Questão Quinquagésima Sexta.

Como pode o Apóstolo dizer que

"Deus há de dar a cada um
segundo as suas obras",

Rom. 2, 6

se as obras de um homem são boas enquanto sua intenção é má, e as obras de outro são más enquanto sua intenção é boa, e é pelo afeto que se impõe o nome à obra? Não é condenado pelas boas obras aquele cuja intenção é má, enquanto que se salva pelas más obras aquele cuja intenção é boa?

Solução.

Não é suficiente a intenção para que as obras sejam ditas boas, mas sempre é exigida que sejam boas para aquele que as faz. Se, de fato, as obras são boas em si, mas a intenção é má, o homem é punido pela má intenção, não pelas boas obras, nem será remunerado por elas, porque se lhe tornaram inúteis pela má intenção. Para que, porém, as obras lhe sejam más, não se exige a má intenção. A intenção pode ser boa ou má e existir em obras más; qualquer que for a intenção de uma obra má, causará esta dano ao que a fizer. O julgamento deve referir-se à intenção nas coisas que são indiferentes, isto é, nem boas nem más em si mesmas.



Questão Sexagésima

O Apóstolo afirma:

"Os que observam a lei
serão justificados".

Rom. 2, 13

Pergunta-se se o cumprimento da lei justifica, o que assim parece pelo que o doutor da lei perguntou ao Senhor:

"O que devo fazer
para possuir a vida eterna?"

E o Senhor lhe respondeu:

"O que está escrito?
Como lês?"

E ele:

"Amarás o Senhor teu Deus
de todo o teu coração
de toda a tua alma,
de toda a tua mente,
e o próximo como a ti mesmo".

E o Senhor lhe disse:

"Faze isto, e viverás".

Lc. 10, 25-28

Eis que, portanto, o cumprimento do mandamento da lei confere a vida eterna. De onde que se lê que a lei cumprida justifica (Rom. 2, 13). Do mesmo modo, em outra passagem, quando o jovem lhe disse:

"O que devo fazer
para possuir a vida eterna?"

O Senhor lhe respondeu:

"Honra teu pai e tua mãe,
não mates,
não furtes,
não cometas adultério,
não digas falso testemunho,
não cobices a esposa de teu próximo,
nem as suas coisas".

E o jovem lhe disse:

"Tudo isto
desde a minha juventude
observei".

O Senhor, então,

"Pondo nele os olhos, o amou",

o que não teria feito, se não tivesse sido justo pela observação dos mandamentos divinos. Quanto ao que Jesus acrescenta,

"Se queres ser perfeito,
vai, vende o que tens
e dá-o aos pobres;
e vem e segue-me",

Mt. 19, 21

isto pertence à perfeição da justiça. Assim também diz o Apóstolo Paulo:

"O mandamento da lei,
que era para a vida,
para mim foi para a morte".

Diz também o venerável Beda:

"A lei, observada em seu tempo,
não somente conferia os bens temporais,
mas também os eternos,
de onde que é manifesto
que a lei cumprida justifica".

Mas o Apóstolo assegura que a lei não conduziu ninguém à perfeição, dizendo que

"O homem não se justifica
pelas obras da lei;
se a justiça se obtém pela lei,
então Cristo morreu em vão".

Gal. 2,16; 2,21

Há também muitas outras passagens do Apóstolo onde ele reafirma o mesmo. Por este motivo alguns dizem que aqueles preceitos cujo cumprimento confere a justiça são os preceitos do Evangelho, embora estejam escritos na lei. Quem os cumpre se torna imediatamente um homem evangélico, não é mais um homem da lei. Estes também dizem que aqueles preceitos que são entendidos cumpridos na lei não justificam imediatamente, mas apenas tornam o homem idôneo a receber a fé de Cristo, somente pela qual recebe-se a salvação; dizem, de fato, que aquele que se mostra exteriormente amar a Deus e ao próximo, ainda que não ame interiormente com o coração, o quanto depende da lei este homem observa a lei, pois a lei impera sobre a mão, e não sobre a alma.

A esta solução pode-se contra argumentar que se pelo cumprimento destes preceitos realizado apenas exteriormente os homens se tornam dignos de receber a fé de Cristo a fé não é conferida pela graça, mas pelos méritos. Ademais, se os torna idôneos, como sabem que receberão? De onde que estes não parecem resolver convenientemente a questão colocada. Que perfeição maior, de fato, pode haver que amar a Deus de todo coração, e ao próximo como a si mesmo?

