É fato que desde o início Deus falou com poucos, raramente, de modo obscuro e escondido. Investiguemos as Escrituras e encontraremos que quase nunca Deus falou às multidões, mas sempre que quis ser conhecido pelos homens, não se manifestou às gentes e aos povos, mas a indivíduos, ou no máximo a alguns poucos, estes afastados da convivência geral dos homens e ou no silêncio da noite, ou nos campos, ou na solidão, ou nas montanhas. Foi assim que falou com Noé, com Abraão, com Isaac, com Jacó, com Moisés, com Samuel, com Davi, e com todos os profetas. Finalmente, fazendo-se carne, embora tenha falado manifestamente ao mundo, conduziu todavia seus discípulos à parte a um monte para poder manifestar-lhes a sua glória (Mc. 9, 2). Aos quais também disse:
E, em outro lugar:
E nem àquele antigo povo o Senhor deu a sua lei no Egito, nem em qualquer outro lugar, enquanto não o conduziu separadamente à solidão. E mesmo ali não o fêz diante de todos, mas somente Moisés subiu ao monte para que ali recebesse a Lei. Por que é, portanto, que Deus sempre fala em segredo, senão porque nos chama ao segredo? E por que com poucos, senão porque nos quer reunir? Considerem estas duas coisas que eu disse, reunir e chamar ao segredo. Antes que tivesse pecado, o primeiro homem não tinha problemas se Deus lhe falasse externamente, porque possuía o ouvido interno do coração pelo qual podia ouvir espiritualmente a voz de Deus. Mas depois que abriu externamente o ouvido à persuasão da serpente, fechou o ouvido interno à voz de Deus. Tendo o home perdido o ouvido interno, pelo qual ouvia alar a Deus, Deus clama, chamando-nos novamente a si a partir do exterior. Mas ao falar, sempre se subtrai, como que querendo ocultarse, para que admoeste a mente humana ao falar de si, mas fugindo ao ocultar-se, para que o traga para si. O Senhor irrita o nosso desejo para que ele aumente, porque falando, excita o seu amor em nós, e fugindo, nos inflama para que o sigamos. Tal é o coração do homem, que se não pode alcançar o que ama, inflama-se ainda mais o seu desejo. É assim que no Cântico dos Cânticos o esposo vêm: coloca-se atrás da parede, olha pelas janelas e pelos portões (Cant. 2, 9), como se estivesse se escondendo e não estivesse se escondendo. Introduz a sua mão pela abertura da porta (Cant. 5, 4), toca a esposa e, ainda em meio à sonolência, chama-a com voz tênue e diz:
Ela, ao ouvir o esposo presente, levanta-se rapidamente, apressa-se, abre o ferrolho de sua porta (Cant. 5, 6), e prepara os braços ansiosos para receber o visitante. Não pode aguardar, não pode conter-se, não pode esperar. Sua alma se liquefaz, seu coração arde, ferve, exulta, alegrase, tripudia, enche-se de gôzo, precipita-se ao encontro daquele que vem. Mas Ele, a quem já considerava possuído, desaparece e, subitamente, escapa como que já de dentro do abraço. O que é isto? Busca quando não era buscado, vem quando não era chamado, quando é buscado desaparece, e quando é chamado foge. Se não ama, por que vem? E se ama, por que foge? Mas ama, e por isso vem, mas porque não ama aqui, por isto foge. O que significa isto que acabo de dizer, que Ele não ama aqui? Neste mundo, neste século, nesta terra, nesta pátria, neste exílio. Mas nos chama à sua terra, porque semelhante amor não condiz com esta pátria, a força do amor depende do lugar. O amor radiante busca um lugar ameno, e por isso nos recomenda a sua terra, por isso louva a sua terra, quando diz:
para que desejemos este lugar, paraque desejemos esta pátria e o sigamos. É ali que ele nos ama, é ali que ele deseja ser fruido pelo nosso amor, ali nos pede que o abracemos, ali se o seguirmos ele não fugirá, mas nos espera que venhamos a si. Oferece-se, portanto, ao não ser buscado, para que nos inflame ao seu amor. Quando buscado foge, para que nos faça correr atrás de si. Se não se nos tivesse mostrado antes, ninguém o amaria. E, a não ser que fugisse ao ser buscado, ninguém o quereria seguir. Diz que "nasceram as flores em nossa terra", não "na minha terra", mas "em nossa terra", para que a compartilhe conosco. Como se dissesse:
Esta é a causa por que Deus sempre fala escondido. Assim como na Lei, nos Profetas e no Evangelho foi através de parábolas e enigmas. É digno que sob a figura das palavras se escondam os segredos das inteligências dos mistérios, porque imediatamente se tornariam vis se prontamente a todos ficassem evidentes. Assim é que a verdade não somente exercita os fiéispela meditação, como permenece oculta para que não seja encontrada pelos infiéis. Aos primeiros, quando se apresenta difícil, inflama a maiores desejos; aos outros, não podendo ser encontrada de nenhum modo, cega. Pelos mesmos motivos, portanto, os fiéis progridem e os infiéis caem, porque os primeiros, ouvindo com humildade e meditando fielmente as palavras de Deus, alcançam o conhecimento da verdade. Os outros, porém, por negligência, ou por desprezo, ou por um entendimento maldoso, nunca alcançam a verdade. Explicamos por que Deus fala obscuramente e escondido. Agora falta-nos explicar por que Ele fala com poucos e raramente. |