Hugo de São Vitor


ANOTAÇÕES À
EPÍSTOLA AOS ROMANOS

- Questões Escolhidas -



Introdução.

Paulo é nome próprio junto aos hebreus, aos gregos e aos latinos, sem ter, todavia, o mesmo significado. Para os hebreus significa "admirável" ou "eleito"; para os gregos significa "quieto"; para os latinos significa "pequeno". Este nome foi dado com propriedade a Paulo por causa das duas ou três virtudes que estas significações sugerem.



Questão Primeira.

Pergunta-se como Paulo seja dito servo, se ele próprio diz em outro lugar:

"Vós não recebestes
o espírito de servidão
para estardes novamente com temor".

Rom. 8, 15

E também:

"Portanto,
já nenhum de vós é servo,
mas filho".

Gal. 4, 7

E o Senhor, no Evangelho:

"Já não vos chamo mais de servos,
mas de amigos".

Jo. 15, 15

Por acaso Paulo não era amigo?

Solução.

Dois gêneros de temor fazem dois gêneros de servos, a saber, o temor servil e o tenor filial. Paulo era servo pelo temor filial, e não pelo servil. Esta servidão não reduz a liberdade ou a amizade, mas, ao contrário, a estabelece.



Questão Terceira.

Como se realizou a própria Encarnação?

Solução.

Digo que o próprio Verbo de Deus se fêz carne, isto é, homem. Todavia, não sofreu mutação, nem se converteu em homem ou em carne, mas se revestiu de carne para que se manifestasse aos homens. Esta união se realizou de tal modo que nem a natureza divina se mudou em humana nem a humana se mudou em divina, nem uma nova natureza ou uma nova pessoa se fêz a partir de duas naturezas. As duas naturezas, porém, se uniram inefavelmente em Cristo de tal modo que o assumente conferisse pela graça ao assumido tudo o que possuísse por natureza e tudo o que fosse assumido pela natureza se tornasse do assumente pela dignação. De onde que o todo é dito Deus, o todo é dito homem, e vice versa o homem Deus e Deus homem, o que nas substâncias dos homens não ocorre.



Questão Quarta.

Como na Encarnação o todo é dito Deus e o todo é dito homem, se estas duas naturezas não são partes daquela pessoa?

Solução.

Diz-se isto por semelhança, porque as duas naturezas são unidas em Cristo como partes no todo, mas diversamente. De fato, a pessoa de Cristo não possui ser pela união da humanidade com a divindade, como o todo possui ser pela conjunção das partes. A pessoa de Cristo não possui novo ser pela união de ambas as naturezas. Estas naturezas não são partes da pessoa, o que é manifesto por uma delas poder ser predicada da pessoa, como quando se diz (cf. nota 1):

"Cristo é a natureza divina".

Da mesma forma, os nomes das naturezas se predicam entre si, como quando se diz:

"Deus é homem",

e também (cf. nota 2):

"o homem é Deus",

o que não ocorre no todo integral e em suas partes.



Questão Sexta.

O que não ocorre na substância do homem, que ocorre nas substâncias de Cristo?

Solução.

No homem nem a carne é a alma, nem a alma é a carne, nem o homem é a carne ou a alma, como Deus é homem ou o homem é Deus, e Cristo é ambos. Isto ocorre porque a união entre Deus e o homem é maior do que a união entre a carne e a alma. De fato, a alma unida à carne não lhe confere tudo o que ela possui por natureza, a carna não sendo capaz de muitas coisas que são da alma, assim como Deus unido ao homem se infunde todo nele.



Questão Décima Nona.

Se o homem assumido é Deus.

Solução.

Muitos dizem que não, aos quais a autoridade contradiz abertamente. Diz, de fato, o Apóstolo, que em Cristo

"habita a plenitude da divindade".

Col. 2, 9

E Santo Ambrósio diz:

"Tudo o que possui o Filho de Deus
pela natureza,
também o possui o Filho do homem
pela graça".

Também o diz o Senhor, falando de si mesmo:

"Foi me dado todo o poder,
no Céu e na Terra".

Mt. 28, 18

Se possui a onipotência, é onipotente; se é onipotente, é Deus. Também São João Apóstolo diz dEle que

"Deus não lhe dá o Espírito
por medida".

Jo. 3, 34

Ora, segundo aqueles que negam que o homem assumido seja Deus, ter-lhe-ia sido dado o Espírito por medida, já que não possui tudo o que possui o Verbo, ao qual está unido pessoalmente.



Questão Vigésima.

Se este homem, sendo onipotente, pode perdoar os pecados.

Solução.

Este homem pode perdoar os pecados, não porque homem, mas porque Deus, assim como pode reduzir o mundo ao nada, se o quisesse.



Questão Vigésima Primeira.

Se a criatura não se iguala ao Criador, se a alma de Cristo, ou o homem assumido possui pela graça tudo aquilo que Deus possui por natureza.

Solução.

Não há igualdade da criatura para com Deus, porque uma coisa é ser a sabedoria, outra coisa é saber pela sabedoria; uma coisa é possuir algo pela natureza, outra pela graça.

Ao que pode objetar-se:

Se se afirma que tudo o que o Verbo possui por natureza, o homem possui pela graça, o Verbo possui a eternidade pela natureza, portanto o homem a possuiria pela graça e, se isto é assim, o próprio homem seria eterno.

Solução.

A expressão eterno denota negação. É propriamente dito eterno aquilo que sempre foi e nunca começou a ser. De onde que, porque eterno não predica de modo simples pessoa de natureza divina, mas também designa tal negação, o homem não deve ser dito eterno. Ou pode também dizer-se que aquele homem é o Deus eterno, mas não um homem eterno.