Por isso dizemos que o cumprimento dos mandamentos mencionados justifica imediatamente; não o faz, todavia, a lei que não é suficiente, mas enferma e sem a graça, para o seu cumprimento, a qual nem confere, nem demonstra abertamente a fé de Cristo, sem a qual não se cumprem os preceitos da lei. A lei demonstra, efetivamente, a pátria, mas não mostra o caminho pelo qual se deve ir, nem como, de onde que diz o Apóstolo:

"O homem não se justifica
pelas obras da lei".

Gal. 2, 16

Poderá, porém, alguém dizer que esta autoridade manifestamente contradiz a nossa solução. Não são, porventura, afirmações contrárias que a justiça proceda do cumprimento dos preceitos legais, como acima dissemos, e que ninguém seja justificado pelas obras da lei?

Solução.

O Apóstolo chama de obras da lei as que são apenas feitas pelo temor, que são preceituadas pela lei, pelas quais não há justiça. Deve-se notar que a lei é dita de muitos modos. Algumas vezes o livro de Moisés é chamado de lei, outras vezes as cerimônias e as observâncias legais, outras os dez mandamentos escritos em duas tábuas, outras o livro dos Salmos, outras ainda é chamada de lei qualquer observância, como quando se diz: `Esta é a lei desta ou daquela coisa'. A razão natural também é chamada de lei. No Novo Testamento a lei é tomada de muitos modos, como a lei da fé, a lei do espírito, a lei da graça, a lei da carne, a lei dos membros, a lei do pecado, a lei da morte.



Questão Octogésima.

Não parece ser verdade o que está escrito:

"Não há quem entenda,
nem quem busque a Deus",

Rom. 3, 11

pois muitos naquele povo possuem entendimento de Deus, isto é, sabiam ser Ele uno, criador e onipotente. Se dissermos que não entendiam porque não entendiam perfeitamente, assim também os homens da graça, porque ainda não entendem perfeitamente senão pela fé, também podem ser ditos não entenderem.

Solução.

Alguém pode ser dito não entendedor porque, ainda que conheça Deus na majestade, todavia não o conhece na humildade e na piedade. Ou também pode-se dizer que alguém não entende Deus perfeitamente porque, ainda que tenha alguma notícia, todavia não a possui pela experiência da caridade. Pode-se ainda dizer que alguém não entende Deus perfeitamente porque Ele não é apenas o Criador de todas as coisas, mas é também o autor de toda a justiça, o que os judeus não entendem. Constituindo eles mesmos a sua justiça, não se submetem à justiça de Deus. Ao contrário, de certo modo fazem-se Deus a si mesmos, ao dizerem ser justificados pela própria virtude sem a graça de Deus, afirmando serem os autores da justiça que Deus pode realizar. De onde que o Apóstolo diz:

"No Evangelho revela-se
a justiça de Deus,
não do homem".

E em outro lugar

"Agora a justiça de Deus manifestou-se
sem a lei".

Rom. 3, 21

E se algumas vezes lemos sobre a justiça do homem, como quando Davi freqüentemente diz "minha justiça", esta deve ser entendido ser justiça do homem enquanto recebida, e justiça de Deus enquanto dada.



Questão Octogésima Primeira
(segunda parte).

Pergunta-se sobre o que diz o Apóstolo:

"Está escrito:

`Não há nenhum justo,
não há quem tenha inteligência,
não há quem busque a Deus,
todos se extraviaram,
não há quem faça o bem'.

Ora, nós sabemos
que tudo o que a lei diz,
o diz para aqueles que estão na lei,
para que toda a boca seja fechada
e todo o mundo
seja digno da condenação diante de Deus,
porque pelas obras da lei
não será justificado nenhum homem
diante dEle.
Efetivamente, pela lei vem
o conhecimento do pecado".

Rom. 3, 10-20

Se toda a lei é dita para aqueles que estão na lei, como diz o Apóstolo, então todas as coisas que a lei diz se referem aos judeus, porque aos judeus é que foram ditas. No entanto, Davi e muitos outros que estavam na lei foram justos. Como pode entender-se, portanto, que se lhes aplique o que diz a lei quando afirma que não há nenhum homem justo, nem que tenha inteligência?

Solução.

Estar na lei designa duas coisas. A primeira é buscar a justiça que procede da lei, fundamentando-se inteiramente nela, como aqueles que a observam exteriormente pelo temor. Neste sentido Davi e os demais justos não estavam na lei. Não buscavam, de fato, justificar-se pela própria lei, mas pela fé no Cristo ainda futuro. Deste modo, eram homens do Evangelho, não da lei.

