30.

Miscelâneas, L.V, tit.62.

"Amigo, empresta-me três pães".

Luc. 11, 5

O amigo é quem fala ao amigo e em favor do amigo. O nosso amigo é o filho pródigo que vem pelo caminho, voltando da uma região distante trazendo consigo três pães para a refeição.

Diz ele ao pai:

"Dá-me a parte dos bens
que me toca".

Luc. 15, 12

Tendo-a recebido, dirigiu-se como peregrino a uma terra distante, por um caminho sem fim, um trabalho sem repouso, um movimento sem estabilidade e uma corrida sem destino.

Sua porção consistiu de três coisas: a MEMÓRIA, a razão e a vontade. A MEMÓRIA tendia apenas para as coisas de Deus. A razão investigava a sua profundidade com olhos perspicazes. A vontade, triunfando sobre o terreno, apetecia o celeste. A MEMÓRIA se estreitava sumamente às coisas verdadeiras. A razão discernia o que havia de bom e de melhor. A vontade escolhia aquilo que era singularmente ótimo.

Recebidos estes bens, o filho se afastou do pai fugindo por três noites. A primeira noite foi o caminho pelo qual abandonou a Deus criador; a segunda, aquela pela qual passou a apetecer algo além de Deus; a terceira, aquilo pelo qual encontrou o repouso em coisas estranhas e fora de Deus. Primeiro, afastando-se de Deus, foi ao encontro de si mesmo. Depois, descendo abaixo de si próprio, deleitou-se na carne. Finalmente, já conduzido para fora de si, passou a deliciar-se com imagem das coisas. A primeira noite consistiu em gloriar-se da virtude, a segunda em deleitar-se nos vícios, a terceira em consolar-se no que é meramente transitório.

Consumado todo o caminho, no primeiro ano dilapidou os bens da MEMÓRIA de três modos: pelos pensamentos afetuosos, pelos onerosos e pelos ociosos. Afetuosos pela ocupação com o que é servil, onerosos pela solicitude com o que é exterior, ociosos pela divagação no que é inútil.

No segundo ano dissipou os bens da razão de três modos, tomando o mal como bem, o falso pelo verdadeiro e o veneno como comodidade. Tomou o mal como bem porque perdeu a ética, tomou o falso como verdadeiro porque perdeu a lógica e, finalmente, tomou o veneno como comodidade ao perder a estimação natural.

No terceiro ano dissipou a boa vontade vivendo luxuriosamente, pelo incêndio de um fogo oculto, pela divagação do olho exterior e pela ambição de um mundo corrompido, isto é, pela luxúria no fedor, pela soberba no furor e pela avareza no fervor.

Depois que ter consumido tudo, ao iniciar-se uma grande fome naquela terra iniciou-se também a sua indigência.

No quarto ano, caindo em si, disse para consigo mesmo:

"Levantar-me-ei

e irei ao meu pai".

Teve então que compensar pela fé primeiramente os danos causados à razão, pela esperança os danos causados à MEMÓRIA e pelo amor os danos causados à vontade.

A fé iluminou a razão de três modos: pelos preceitos, pelos sinais e pelas promessas. A esperança fortaleceu a MEMÓRIA também de três modos: pelo perdão, pela graça e pela glória. A caridade, finalmente, restaurou a vontade de três modos: pelo amor natural pelo qual amou ao próximo natural e racional tanto quanto a si mesmo, e pelo amor espiritual pelo qual amou a Deus.

Retornou, portanto, durante três dias, pelo caminho contrário, de tal maneira que os mesmos graus pelos quais adoeceu de uma peste mórbida se tornassems as fronteiras pelas quais retornaria à saúde.

No primeiro dia de seu percurso de volta dirigiu-se a um amigo para que ceasse com ele. Mas que amigo poderia encontrar numa região distante? Cada qual é para si próprio o seu próximo e o seu amigo, quando, voltado para si mesmo, nada mais encontra o que pôr diante de si senão os seus próprios pecados e, em meio à dor e às lágrimas, pede outro amigo sacerdote e lhe diz:

"Amigo, empresta-me três pães",

Luc. 11, 5

isto é, imponha-me agora uma penitência. E ele

"certamente se levantará,
e lhe dará quantos pães
lhe forem necessários".

Luc. 11, 8

Dar-lhe-á o pão do amor, o pão do trabalho e o pão da dor.

No segundo dia dirigiu-se a outro amigo, seguindo o exemplo dos Santos Padres e passando a freqüentar as Escrituras. Foram-lhe então estendidos outros três pães: o pão do perdão, o pão da graça e o pão da glória. O homem comeu e saciou-se.

No terceiro dia, chegou junto ao seu pai, o Deus misericordioso e piedoso, que lhe estendeu três delicados novilhos, um novilho ainda novo, um novilho tirado do rebanho e um novilho gordo. Comeu e saciou-se abundantemente.

O primeiro retorno, portanto, é do alheio ao próprio, o segundo dos males aos bens, o terceiro, do que é passageiro ao eterno.