estudado pelo Prof. Roque Spencer Maciel de Barros no livro "A Ilustração Brasileira e a Idéia de Universidade".

22.

O segundo foi a convocação do Primeiro Congresso Nacional de Educação para o ano de 1883.

Foram convocados educadores e outras autoridades interessadas nos problemas educacionais de todas as partes do Brasil; seus pronunciamentos foram enviados antecipadamente para o Rio de Janeiro, mas o Congresso não chegou a realizar-se. A professora Teresinha Colliquio da Facudade de Educação da USP conseguiu recentemente recuperar da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro a coleção dos trabalhos que iriam ser apresentados. Cópias do texto, por sinal consideravelmente grande, estão disponíveis na biblioteca da FEUSP, mas toda esta documentação até hoje não foi publicada.

23.

O terceiro foi a apresentação de dois projetos de reforma das leis de ensino, em 1882 e 1883, ambos estudados e comentados na época pôr uma comissão presidida por Rui Barbosa, cujos pareceres são na realidade um extenso tratado sobre o problema educacional do Brasil da época.

Embora tais pareceres primem pelas suas qualidades literárias, o fato é que também, debaixo deste aspecto à primeira vista estético-lingüístico, parece se esconder uma análise que tem mais objetividade do que Fernando de Azevedo parece querer admitir na na sua obra que é uma das referências para este assunto, "A Cultura Brasileira". Os pareceres foram tamém posteriormente estudados em um livro de Lourenço Filho intitulado "A Pedagogia de Rui Barbosa". As diretivas, porém, traçadas nesta época do Império por Rui Barbosa, não chegaram a serem discutidas em plenário.

24.

Por causa disso, no ano seguinte ao da abolição da escravatura, e talvez para agilizar as transformações que já se viam à vista, alguns meses antes da Proclamação da República, sua Majestade, o Imperador do Brasil, na última sessão havida do Parlamento Imperial, realizou um impressionante discurso. Este discurso seria o quarto dos sinais a que nos referíamos. Neste, que foi o Discurso da Fala do Trono de 3 de maio de 1889, Dom Pedro II solicitava o seguinte de todo o governo brasileiro:

  • A criação de um Ministério da Educação, pois até aquela época não existia nada semelhante na organização de nosso Estado;

  • A fundação de uma rede de escolas técnicas no território nacional;

  • O estabelecimento de duas Universidades no Brasil, uma ao Norte do Império, e outra ao Sul;

  • O estabelecimento de outras faculdades isoladas nas demais províncias que não visassem apenas ao preparo para as profissões liberais, mas também ao cultivo das ciências e letras, vinculadas às duas universidades a serem fundadas.

  • O Imperador ainda chamava a atenção da necessidade de alicerçar este sistema de ensino superior sobre a instrução primária e secundária, até então bastante precária no Império.

25.

Foi, então, proclamada a República, e vinha junto com ela o ideal republicano descrito por Jorge Nagle na "Educação e Sociedade na Primeira República":

"O sonho da República,
espargindo as luzes da instrução
por todo o povo brasileiro
e democratizando a sociedade".

26.

Nada disso, porém, aconteceu.

Com a República instalou-se a corrupção e a fraude eleitoral generalizada em proporções hoje inteiramente inimagináveis, mesmo para quem nasceu em território brasileiro, se não forem consultados os anais da história. O problema da educação, que começava a aflorar no fim do Império, caiu no esquecimento quase total. Foi criado um Ministério da Educação, é verdade, mas que durou apenas dois anos, pois na realidade havia sido criado mais para impedir que Benjamin Constant se tornasse o Ministro da Guerra do que por outro motivo. Benjamin Constant havia sido professor da Academia Militar; havia sido ele que na manhã do dia 15 de novembro quem tinha pressionado o Marechal Deodoro da Fonseca, ainda indeciso, a proclamar a República; era um famoso propagador da Filosofia Positivista e um candidato natural para ocupar a pasta de Ministro da Guerra; mas, se fosse criado um Mistério da Educação, não haveria ninguém mais indicado do que ele para ocupar o novo ministério. Criou-se-o, então, para que se deixasse livre o Ministério da Guerra. A falta de visão com que o novo Ministério foi criado notava-se já pelo seu nome: possuía o título de Ministério da Educação, Correios e Telégrafos, sendo que o orçamento da parte referente aos Correios e aos Telégrafos era superior à parte que estava destinada à Educação. Dois anos depois, esta Ministério era extinto, e a Educação passou a fazer parte dos atributos do Ministro da Justiça.

27.

