LIVRO IV
CAPITULO 4

POR QUE DEUS
FALA ESCONDIDO
E DE MODO OBSCURO




É fato que desde o início Deus falou com poucos, raramente, de modo obscuro e escondido.

Investiguemos as Escrituras e encontraremos que quase nunca Deus falou às multidões, mas sempre que quis ser conhecido pelos homens, não se manifestou às gentes e aos povos, mas a indivíduos, ou no máximo a alguns poucos, estes afastados da convivência geral dos homens e ou no silêncio da noite, ou nos campos, ou na solidão, ou nas montanhas.

Foi assim que falou com Noé, com Abraão, com Isaac, com Jacó, com Moisés, com Samuel, com Davi, e com todos os profetas.

Finalmente, fazendo-se carne, embora tenha falado manifestamente ao mundo, conduziu todavia seus discípulos à parte a um monte para poder manifestar-lhes a sua glória (Mc. 9, 2). Aos quais também disse:

"A vós é dado conhecer o mistério do Reino de Deus,
aos demais, porém, (apenas) em parábolas".

Mt 13, 11

E, em outro lugar:

"O que vos digo nas trevas, dizei-o na luz,
e o que ouvis junto ao ouvido,
pregai-o sobre os telhados"

Mt. 10, 27

E nem àquele antigo povo o Senhor deu a sua lei no Egito, nem em qualquer outro lugar, enquanto não o conduziu separadamente à solidão. E mesmo ali não o fêz diante de todos, mas somente Moisés subiu ao monte para que ali recebesse a Lei.

Por que é, portanto, que Deus sempre fala em segredo, senão porque nos chama ao segredo? E por que com poucos, senão porque nos quer reunir?

Considerem estas duas coisas que eu disse, reunir e chamar ao segredo.

Antes que tivesse pecado, o primeiro homem não tinha problemas se Deus lhe falasse externamente, porque possuía o ouvido interno do coração pelo qual podia ouvir espiritualmente a voz de Deus. Mas depois que abriu externamente o ouvido à persuasão da serpente, fechou o ouvido interno à voz de Deus. Tendo o home perdido o ouvido interno, pelo qual ouvia alar a Deus, Deus clama, chamando-nos novamente a si a partir do exterior. Mas ao falar, sempre se subtrai, como que querendo ocultarse, para que admoeste a mente humana ao falar de si, mas fugindo ao ocultar-se, para que o traga para si. O Senhor irrita o nosso desejo para que ele aumente, porque falando, excita o seu amor em nós, e fugindo, nos inflama para que o sigamos. Tal é o coração do homem, que se não pode alcançar o que ama, inflama-se ainda mais o seu desejo.

É assim que no Cântico dos Cânticos o esposo vêm: coloca-se atrás da parede, olha pelas janelas e pelos portões (Cant. 2, 9), como se estivesse se escondendo e não estivesse se escondendo. Introduz a sua mão pela abertura da porta (Cant. 5, 4), toca a esposa e, ainda em meio à sonolência, chama-a com voz tênue e diz:

"Vêm minha amiga, minha pomba;
eis que o inverno passou,
já se foram e cessaram as chuvas,
nasceram as flores em nossa terra,
ouve-se a voz da rôla em nossa terra".

Cant. 2, 11

Ela, ao ouvir o esposo presente, levanta-se rapidamente, apressa-se, abre o ferrolho de sua porta (Cant. 5, 6), e prepara os braços ansiosos para receber o visitante. Não pode aguardar, não pode conter-se, não pode esperar. Sua alma se liquefaz, seu coração arde, ferve, exulta, alegrase, tripudia, enche-se de gôzo, precipita-se ao encontro daquele que vem. Mas Ele, a quem já considerava possuído, desaparece e, subitamente, escapa como que já de dentro do abraço.

O que é isto? Busca quando não era buscado, vem quando não era chamado, quando é buscado desaparece, e quando é chamado foge. Se não ama, por que vem? E se ama, por que foge? Mas ama, e por isso vem, mas porque não ama aqui, por isto foge.

O que significa isto que acabo de dizer, que Ele não ama aqui? Neste mundo, neste século, nesta terra, nesta pátria, neste exílio. Mas nos chama à sua terra, porque semelhante amor não condiz com esta pátria, a força do amor depende do lugar.

O amor radiante busca um lugar ameno, e por isso nos recomenda a sua terra, por isso louva a sua terra, quando diz:

"Nasceram as flores em nossa terra,
as vinhas em flor espalharam o seu perfume,
a voz da rôla já se ouve na nossa terra",

Cant. 2, 12-13

para que desejemos este lugar, paraque desejemos esta pátria e o sigamos.

É ali que ele nos ama, é ali que ele deseja ser fruido pelo nosso amor, ali nos pede que o abracemos, ali se o seguirmos ele não fugirá, mas nos espera que venhamos a si.

Oferece-se, portanto, ao não ser buscado, para que nos inflame ao seu amor. Quando buscado foge, para que nos faça correr atrás de si. Se não se nos tivesse mostrado antes, ninguém o amaria. E, a não ser que fugisse ao ser buscado, ninguém o quereria seguir. Diz que "nasceram as flores em nossa terra", não "na minha terra", mas "em nossa terra", para que a compartilhe conosco.

Como se dissesse:

"Sou para vós um mensageiro fiel, vi o que declaro, ouvi o que digo.
Não queirais temer, não queirais desconfiar, não queirais hesitar.
Segui-me para onde chamo, porque sois de onde venho,
não tendes aqui cidade permanente.
O que cultivais é passageiro. Viestes aqui de outro lugar,
se vos lembrásseis de vossa pátria, não amaríeis esta peregrinação.
Foi por sso que eu vim aqui, para que ali vos conduzisse,
não para permanecer aqui convosco.
E por isso eu vos chamo ocultamente,
porque quero que me conheçais, mas não quero permanecer aqui.
Por isso vos chamo de longe, pois tenho pressa em voltar.
É suficiente para mim ter vindo apenas para que tivesse sido ouvido.
Julgaria sofrer um dano se me entregasse às abundâncias do caminho.
Toda demora é pesada. As flores nasceram em nossa terra.
Aprendei o quanto deveis apressar-vos quando me virdes fugindo.
Não teria vindo se não vos quisesse trazer comigo".

Esta é a causa por que Deus sempre fala escondido. Assim como na Lei, nos Profetas e no Evangelho foi através de parábolas e enigmas. É digno que sob a figura das palavras se escondam os segredos das inteligências dos mistérios, porque imediatamente se tornariam vis se prontamente a todos ficassem evidentes.

Assim é que a verdade não somente exercita os fiéispela meditação, como permenece oculta para que não seja encontrada pelos infiéis. Aos primeiros, quando se apresenta difícil, inflama a maiores desejos; aos outros, não podendo ser encontrada de nenhum modo, cega. Pelos mesmos motivos, portanto, os fiéis progridem e os infiéis caem, porque os primeiros, ouvindo com humildade e meditando fielmente as palavras de Deus, alcançam o conhecimento da verdade. Os outros, porém, por negligência, ou por desprezo, ou por um entendimento maldoso, nunca alcançam a verdade.

Explicamos por que Deus fala obscuramente e escondido. Agora falta-nos explicar por que Ele fala com poucos e raramente.