São ditos também estarem na lei aqueles aos quais a lei foi dada, e que fazem as obras da lei. Neste sentido Davi e os que se lhe assemelham estavam na lei, porque a lei lhes havia sido dada, e eles a guardavam por causa daqueles aos quais a lei era necessária, para que não desprezassem, pelo seu exemplo, a lei.

Deve-se notar que há três gêneros de homens: os homens da lei natural, os homens da lei escrita e os homens da graça. São ditos homens da lei natural aqueles que somente possuem a lei natural, sem que se lhes acrescente nada. Homens da lei escrita são aqueles aos quais foi dada a lei escrita, sem terem nada que se lhes haja acrescentado. Os homens da graça são aqueles aos quais foi dada a própria graça. Ou, dito de outro modo: são ditos homens da lei natural aqueles que procuram justificar-se pelas suas próprias forças; homens da lei escrita os que se apóiam na lei, julgando que a lei justifica; homens da graça são ditos aqueles que não de outro lugar, mas apenas da graça buscam a justiça e a salvação.



Questão Octogésima Sexta.

Pergunta-se por que a lei não justifica, se manifesta o pecado? O que mais faz o Evangelho senão manifestar o pecado, ensinando o que deve ser seguido e o que deve ser evitado, o que também e lei o faz? Ademais, há quem queira provar que a lei também conduz à perfeição por meio das palavras do Senhor que, referindo-se ao preceito da lei, respondeu ao adolescente:

"Faze isto e viverás".

Lc. 10, 28

E também:

"Amarás o Senhor teu Deus
de todo o teu coração,
de toda a tua alma,
de todo o teu espírito".

Mt. 22, 37

Ora, este é um preceito da lei; observado, porém, ele justifica. Portanto, a lei conduz à perfeição.

Ademais, diz também São Beda:

"A lei, observada em seu tempo,
não apenas conferia as coisas temporais,
mas também as eternas".

Solução.

Para que possamos dar uma resposta a todas estas questões dizemos que é dita lei o mandamento sem a graça, o qual nunca confere a salvação. O Evangelho, porém, é dito o mandamento com a graça, o que justifica, e conduz à vida eterna.



Questão Nonagésima Quarta.

Pergunta-se em que o poder do demônio diminuíu pela morte de Cristo. De fato, assim como antes o demônio tinha o poder de tentar bons e maus, assim também agora.

Solução.

Não diminuíu segundo a essência, mas segundo a eficácia, porque não pode prevalecer tanto quanto antes, principalmente porque foram dadas ao dadas ao homem forças para resistir, o quanto mais forte é o homem para resistir, tanto mais débil é o inimigo para impugnar.



Questão Nonagésima Quinta.

O Apóstolo afirma que

"A justiça de Deus é pela fé em Jesus Cristo
sobre todos os que crêem.
Não há distinção,
porque todos pecaram e necessitam
da glória de Deus,
justificados gratuitamente
pela sua graça por meio da redenção
que está em Jesus Cristo,
para manifestação de sua justiça
por causa da remissão
dos delitos passados".

Rom. 3, 22-25

Pergunta-se a respeito dos antigos justos, que eram retidos no inferno, se os seus pecados lhes haviam sido remidos pela fé e pelo arrependimento. Se seus pecados haviam sido remidos, por qual motivo eram retidos no inferno? Se não haviam sido remidos, por outro lado, então não eram justos, pois não há justiça sem remissão dos pecados.

Solução.

Todos os pecados haviam-lhes sido remidos, pela fé e pelo amor, mas não haviam alcançado ainda todos os efeitos da remissão. Dois são os efeitos da remissão, carecer da pena e fruir da glória. Destes somente possuíam o primeiro antes da morte de Cristo, pois não sofriam a pena atual ao mesmo tempo em que não haviam recebido a glória, pois não viam a Deus.

Pode-se, porém, objetar que, se eram justos, eram também dignos da glória. Por que não se lhes dava, portanto, aquilo de que eram dignos? Solução: sua justiça não era tanta que fosse suficiente para obter a vida sem a morte de Cristo, nem tampouco seus pecados haviam-lhes sido remidos absolutamente, mas sim sob uma certa expectativa e promessa do Cristo futuro que satisfaria por eles. De onde que o Apóstolo diz que Cristo morreu não somente pela remissão dos delitos presentes, mas também dos passados. Pois

"Ele próprio é o Cordeiro
que foi sacrificado
desde a origem do mundo".