Deste e de outros descasos para com o problema educacional durante a Primeira República proveio uma frase perdida no livro "A Cultura Brasileira" de Fernando de Azevedo. Esta frase, apesar de não ser um parágrafo isolado nem um início de parágrafo, não obstante não constar de nenhum destaque tipográfico, é tão impressionante que já a vimos citada, sempre a mesma, em pelo menos seis outras publicações diversas, além de ter-nos causado uma profunda impressão já em sua primeira leitura:

“Do ponto de vista cultural e pedagógico,
a República foi uma revolução que abortou e que,
contentando-se com a mudança do regime,
não teve o pensamento ou a decisão
de realizar uma transformação radical no sistema de ensino,
para provocar uma renovação cultural
das elites culturais e políticas,
necessárias às novas instituições democráticas”.

28.

Ademais, segundo Jorge Nagle, o espírito republicano, formado e estimulado pelas lutas ideológicas travadas contra o Império, foi-se esfriando gradualmente durante os primeiros 30 anos da implantação do novo regime. Então, aos poucos, após a Primeira Guerra Mundial, continua Nagle,

“parece que os velhos sonhos do republicanismo histórico
voltam a perturbar a mente dos republicanos quase desiludidos:
a conseqüência deste estado de espírito
foi o aparecimento de amplos debates
e freqüentes reformas da escolarização”.

Iniciou-se, na década de 1920, um período de entusiasmo geral pela educação e de otimismo pedagógico. Tal fenômeno é analisado na segunda parte da obra de Nagle "Educação e Sociedade na Primeira República".

29.

Nesta época, num relatório da Liga Nacionalista de São Paulo podia-se ler o seguinte:

"É sabido que a causa primordial
de todos os nossos males
é o analfabetismo,
que traz como conseqüência inevitável
a ausência de cultura cívica e política,
a ignorância dos preceitos higiênicos,
a incapacidade para grande número de profissões,
atraso nos processos agrícolas
e nos das indústrias que lhe são anexas.
A população brasileira é vítima,
na sua quase totalidade,
do analfabetismo.
Sem que se consiga derramar a instrução primária,
de um modo mais intenso,
por todos os recantos do país,
serão inúteis quaisquer tentativas de formação
de uma grande coletividade política.
Ademais, a Constituição Federal,
no seu artigo 70,
impede o analfabeto de ter vontade política".

30.

Ademais, um dos planos da Revolução de 1924 era, assim que fosse tomado o poder, coisa que não veio a acontecer, impor uma nova constituição ao Brasil em que, em um dos seus primeiros artigos figurava o seguinte:

"A direção suprema do País será confiada,
provisoriamente,
a uma Ditadura cujo governo se prolongará
até que 60% dos cidadãos maiores de 21 anos
sejam alfabetizados".

31.

Continua Nagle:

“Uma das mais significativas formas
de padrão de pensamento educacional,
na década de 20,
foi a de considerar a escolarização como problema vital,
pois da solução dele dependeria o encaminhamento adequado
dos demais problemas da nacionalidade.
Isso não significa
que não fossem percebidas muitas outras questões:
era impossível deixar de perceber os problemas
de natureza política, econômica e social
que caracterizavam de maneira tão profunda
o terceiro decênio deste século
e colocavam o país em situação de crise.
E não deixaram de ser percebidos.
No entanto, perdiam a primazia
para os problemas especificamente educacionais,
desde que na solução destes se encontrava a chave
para resolver aqueles.
Julgava-se que os empecilhos
à formação de uma sociedade aberta
se encontravam, basicamente,
na grande massa analfabeta da população brasileira,
em primeiro lugar,
e no pequeno grau de disseminação
da instrução secundária e superior,
que impede o alargamento na composição das elites
que conduzem o país.
À medida em que se torna a instituição mais importante
do sistema social brasileiro,
a escola primária se transforma
no principal ponto de preocupação
de educadores e homens públicos:
procurou-se em especial mostrar o significado
profundamente democrático da educação primária,
pois é por meio dela que a massa
se transforma em povo”.

Até aqui Jorge Nagle.

32.

Tal modo de encarar o problema da educação no foco da problemática nacional na década de 20 é surpreendente. Hoje em dia, a não ser que se leia propositalmente a história da educação no período, não se é capaz de se supor que houve época no Brasil em que tenha-se chegado a pensar assim.

Infelizmente a euforia não durou muito tempo. Como ela, entretanto, só se apagou após o fim da Primeira República, não será objeto deste trabalho a exposição de como isto veio a se dar.

33.

