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Sobre a graça diversos pensam diversamente. Alguns
dizem Deus não poder fazer senão aquilo que faz, o que,
porém, consta com certeza não ser verdade.
Outros dizem que há nesta pessoa alguma virtude
seminal, à qual chamam de raiz da caridade, pela qual este se
torna apto para que, pela graça que lhe é concedida, mereça a
vida eterna, e que aquele que não a possui não pode merecer
nem a caridade nem a vida eterna. Esta posição, porém, é
contrária a todo o ensinamento da Igreja, pelo que deve ser
abandonada.
Outros dizem que Deus de modo comum propõe a sua
graça a todos e que, aqueles que a apreendem, estes se
salvam; os que, porém, não a apreendem, são condenados. Seria
como se alguém tendo preparado em uma torre um bom alimento
para ti e dissesse: "Sobe aqui para tomares alimento". Tu,
porém, por não teres escada ou algum outro auxílio do gênero,
não podes subir; e por isso estes dizem que deve haver o
concurso de outra graça, para que possas subir àquela graça
superior. Mas novamente, para apreender esta será necessária
outra, e para apreender esta outra será necessária outra mais
ainda, e assim até o infinito. Os que defendem esta posição
atribuem tudo à graça, nada deixando ao mérito.
Há também outros que dizem que o homem deve
inclinar-se para a graça posposta para que ele possa
apreendê-la, sem cuja apreensão ele não poderá erguer-se.
Seria como se a alguém que esteja em um poço se lhe
estendesse uma corda, sem a qual não lhe seria possível sair
do poço. Se este homem se inclinar em direção à corda e a
segurar, será tirado do poço, de modo que nisto requereria-se
algo por parte do homem, ainda que o mérito não pudesse ser
sem a graça. Esta sentença, porém, divide entre o mérito e a
graça, de tal modo que algo de bom haveria ali do homem, isto
é, pelo menos que levantasse a mão e segurasse a corda, o
que, (na realidade, até mesmo isto) não se pode fazer sem a
graça. Por este motivo esta outra sentença também deve ser
evitada, juntamente com as anteriores.
Pode-se, porém, dizer que a graça de Deus é
proposta igualmente ao bom e ao mau, isto é, ao predestinado
e ao réprobo, a qual, todavia, um não a apreende e o outro,
trazendo-a, segue-a. Aquele, ao qual o raio da graça é
infundido, fecha os olhos e, deste modo, se repele o raio
pelo qual é tocado, merecidamente a graça lhe é subtraída,
porque ele mesmo se subtrai. Ocorre, de fato, com a graça,
algo como no raio do Sol quando penetra no olho. O olho
exerce a visão quando é tocado pelo raio do Sol; o olho é de
tal natureza que a visão é exercida por este raio se for por
ele tocado, sem o que não há visão no olho. Se o olho não
fosse de tal natureza, mesmo tocado pelo raio do Sol nada
veria, como ocorre com as paredes ou as pedras que nada vêem
mesmo que sejam copiosamente banhadas pelos raios do Sol.
Assim também a alma possui uma potência natural para merecer,
a qual, porém, não pode ser exercida se não for banhada pelo
esplendor da graça. Tocada, porém, por ela, move-se e merece.
De onde que tudo provém da graça, de tal modo, porém, que não
se exclui o mérito. Seria como o caso de uma criança que
ainda não pudendo caminhar fosse conduzida por alguém e
efetivamente então caminhasse, o que, porém, não poderia
fazê-lo por si mesma, nem também por meio de outro que a
conduzisse, se não possuísse uma potência natural para o
caminhar. Todavia, neste exemplo, se ela caminha, tudo é dito
proceder do que a conduz. Assim, para que a alma possa
merecer, duas coisas são exigidas, que são a graça e a
potência natural; mas toda a autoridade de merecer é apenas
da graça, porque a potência natural nada colocar sem a
graça.
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