Questão Nonagésima Sexta.

Pergunta-se se Deus poderia punir os justos antigos com a pena eterna, mesmo sendo eles justos. E também, se Deus não pode punir os justos com justiça, pois o que é injusto Deus não pode fazê-lo e, portanto, não poderia punir os justos antigos, como pôde retê-los no inferno?

Solução.

Era necessário que se satisfizesse pelo pecado original, e como eles não poderiam satisfazer a não ser que outro por eles satisfizesse, Deus pôde puní-los com justiça. Não é necessário, todavia, conceder que estivesse punindo os justos. Isto o seria após a morte de Cristo; eles não eram, efetivamente, justos absolutamente, mas suposta a morte de Cristo. Não possuíam tanta justiça atual pela qual poderiam exigir com justiça a vida eterna, assim como também nem nós o poderíamos sem a morte de Cristo; a Escritura chama-os de justos porque tanto possuíam quanto Deus exigia, e aquilo que lhes faltasse, Cristo haveria de suprí-lo.



Questão Nonagésima Sétima.

Diz o Apóstolo:

"Onde, pois, está a tua glória?
Foi excluída. E por que lei?
Pela das obras?
Não, mas pela lei da fé".

Rom. 3, 27

Pergunta-se por que a Lei de Moisés é dita lei escrita e lei das obras, e não o Evangelho. O Evangelho, de fato, é chamado de lei da graça e lei da justiça. Mas assim como a de Moisés tem obras, assim também a do Evangelho.

Solução.

A lei de Moisés é dita lei das obras porque apenas ordena as coisas que devem ser feitas, não conferindo a graça pela qual cumprem-se as coisas que são ordenadas. Por isso o mandamento sem a graça e chamado de letra que mata. O Evangelho, porém, ordena o que deve ser feito mas, além disso, confere a graça, pela qual cumprem-se as coisas que são ordenadas.

Ou também (pode-se dizer que) a lei escrita é chamada lei das obras porque os homens da lei constituíam toda a sua justiça nas obras da lei. A lei da fé ou da graça, porém, é assim chamada porque os homens da graça constituem toda a suma e a eficácia da sua salvação apenas na graça, sabendo que assim como ninguém é salvo pela justiça das obras, assim também ninguém é justificado pelas obras da justiça. Não é a justiça, de fato, que provém das boas obras, mas são as boas obras que provém da justiça.



Questão Nonagésima Nona.

Pergunta-se se as obras que precedem a fé são inteiramente inúteis, ou se para algo aproveitam. Parece, de fato, que para nada aproveitam, porque toda a vida dos infiéis é pecado.

Solução.

As boas obras, realizadas antes da fé, ainda que não aproveitem para merecer a vida, aproveitam, todavia, para recebê-la, como pareceu a alguns e como fica manifesto no centurião Cornélio.



Questão Centésima Primeira.

Diz o Apóstolo:

"Que diremos, pois,
ter obtido Abraão,
nosso pai segundo a fé?
Que diz a Escritura?

`Abraão creu em Deus,
e lhe foi reputado para a justiça'".

Rom. 4, 1-3

Pergunta-se por que diz a Escritura "foi reputado", como se não fosse verdadeira justiça a que ele tinha pela fé, mas algo que lhe foi reputado para a justiça. Se, de fato, tu me deves um cavalo, não posso dizer convenientemente:

"Dá-me um cavalo,
e eu o reputarei por um cavalo".

Porém, corretamente poderia dizer:

"Dá-me um jumento,
e eu o reputarei por um cavalo".

Solução.

Se o homem não tivesse pecado, teria tido a justiça, que consiste no cumprimento integral dos preceitos de Deus, de tal modo que não teria concupiscência de nada contra a razão e amaria a Deus de todo o coração. Mas, depois do pecado, e por causa do pecado, o homem não pode possuir a perfeita justiça, a cujo mérito é devida a eterna bem aventurança. Deus, porém, pela sua graça concede ao homem a fé, a qual, também, pela mesma graça lhe é reputada por aquela perfeição, como se por esta possuísse a perfeição da justiça.



Questão Centésima Terceira.

Diz o Apóstolo:

"Ao que não opera, mas crê
naquele que justifica o ímpio,
a sua fé lhe é reputada como justiça,
segundo o propósito da graça de Deus".