O que vamos relatar agora são os fatos concretos que se deram debaixo deste clima de euforia que acabamos de descrever, ocorrido no fim da Primeira República.

34.

Conforme tínhamos visto, durante o império ficava ao cargo do governo imperial a organização do ensino superior em todo o território nacional; cada província podia organizar seu sistema de educação pública e secundária ao mesmo tempo em que na mesma província o governo central poderia organizar outro sistema paralelo de educação primária e secundária independente do provincial; ademais, como não havia obrigatoriedade de passar por estes cursos para o ingresso às faculdades, existiam também os cursos preparatórios e um punhado de estabelecimentos de ensino autônomos particulares, após ou durante os quais o aluno poderia prestar os exames parcelados que valiam como certificado de estudos secundários e davam acesso às faculdades.

35.

Com o advento da República, pela Constituição de 1891 à qual se acrescentava a Lei de 20 de novembro de 1892, este quadro passou a ser o seguinte:

  • No Distrito Federal competia ao Governo Federal o ensino superior e secundário, e à Prefeitura o ensino primário;

  • Os estados podiam organizar seus próprios sistemas de ensino primário, secundário e superior;

  • Em cada Estado o Governo Federal podia organizar seu próprio sistema de ensino secundário e superior.

36.

Para complicar ainda mais a situação, a legislação e a organização do sistema federal de ensino era, de acordo com a Constituição, atribuição do Congresso Nacional e não do Poder Executivo. Na prática, porém, quem sempre legislou e organizou em matéria de educação foi o poder executivo, sob delegação do Congresso Nacional. Veremos adiante os problemas que isto veio a causar.

37.

Apesar da legislação e organização do sistema escolar federal competir ao Congresso e não ao Poder Executivo, durante toda a Primeira República foi o poder executivo que se encarregou dos problemas da educação no Brasil. Mas como isto tinha que ser feito sob delegação do Congresso Nacional e esta delegação podia ser retirada a qualquer momento, ou mais ainda, podia na prática ser anulada ou modificada em seus resultados por decretos complementares em matéria educacional emanados pelo Congresso, isto fêz com que, durante toda a Primeira República a posição do Governo Federal quanto ao problema da educação fosse uma posição conservadora. O entusiasmo pedagógico que dominou a sociedade brasileira depois da Primeira Guerra Mundial durante a década de 20 não alcançou a administração federal senão indiretamente.

38.

A mesma coisa não vale para as administrações estaduais.

A partir de 1920 a febre do otimismo pedagógico começou a tomar conta dos principais governos estaduais do Brasil, o que provocou uma série de reformas de ensino em vários estados da União. Embora, porém, cada Estado pudesse organizar um sistema completo de ensino desde o primário até o superior, tais reformas se limitaram sempre à estrutura do ensino primário e normal, porque todo o ensino superior estava na época no âmbito do Governo Federal, e o ensino secundário, por não ser obrigatório para a admissão aos cursos superiores, não passava de uma rede de cursos preparatórios, com exceção do Colégio Pedro II no Rio de Janeiro, que com a República havia mudado de nome para Ginásio Nacional, e alguns colégios religiosos. Mesmo estes, na prática, não podiam fugir do espírito dos preparatórios.

39.

As principais reformas que forma levadas a efeito na década de 20 foram as seguintes:

  • Em 1920, em São Paulo, por Sampaio Dória.

  • Em 1922, no Ceará, por Lourenço Filho, comissionado ao governo do Ceará pelo Estado de São Paulo;

  • Em 1927, em Minas Gerais, por Francisco campos;

  • Em 1928, no Distrito Federal, por Fernando Azevedo, vindo de São Paulo a convite da Prefeitura do Rio de Janeiro;

  • Em 1928, na Bahia, por Anísio Teixeira.

40.

Os responsáveis pela série de reformas estaduais ocorridas na década de 20 tiveram, para ajudá-los no empreendimento, vários fatores concorrendo a seu favor, o primeiro deles sendo o próprio clima de euforia pedagógica que tomou conta da sociedade brasileira depois da Primeira Guerra Mundial; também veio a favor deles o início do surto industrial que pressionava por uma nova direção do ensino; e a introdução no Brasil das idéias da escola Nova, em cujas teorias se inspiraram os reformadores.

41.

As doutrinas educacionais da Escola Nova vinham há séculos se desenvolvendo na Europa, mas só entraram em toda a sua força na sociedade brasileira na época do entusiasmo pedagógico do fim da Primeira República, em boa parte por obra de estudiosos tais como Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho, que figuraram também na lista dos reformadores estaduais.