8.

A Arca de Noé. L. IV, c.8.

Diz a Sagrada Escritura:

"Onde está o teu tesouro,
ali está o teu coração".

Mt. 6, 21

Onde está o teu amor, ali estará o teu pensamento. Onde, porém, estiver o teu pensamento, ali estará a habitação interior do homem. Porque alguém é dito habitar segundo o homem interior ali onde está a conversação de seu pensamento. Portanto, aqueles que constróem a deleitação de seu coração na vaidade deste mundo, embora possuam a arca da fé, interiormente, porém, são náufragos.

Silenciando agora, todos os demais amantes do mundo, quantos eruditos não conhecemos que querem chamar-se cristãos e que entram com os demais fiéis na Igreja e participam dos sacramentos de Cristo, em cujos corações é mais freqüente a MEMÓRIA de Saturno e de Júpiter, de Hércules e de Marte, a de Aquiles e de Heitor, de Pólux e Castor, do que a de Cristo e de seus santos? Amam as sutilezas dos poetas, mas quanto à verdade das Escrituras Divinas ou a negligenciam ou, o que é pior, dela se riem e a desprezam. Observem agora o que lhes aproveita estar exteriormente na Igreja e interiormente fornicar da fé. Antevejo que no fim haverão de unir-se aos que já estão unidos consigo pelos afetos do coração; amando com eles esta vida, se tornarão participantes também de seu suplício. Que lhes aproveita ter fé, se não permanecem na fé? Que lhes aproveita possuir um navio íntegro, e já não digo padecer as ondas do naufrágio, mas espontaneamente nelas atirar-se? Que lhes aproveita conhecer a verdade e amar a falsidade? Não são estes os verdadeiros fiéis.

Na Sagrada Escritura o mundo é amaldiçoado e é chamado de inimigo de Deus não porque a sua substância seja má, mas porque a beleza do mundo seduz as almas. Não deveríamos fugir da substância do mundo se a concupiscência do mundo não fosse má. Quando fugimos da concupiscência do mundo, dela fugimos porque é má, quando, porém, fugimos da substância do mundo, dela não fugimos porque é má, mas porque é ocasião do mal. Pensada a espécie do mundo, nasce o afeto da concupiscência. Portanto, se quisermos abandonar a concupiscência do mundo, é necessário primeiro remover a MEMÓRIA deste mundo de nosso pensamento. "Em minha meditação", diz o profeta,

"acendeu-se o fogo".

Salmo 38, 4

Assim como a madeira alimenta o fogo, assim também os pensamentos apascentam os desejos. Se existirem bons pensamentos na meditação, inflamar-se-á o fogo da caridade. Se os pensamentos forem maus, inflamar-se-á o fogo da cobiça. Porque assim como os olhos são apascentados pela imagem, assim também a alma é apascentada pelos pensamentos, e a mente impúdica frui pelo seu desejo de um comércio torpe, na medida em que abraça interiormente pelo pensamento a coisa desejada. Pouco importa o que se cogita, mas que tipo de afeto se origina deste pensamento, porque o pensamento não macula a mente onde a deleitação não corrompe a consciência. É importante, portanto, conforme dissemos, que nos esqueçamos deste mundo, e que destruamos sua MEMÓRIA de nosso coração, para que não ocorra que, pensando freqüentemente nela, sejamos inclinados à sua concupiscência.

Cremos já ter manifestamente demonstrado de onde se origina a distração infinita que padecemos de nossos pensamentos, isto é, do mundo e de sua concupiscência, isto é, das obras do coração e que aquilo pelo qual podemos recolher em um só todo os nossos pensamentos são as obras da restauração. E porque, conforme dissemos, não pode haver ordem onde não há fim, é necessário que, abandonadas as obras da criação, busquemos a ordem de nossos pensamentos ali onde são finitas, isto é, nas obras da restauração, e é isto o que nos propusemos investigar anteriormente, qual deveria ser a ordem de nossos pensamentos para que, a partir deles, pudéssemos edificar em nós uma casa espiritual para a sabedoria.