Rom. 4, 5

Aqui costuma-se perguntar sobre a graça e o mérito. Tudo parece proceder da graça, e que o mérito nada confere; ou, se algo procede do mérito, então nem tudo procede da graça. Ora, que tudo provenha da graça é algo atestado pelas Escrituras. Por isto é que diz o Apóstolo:

"O que tens tu,
que não recebeste?"

1 Cor. 4, 7

"Pela graça sou o que sou".

1 Cor. 15, 10

E também:

"Todos nós participamos de sua plenitude,
e graça sobre graça".

Jo. 1, 16

O que, portanto, deve-se dizer? Dizer que o mérito não é nada é o erro dos Maniqueus, assim como afirmar tudo provir do livre arbítrio é o erro dos Pelagianos.

Solução.

Dizer que tudo procede da graça não exclui o mérito, pois o mérito provém da graça. Por isso deve-se ver o que a graça de Deus opera em nós sem nós e o que opera em nós mas não sem nós.

A graça preveniente, que também é dita graça operante, sana o livre arbítrio, libertando-o do jugo do pecado, e isto ela opera em nós sem nós. A partir daí a vontade, já sanada, não é ociosa, nem recebe a graça de Deus em vão; o que ela opera não o opera por si, mas com a graça, ou melhor, a graça de Deus coopera com o livre arbítrio; por isso é que é dita graça cooperante e a própria obra ou mérito é dita ser procedente da graça e da vontade. De fato, não operam separada mas simultaneamente. De onde que, ainda que tudo proceda da graça, não se segue que nada proceda do mérito ou do livre arbítrio. Pode-se fazer a seguinte comparação: se alguém, encontrando uma criança caída num lamaçal e incapaz de erguer-se, a levantasse e então a segurasse pela mão para que caminhasse, o caminhar proviria de ambos, mas o ato de levantar-se teria provindo apenas de quem a encontrou e não da criança. Assim procede apenas da graça preveniente que queiramos o bem, e procede da graça subseqüente, não dela apenas, mas também do livre arbítrio, sanado e libertado pela graça, que operemos o bem.



Questão Centésima Oitava.

Diz o Apóstolo:

"Abraão, contra a esperança,
creu na esperança de que seria
pai de muitas gentes,
segundo o que lhe foi dito:

`Assim será a tua descendência'.

Sem vacilar na fé, não considerou
o seu corpo amortecido,
nem o seio de Sara, já sem vida.
Não hesitou com desconfiança,
conhecendo plenissimamente
que Deus é poderoso para cumprir
o que prometeu;
por isso lhe foi reputado
para a justiça".

Rom. 4, 18-22

Pergunta-se sobre a fé de Abraão, que o Apóstolo louva nesta passagem, que lhe foi reputada para a justiça: que fé é esta, ou de que coisa ela foi? De fato, se considerarmos diligentemente as palavras do Apóstolo e do Gênesis, parece que a fé que foi reputada a Abraão para a justiça foi a fé pela qual ele creu em Deus ter-lhe prometido uma prole. Ora, se isto é assim, há alguma fé além da fé em Cristo que é fé justificante. Pode-se responder que Abraão então já possuía a fé em Cristo; neste caso porém cabe perguntar-se se ambas estas fés justificam, ou por qual motivo a justiça é dita proceder mais daquela do que desta.

Solução.

O Apóstolo louva a fé de Abraão, pela qual ele acreditou em todas as coisas que deveriam ser acreditadas, fé pela qual entre outras coisas ele acreditou ser Deus verdadeiro na promessa da prole.



Questão Centésima Vigésima.

Diz o Apóstolo que Abraão

"não hesitou com desconfiança,
conhecendo plenissimamente
que Deus é poderoso para cumprir
o que prometeu".

Rom. 4, 21

Diz o comentarista que Abraão sabia Deus ser onipotente por uma grande visão da divina virtude. O Apóstolo afirma que "ele conhecia plenissimamente que Deus é poderoso". Tudo isto parece contradizer a fé, porque a fé não possui mérito para quem a razão humana fornece a experiência. Ademais, se Abraão sabia ser ele Deus, que há de extraordinário que cresse ser Ele onipotente? Ou, se ele não sabia tratar-se de Deus, como poderia crer nEle?

Solução.

A visão da divina virtude que Abraão teve não provinha da razão humana, mas da constância da fé, e por ela teve tanta certeza como se o conhecesse ou o visse plenissimamente.